
A disputa eleitoral de 2010 ficou para trás, mas a tensão provocada pelo debate sobre descriminalização do aborto e direitos dos homossexuais persiste. A discussão de novas leis, tanto para afrouxar quanto para enrijecer as regras atuais, será tema recorrente no Congresso Nacional desde o começo da legislatura. No Poder Executivo, Dilma Rousseff (PT) já enfrenta os primeiros conflitos ético-religiosos.
Há 56 propostas em tramitação na Câmara dos Deputados e no Senado sobre aborto. Entre elas, 48 querem tornar a legislação vigente mais severa e oito mais branda. Segundo o Código Penal, de 1941, a prática só é permitida em caso de risco à saúde da mãe e estupro (veja quadro ao lado).
A matéria com a tramitação mais avançada e uma das mais polêmicas pretende criar o Estatuto do Nascituro. O Projeto de Lei 478/2007 foi aprovado em maio do ano passado na Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara com um texto que "dribla" as exceções da lei atual. Ele define que a vida começa na concepção, estipula regras de atendimento social para grávidas de fetos com deficiência e ainda prevê benefícios econômicos para que as mães vítimas de estupro prossigam a gestação o que foi apelidado por defensores da descriminalização de "bolsa estupro".
A proposta tem o aval de líderes de diferentes religiões, que também trilham outras possibilidades de modificar a lei.
Oito dioceses católicas da região de Ribeirão Preto (SP) começaram neste mês a coletar assinaturas para um projeto de lei de iniciativa popular que torna o aborto crime em qualquer circunstância. "A ideia é coletar assinaturas, mas esperar o momento mais oportuno para apresentar a proposta", diz o bispo de Guarulhos (SP), dom Luiz Bergonzini.
Constitucionalidade
Segundo ele, o plano é coletar 300 mil assinaturas para a formalização de uma lei estadual em São Paulo. No entanto, o professor de Direito Penal da Universidade Federal do Paraná René Ariel Dotti afirma que a iniciativa é inconstitucional. O artigo 22 da Constituição é claro ao dizer que legislação penal é de competência federal."
Uma das vozes mais duras contra a posição do PT em relação ao aborto nas eleições de 2010, o pastor Paschoal Piragine Júnior, da Primeira Igreja Batista de Curitiba, não acredita que essa seja a melhor estratégia. "Parece uma reprodução dos movimentos norte-americanos. Não me parece ideal tentar fragmentar leis pelos estados."
Outro caminho para dar audiência à discussão sobre o aborto é a instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar o aborto clandestino no Brasil. A CPI foi criada em 2008, mas não avançou por divergências entre as bancadas feminista e evangélica. Em novembro, os evangélicos voltaram a cobrar o então presidente da Câmara, Michel Temer (PMDB-SP), pelo início dos trabalhos.
Rolo-compressor
Do outro lado, grupos que defendem a descriminalização do aborto temem enfrentar um rolo-compressor no Congresso. "Vivemos um cenário temerário para os direitos das mulheres, para o Estado laico e a democracia. Existe sim um risco enorme de retrocesso na nossa legislação, quando deveríamos avançar", diz a assessora técnica do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea), Kauara Rodrigues.
Desconfiança com Dilma
Apesar de Dilma ter dirigido uma carta a líderes religiosos durante o segundo turno da eleição presidencial, na qual se comprometia a não enviar propostas sobre a legalização do aborto ao Legislativo, a presidente não conquistou a confiança de vários setores.
No dia 11 de janeiro, o padre Luiz Carlos Lodi da Cruz, presidente do movimento Pró-Vida de Anápolis (GO) e uma das lideranças mais engajadas na luta contra a descriminalização do aborto, divulgou um texto no qual avalia a construção de uma "cultura de morte" no Brasil. "Embora haja países mais moralmente corrompidos que o nosso, o governo brasileiro se destaca, desde a ascensão do PT, em 2003, por uma campanha ininterrupta e onipresente em favor da corrupção de crianças, da destruição da família e da dessacralização da vida", escreve o padre.
Para a senadora eleita Gleisi Hoffmann (PT), que atuou na intermediação entre religiosos e a coordenação da campanha de Dilma em 2010, o primeiro passo é acabar com a radicalização. "Estamos tratando de pessoas que têm muito mais em comum do que diferenças. Precisamos conciliar os debates desses temas tanto à luz do cristianismo quanto dos direitos humanos."




