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O outono no Nova Inglaterra é esplêndido. Final de setembro ainda é quase verão, ou, como chamam por aqui, Indian summer. Antes de vir cumprir minhas obrigações com a universidade de Brown – que me exige a permanência de pelo menos um mês contínuo recebendo estudantes, fazendo seminários e conferências – passei por Londres para participar de um encontro sobre o sistema financeiro. Lá, então, o calor estava mais forte ainda.

Se o clima da natureza, apesar das reais ameaças que vem sofrendo pela emissão dos gazes estufa, ainda nos dá a sensação aparente de bem-estar, o clima econômico e político já provoca calafrios. Os efeitos mais dramáticos da mudança climática virão no longo prazo. No caso da política e da economia mundiais, o prazo é mais curto.

Em maio, em outra reunião de que participei, naquela feita em Nova Iorque, já estava claro que a oferta descontrolada de crédito para comprar casas, que sustentava o boom imobiliário e o preço astronômico dos imóveis, produziria efeitos negativos muito além do setor imobiliário. E não só nos Estados Unidos. É que o ultradinâmico mercado financeiro havia absorvido as hipotecas imobiliárias e as transformado em novos papéis negociados em volumes crescentes nos mercados globais. Construiu-se, assim, uma pirâmide de apostas sobre uma base frágil uma vez que muitos dos créditos imobiliários eram de baixa qualidade, devido à duvidosa capacidade de um número cada vez maior de compradores de imóveis honrar os seus compromissos.

O mais incrível não é que as companhias que emitiram as hipotecas originais, não controladas pelos bancos centrais nem por outras agências regulatórias, tenham emitido seus papéis hipotecários com descaso, sem verificar se quem comprava as casas tinha capacidade de pagar. O mais incrível é que os bancos de investimento e mesmo bancos comerciais, tenham entrado tão vorazmente no negócio de gerar derivativos com base nesses créditos duvidosos e embarcar em apostas altamente especulativas por meio de hedge funds próprios, aproveitando a brecha legal que lhes permitiu criar sociedades de propósito especial fora do balanço da instituição bancária.

Bastou que uma empresa de hipotecas nos Estados Unidos desse a conhecer que seus créditos eram podres ou que um pouco conhecido Northern Rocks da Inglaterra ficasse em dificuldades, para soar o alarma. Que dizer, então, quando grandes bancos da Franca, da Alemanha, da Suíça ou dos Estados Unidos, bem como os bancos de investimento mais famosos do mundo, tiveram que reconhecer grandes prejuízos, como alguns já fizeram e outros estão na iminência de o fazer? Foi o suficiente para diminuir a liquidez, isto é, a disposição dos bancos para emprestar, mesmo para as grandes empresas: todos desconfiam de todos porque não sabem o tamanho do prejuízo de cada um.

Os bancos centrais não hesitaram em reagir, afinal tratava-se de negócios "entre brancos." Não faltou ânimo ao Federal Reserve dos Estados Unidos, ao Banco da Inglaterra ou ao Banco Central Europeu para despejar em um mês entre 300 e 500 bilhões de dólares, cortar taxas de juros, diminuir o que se cobra nos empréstimos entre bancos, tudo para evitar a paralisação dos mercados. Do FMI ninguém ouviu falar, nem muito menos de críticas à irresponsabilidade fiscal americana, que gera déficits no orçamento e nas contas correntes daquele país com o exterior. E que dizer do moral hazard? Moralmente, não deveria o banqueiro que faz empréstimos indevidos ou irresponsáveis pagar com seu prejuízo e eventual falência pelo dano causado, em vez de socorrer-se do Tesouro? Nem mesmo o sisudo Banco da Inglaterra se envergonhou de fazer um socorro apressado a quem estava em dificuldades.

Lembram-se do que ocorreu no passado recente quando o governo brasileiro criou um processo transparente para justificar o socorro aos depositantes e puniu os acionistas controladores, com o Proer? Até hoje ressoam as críticas mal informadas ou de má-fé que dizem que o governo ajudou os banqueiros ou tirou dinheiro do povo para salvar banqueiros... Não foi no Brasil que se fez isso, mas na Albion impávida.

Mas deixemos de lado as misérias da pequena difamação nacional. O que conta agora é a pergunta: a crise passou? Sendo assim, será que o Brasil escapou? Tomara, mas é cedo para prognosticar. Nos meios financeiros não há pessoa bem informada que se arrisque a prognóstico tão otimista. Sem catastrofismo, entretanto, mesmo porque não parece estar sucedendo o que os economistas chamam de crunch, quando a economia está para ser esmagada contra uma parede. Embora haja prejuízos vultosos que terão de ser pagos ao longo dos próximos meses ou anos, a China continua crescendo, os preços das matérias-primas estão firmes e as bolsas se recuperando e mesmo alcançando picos de valorização quando os bancos expõem seus prejuízos.

Mas não nos iludamos, por mais que as autoridades e os analistas dos mercados apregoem a calma e a recuperação, o tranco foi forte. Nos próximos meses a economia real dos países desenvolvidos sofrerá os efeitos do que ocorreu. Alguma retração haverá e provavelmente também afetará as economias emergentes, embora, espero, em proporção menor.

Não é só nem principalmente por isso que os ares do mundo causam calafrios. Qualquer observador atento da política internacional vê com preocupação que, a um ano das eleições presidenciais americanas, as idéias dominantes continuam as mesmas. Do lado governamental e republicano a fanfarronice de uma vitória inexistente no Iraque e, pior, a repetição da bazófia guerreira contra o Irã. Do lado democrático, palavras genéricas sobre o fim da guerra, mas nenhum road map, nenhum caminho para transformar a intenção em realidade, de acordo com um roteiro viável.

Isso em um mundo no qual, a Europa não consegue delimitar sua geografia política (incluir ou não a Turquia na União Européia?) nem se joga com força em favor da paz no Oriente Médio. E no qual a China e a Rússia parecem ter clara visão estratégica de seus interesses. Nesse mundo, seria desastrosa uma intervenção militar no Irã: ela afastaria mais ainda o mundo islâmico de qualquer esforço de pactuação por uma melhor ordem global. Mas não é impossível que isso ocorra.

Por isso temo, tanto ou mais, os efeitos deletérios da desordem política mundial sobre os mercados do que os espirros recentes provocados pelo estouro da bolha imobiliária, embora veja neles algo mais do que um simples resfriado.

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