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Exemplo

Nem só de políticos é feita a política

Histórias de vida mostram que a preocupação com a coletividade e a cidadania também são formas de atuação política, e estão presentes mesmo nos pequenos gestos

Fernando de Gois pode ser considerado, no mínimo, um caso atípico. Enquanto o sonho de boa parte dos brasileiros é conseguir a casa própria, o desejo dele é viver nas ruas de Curitiba. Tudo para retirar das drogas e da criminalidade jovens sem qualquer perspectiva de vida que perambulam sem rumo pela capital do estado. A história de vida de Fernando é apenas um exemplo de como cidadãos comuns tomam para si responsabilidades que deveriam ser cumpridas pelo poder público e conseguem melhorar o cotidiano das pessoas. Iniciativas como essa mostram que nem só de políticos vive a política. Na verdade, ela está presente nas ações que cada cidadão realiza diariamente.

Ex-frade carmelita, Fernando descobriu o que chama de sua "bandeira de luta" quando viveu no Nordeste do país, ainda como religioso. "Vi toda aquela miséria, principalmente de crianças e adolescentes, e percebi que nisso sim eu poderia ser útil", conta. Ele, então, mudou-se para Curitiba e foi viver em uma favela na Vila Lindoia, onde começou a trabalhar com jovens. Mais uma vez, no entanto, ainda sentindo-se menos útil à sociedade do que deveria, decidiu morar nas ruas ao lado dos jovens que escolheu ajudar para o resto da vida.

A realidade encontrada por Fernando, porém, era ainda mais dura do que ele imaginava. "Cansei de enterrar meninos mortos pelas drogas e pela violência. Como o que eles mais me pediam era um lugar para morar, decidi me mobilizar", afirma. Utilizando a ideia de um dos garotos de rua que ajudava, passou a tentar arrecadar fundos para a compra de uma chácara. A congregação alemã Irmãs da Divina Providência doou 80% do dinheiro, enquanto o restante seria doado por Rosy Pinheiro Lima, dona do extinto Cine Glória, na Praça Tiradentes. "Bem nesses dias, um grupo de meninos roubou uma loja de sapatos ao lado do cinema e acabou colocando fogo em tudo. Ainda assim, ela (Rosy) nos ajudou com o dinheiro", lembra.

No dia 2 de outubro de 1993, entrou em funcionamento a Chácara Os Meninos de 4 Pinheiros, instalada em Mandirituba, na região metropolitana de Curitiba. Atendendo jovens de sete a 18 anos, a entidade oferece aulas de informática, música, dança, Inglês, além de desenvolver atividades agropecuárias. "Utilizamos quatro ferramentas pedagógicas: ouvir, acolher, cuidar e transformar. Mas a principal palavra é solidariedade", diz Fernando, que atua como coordenador da organização.

Incentivador do projeto desde que ele foi fundado, o procurador-geral de Justiça, Olympio de Sá Sotto Maior, afirma que todos os jovens que vivem nas ruas merecem ser tratados com respeito e dignidade, sobretudo porque "nenhum deles escolheu viver à margem da sociedade". "Eles precisam ser tratados com cidadania, com uma aproximação feita adequadamente, e não apenas com o camburão social", argumenta. Um dos autores do Estatuto da Criança e do Adolescente, Sotto Maior defende que os jovens devem ter lugar "na família, na escola e também nos orçamentos públicos" e sempre receber tratamento prioritário, conforme prevê a Constituição Federal.

Considerada pela Organização das Nações Unidas (ONU) um dos "50 Jeitos Brasileiros de Mudar o Mundo", a chácara, que hoje atende 81 jovens, já mudou a vida de aproximadamente 400 ex-meninos de rua. "Mas, por mais feliz que eu fique com o projeto, ainda há meninos morando nas ruas. Por isso, ainda quero voltar para as ruas e me solidarizar com aqueles que não têm nada", revela Fernando.

Exemplo de vida

Nascido em Cidade Gaúcha, no noroeste do Paraná, Elias Bonfim veio para Curitiba em 1999 para encontrar outra oportunidade na vida que não fossem as usinas de cana-de-açúcar ou a roça. Depois de trabalhar como auxiliar de pedreiro e de ferramenteiro, virou professor de Informática e Cidadania do extinto Comitê para a Democratização da Informática do Paraná (CDI-PR), na Vila Pantanal. No entanto, apesar do reconhecimento da comunidade, tinha poucas opções de trabalho e pensava em voltar para a sua cidade natal. Foi então que, com a ajuda de um homem que ele sequer conhecia, conseguiu uma bolsa de estudos em um cursinho pré-vestibular e uma vaga de emprego. "A história do Elias mexeu comigo. Como um cara que se esforça tanto não tem uma chance, uma oportunidade? Não tive dúvidas em ajudá-lo", conta o executivo Clecio Chiamulera.

Após dois anos de cursinho, Elias ingressou no curso de Sistemas de Informação da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR). A aprovação empolgou o jovem, que, mais uma vez com o auxílio de Clecio, foi em busca de recursos para montar um cursinho gratuito para quem não tivesse condições de pagar um particular. Foi assim que, em 4 de março de 2004, surgiu a Organização Não Governamental (ONG) Formação Solidária, inspirada na história de sucesso de Elias. Destinada a jovens que tenham feito o Ensino Médio na rede pública e cuja renda não ultrapasse um salário mínimo (R$ 510), a ONG saiu de uma única aprovação no primeiro ano de atividade para 56 em 2009 -- no total, são 222 alunos que já conseguiram entrar no Ensino Superior. Contando hoje com 29 professores voluntários, o cursinho oferece aulas de segunda a sábado a 140 alunos, em uma escola estadual no bairro Boqueirão.

Coordenador do cursinho desde que ele foi fundado, Elias afirma que, por mais dificuldades que a ONG enfrente, não pretende deixar "a peteca cair". "Se transformarmos a vida de um só, já valeu à pena. É muito gratificante, porque acabo me vendo em muitos alunos", comemora.

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