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São Paulo, (AE) – Não é de hoje que dois Brasis se chocam. No primeiro, alistam-se os que defendem o acesso aos métodos contraceptivos como forma de conter a fecundidade, especialmente nas camadas mais pobres da população. No outro, o país da natalidade, finca posição quem acredita que procriar é sublime missão humana e que o número de filhos tem mais a ver com a vontade de Deus do que com o bolso dos homens. É uma disputa acirrada, antiga. Manifesta-se nos debates do cotidiano, embora setores da sociedade brasileira, entre eles a Igreja Católica, não queiram ver nada disso exposto bem no horário nobre do domingo, quando a família se reúne na sala, diante da televisão.

Pois o cancerologista Drauzio Varella desafiou esses dois Brasis nas últimas semanas, ao protagonizar no Fantástico, da Rede Globo, para um público estimado em 50 milhões de pessoas, uma série médica chamada "Os Filhos deste Solo" – em que despiu os tabus da contracepção, um a um. Feministas irritaram-se com o que viram e ouviram. Acham que Drauzio veio com um discurso controlista para cima da fecundidade dos pobres. A Igreja também não aprova as prédicas do médico que ataca, sem papas na língua, o veto ao uso da camisinha. Ou não hesita ao prescrever: "Se a menina tem 10, 12 anos e vida sexual ativa, que tome pílula".

Como foi ensinar o funcionamento do DIU ou falar de vasectomia na Globo?Drauzio Varella – Tive liberdade total não só nesta, mas nas sete séries de saúde que fiz para o Fantástico. Eu escolho o tema, estabeleço as condições, peço para a emissora o que julgo necessário, sem interferências no trabalho. Imagine só: uma das séries tratou de obesidade e havia uma pesquisa feita em São Paulo falando que o alimento que mais tem engordado nossas crianças é a bolacha recheada. Pensei: preciso falar isso na televisão, mas vai dar problema com os anunciantes da Globo.

Falar de natalidade é mais complicado.Verdade. O primeiro artigo que escrevi a respeito é de 1998, depois dei entrevistas, fiz pesquisas, enfim, acabei achando que seria um tema para o Fantástico. Ao bolar o projeto, pensei o nome da série: "Os Filhos deste Solo". É bom, não é? Trecho do Hino Nacional. Mas como falar sobre natalidade? Uma forma interessante seria apresentar os métodos contraceptivos e explicar cada um deles: como escolher, quais as vantagens e desvantagens, etc. Desde o começo, minha vontade era mostrar que a contracepção não está acessível às pessoas pobres.

E foi possível dar recado?Sem dúvida. Vamos deixar de ser hipócritas. Corro este país e vejo que os postos de saúde não têm pílula, não têm DIU, não têm camisinha. Os homens não conseguem fazer vasectomia, mulheres cheias de filhos até desistem da laqueadura. Também descobri muita coisa nos anos em que trabalhei na Casa de Detenção. Experimente passar na porta de qualquer prisão brasileira num domingo, dia de visita. Você vai ver uma quantidade enorme de meninas, muitas menores de idade, carregando bebezinho no colo para visitar os presos. Eu via aquilo todo domingo. Duas mil mulheres vinham para o complexo, vinham para transar com o marido ou namorado, e não havia nenhuma orientação de contracepção no presídio. Zero! Aquelas garotas carregando bebês no colo... qual o futuro dos recém-nascidos? A mãe, uma menina. O pai, na cadeia. Trabalhei com detentos que, aos 24 anos, tinham quatro, cinco filhos com mulheres diferentes. Isso é um problema nacional que está na base da organização da sociedade, na base sobre a qual se assentam todos os outros problemas. Em 1970, na Copa do México, cantávamos: "Noventa milhões em ação, pra frente Brasil...." Hoje, somos 180 milhões! Duplicamos a população em 35 anos.

Mas demógrafos já afastaram a possibilidade da explosão demográfica.Posso ir na contramão dos demógrafos, porém me parece que não há país que agüente duplicar a população em três décadas. Ninguém quer falar a sério sobre isso. Por quê? De um lado, a Igreja Católica é contra qualquer conversa sobre controlar a natalidade. De outro lado, políticos evitam discutir a natalidade para não ficar mal com a Igreja. E tem aquela esquerda de botequim, que sai berrando: olha aí o plano de combate à pobreza pela eliminação dos pobres. Ridículo.

Ou seja, Igreja, políticos, esquerdas, todos embaçam o debate?É isso. Ter acesso à contracepção é uma questão de direitos humanos. E pobre não tem acesso. Ponto. O Fantástico entrou na casa de famílias humildes e renovou a dimensão que eu tinha do problema. Uma coisa é você saber que uma mulher pobre tem seis filhos. Outra coisa é ir até a casa dela e ver onde dormem essas crianças. Fiquei mal, me bateu uma revolta...

Que preconceito?Há um preconceito sexual contra as mulheres pobres: têm um monte de filhos porque são menos recatadas. Mas, quando você roda na periferia, e eu rodo, percebe que lá os valores são mais conservadores que nas regiões mais favorecidas. Fica-se com a idéia de que a pobreza é promíscua, mas não se diz que a mulher rica tem acesso à contracepção e a pobre não tem. Por que as nossas filhas conseguem evitar a gravidez? Porque vão ao médico, porque fazem exame ginecológico, porque antes de transar já tomam anticoncepcional.

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