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“No momento em que a gente detecta irregularidades, com indícios fortes de que há desvios, a gente toma providências. Indício é pegada, é rastro. Quem conhece, quem é domador de bicho conhece a pegada de um tigre. A gente sabe se é do tigre, do cachorro, do leão" | Marcelo Elias/ Gazeta do Povo
“No momento em que a gente detecta irregularidades, com indícios fortes de que há desvios, a gente toma providências. Indício é pegada, é rastro. Quem conhece, quem é domador de bicho conhece a pegada de um tigre. A gente sabe se é do tigre, do cachorro, do leão"| Foto: Marcelo Elias/ Gazeta do Povo

Os gestores públicos que cometem irregularidades costumam deixar um rastro que os técnicos do Tribunal de Contas da União (TCU) conseguem reconhecer. A técnica desse trabalho não está baseada em "achismo" e sim em critérios definidos pelo Congresso Nacional, explica o secretário-geral do TCU no Paraná, Rafael Muniz. Por isso, diz ele, não procedem as reclamações quanto à fiscalização do órgão, como as feitas pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao longo do segundo semestre deste ano. "Quem é domador de bicho conhece a pegada de um tigre. Quando a gente trabalha com indícios, são seguros, são robustos, não são mero achismo", diz ele, em entrevista exclusiva à Gazeta do Povo.

A possibilidade de limitar o trabalho do TCU, restringindo a fiscalização prévia – como previsto no anteprojeto da Lei Orgânica da Administração Pública, em discussão no Planalto –, é muito criticada pelo secretário-geral. "O nosso trabalho só tem eficácia se for feito no momento em que a coisa está acontecendo."

Para Muniz, o TCU ganhou mais visibilidade em 2009 por causa de investigações de vulto, que incomodaram gestores políticos e empresas. Na unidade regional do Paraná, a fiscalização de maior impacto feita neste ano resultou no afastamento cautelar de três funcionários do Depar­­­tamento Nacional de Infra­­­estrutura de Transportes no Pa­­raná (Dnit) e no bloqueio de bens de cinco servidores e de uma construtora de Curitiba. De acordo com a auditoria do TCU, as irregularidades em contratos e licitações feitas por esse grupo teriam gerado um prejuízo de R$ 8,8 milhões aos cofres da União. O caso ainda está sendo analisado pelo tribunal.

Parte das críticas direcionadas ao órgão se deve à composição da cúpula. Os nove ministros do TCU, responsáveis por relatar e julgar os processos referentes ao mau uso dos recursos públicos, são escolhidos alternadamente pela Câmara dos Deputados, pelo Senado Federal e pelo presidente da República – sendo que dois nomes indicados pelo presidente devem ser do quadro próprio do TCU. Atualmente, a maioria dos nove ministros teve origem em partidos de oposição ao governo Lula – fato que coincide com o aumento da fiscalização. Mas, segundo Muniz, o direcionamento político não ocorre, pois os processos são montados pelos auditores e técnicos – todos concursados. "Não há como, a não ser com argumentos técnicos fortíssimos, ir por um caminho diferente do que propôs a área técnica."

O trabalho de maior vulto realizado pelo TCU no Paraná neste ano foi a investigação no Dnit. Como ela foi feita?

A gente já vinha fiscalizando o Dnit faz tempo. As falhas continuaram e foram aplicadas multas. Mas a estrutura do esquema não se modificou. No início de 2009, levantamos um histórico dos últimos cinco anos, de todos os recursos alocados no Dnit do Paraná sob responsabilidade de um determinado grupo. É coisa de R$ 600 milhões a R$ 700 milhões. O tribunal havia recebido denúncias consistentes, vindas provavelmente de dentro do próprio Dnit. Resolvemos atuar com toda a estrutura que foi possível. Juntamos a melhor equipe que temos aqui e ainda pedimos ajuda para a Secretaria de Obras de Brasília, que cedeu mais quatro pessoas. Formamos uma força de trabalho e contamos com uma parceria com a Polícia Federal e o Ministério Público Federal (MPF). Pela primeira vez na história, foi possível afastar todos os envolvidos em uma irregularidade, deixando seus bens indisponíveis por um ano, além de propor a inidoneidade de uma empresa. Foi algo inédito. Esse fato, aliado a outras fiscalizações do TCU, acabou gerando um certo receio nos gestores de todo o país. Receio evidentemente não do bom gestor.

O bom gestor, então, não tem como reclamar que o TCU prejudica o andamento das obras?

Há uma falácia de que o TCU paralisa obras. Quem paralisa as obras e escolhe as que não devem receber recursos é o Congresso Nacional. Isso está na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). O tribunal somente apresenta indícios de irregularidades graves, que são efetivamente graves, pois são apontadas segundo critérios previstos na LDO.

Que critérios são usados? In­­­tegrantes do primeiro escalão do governo federal já disseram que foram paralisadas obras por causa de uma simples fechadura.

Não, não há nenhuma fechadura capaz disso. Os indícios graves que apuramos são principalmente superfaturamento, sobrepreço e projeto básico inadequado. E trabalhamos também com a materialidade, isto é, os valores mais significativos dentro de uma obra são analisados. Focamos primeiramente o valor de uma obra como um todo, geralmente as que têm valores acima de R$ 100 milhões. E, dentro dessa obra, analisamos os itens com valores que têm mais significado. Tudo é feito por técnicos que vão a campo – pessoas qualificadas, que passaram por concurso público.

O senhor não concorda, então, com a opinião de muitos parlamentares, políticos e até cidadãos de que as decisões do TCU têm caráter político?

Não há como a decisão ser política. Apesar de a maioria dos ministros serem escolhidos pelo Congresso, é muito difícil um ministro relator de um processo apontar um caminho diferente do que foi apontado pelos técnicos. O auditor vai a campo, faz o levantamento, apresenta para o diretor. O diretor apresenta para o secretário um relatório, que encaminha para o relator, que é cercado de assessores especializados. O ministro faz seu relatório, que vai a plenário. Não há como, a não ser com argumentos técnicos fortíssimos, ir por um caminho diferente do que propôs a área técnica.

Há quem defenda que os ministros do TCU sejam selecionados entre os auditores concursados que compõem o tribunal, para evitar o componente político. O que o senhor acha disso?

Essa ideia se mantém entre as pessoas que não vivenciam o dia a dia de uma instituição como a nossa. A composição política da cúpula é extremamente importante para nós. Os nossos técnicos têm uma visão técnica. Isso é fundamental. Mas a sociedade não se organiza dessa forma. É importante a presença dos políticos, aqueles que fazem a boa política, não a politicagem. Porque eles vão entender as coisas que estão acontecendo no tribunal e vão passar isso muito bem aos parlamentares. Até porque fazemos parte do Congresso (o TCU, pela lei, é um órgão auxiliar do Legislativo). E não podemos ser uma ilha. Temos de ter esse elo de interseção. Esse elo são os políticos. Até onde eu saiba, os políticos que estão no tribunal hoje, como ministros, são pessoas idôneas, corretas, que não trazem ne­­­nhum prejuízo para o corpo técnico. Muito pelo contrário. Acho que a presença deles é fundamental para que o tribunal fique mais conhecido dentro do Congresso Nacional.

O senhor diria que as críticas quanto à escolha dos ministros são de pessoas que desconhecem o TCU?

Acho que a maioria dos parlamentares – e isso não é só percepção minha, digo com base em pesquisas – não conhece o TCU. Mas isso também é responsabilidade nossa. Estamos mudando, fazendo palestras em universidades, conselhos estaduais, aos parlamentares. Temos hoje uma assessoria parlamentar que atua dentro do Congresso, disseminando informação de maneira correta. Acho que conseguimos mostrar que o tribunal tem servido para o retorno de recursos para a sociedade, para evitar que valores não sejam gastos de maneira desordenada, por falta de planejamento ou por desvio para caixa dois.

O senhor acha que o trabalho do TCU pode ser prejudicado por causa de dispositivos previstos no anteprojeto da lei orgânica da administração federal?

O nosso trabalho só tem eficácia se for feito no momento em que a coisa está acontecendo. A fiscalização a posteriori, como previsto nesse anteprojeto, não dá para aceitar. Como diz o ditado, "aí a Inês é morta". Já foi. Depois, para reaver valores, é muito difícil. A gente acompanha pari passo a execução de uma licitação, de uma obra. No momento em que a gente detecta irregularidades, com indícios fortes de que há desvios, a gente toma providências. Indício é pegada, é rastro. Quem conhece, quem é domador de bicho conhece a pegada de um tigre. A gente sabe se é do tigre, do cachorro, do leão. Agora, se a gente ficar esperando todo o contraditório, aí a gente não consegue reaver. Quando a gente trabalha com indícios, são seguros, são robustos, não são mero achismo. São coisas que a gente tem certeza e que, em determinado momento, as pessoas investigadas poderão se manifestar, fazer o contraditório.

Quando ocorre esse contraditório? Os gestores do Dnit do Paraná afastados reclamaram que não tiveram chance de serem ouvidos.

O tribunal utiliza o instrumento de medida cautelar com a intenção de resguardar os recursos públicos. O TCU resolveu afastar essas pessoas porque a presença delas evidentemente influenciaria a investigação. Em um segundo momento, todas as pessoas serão ouvidas, com todas as prerrogativas. Havendo a condenação dessas pessoas, poderão ocorrer outras sanções, como aplicação de multas, restituição dos valores desviados e o afastamento das empresas envolvidas pelo período de cinco anos, sem possibilidade de atuar junto ao poder público. Nesse momento ocorre o contraditório. Tudo isso está previsto na Lei nº 8443 (Lei Orgânica do TCU). O tribunal nunca adotaria uma posição ilegal, pois poderia ser questionado no Supremo Tribunal Federal.

Quais são as dificuldades que o TCU enfrenta para fazer a fiscalização?

Temos alguns entraves legais, como a dificuldade para pedir a quebra de sigilo bancário, fiscal e telefônico. O presidente do TCU, Ubiratan Aguiar, teve a ideia de estreitar laços com outros órgãos, com a intenção de fazer uma espécie de rede de controle. Aqui no Paraná, recentemente assinamos um convênio com o Tribunal de Contas do Estado, Ministério Público, Polícia Federal, Tribunal Regional Eleitoral, entre outros. Cada um desses órgãos detém parte de uma informação que é muito importante para fazer um juízo perfeito de uma determinada situação. Estamos trabalhando, buscando cada vez mais parceiros. Enfim, todo órgão que tem alguma informação que possa vir a agregar nossas instruções técnicas são bem recebidos

Essas informações só podem ser obtidas por meio dos convênios?

A gente sempre trabalhou com isso, solicitando informações para vários órgãos. Mas a resposta ficava a critério do dirigente que está à frente daquela unidade. No momento em que você assina um convênio, vira uma coisa institucional. Independentemente do dirigente que estiver no comando do órgão, há um acordo que deve ser respeitado.

O TCU vem aumentando, gradativamente, o trabalho de fiscalização. Essa é uma tendência que será mantida, independentemente de quem ocupar a cadeira de presidente da República a partir de 2011?

Sim. Independentemente de quem seja o presidente do país ou o presidente do TCU, o fato é que as instituições estão se tornando cada vez mais fortes e sólidas. Isso é muito positivo.

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