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Está em vigor no Brasil desde o início de abril a Convenção das Nações Unidas sobre Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias (CISG), que já vigia em 78 países, em alguns desde 1988. Trata-se de uma das mais bem-sucedidas iniciativas internacionais de facilitação do comércio por meio da adoção de regras uniformes sobre a formação dos contratos e as obrigações e responsabilidade das partes. Representa uma ponte entre os diversos sistemas jurídicos, permitindo a redução de custos e o tratamento jurídico dos contratos segundo a realidade do comércio internacional.

O princípio geral da CISG é a autonomia privada. Contém principalmente normas dispositivas. As partes são livres para disciplinar contratualmente o seu negócio em termos diversos e até excluir a aplicação da convenção.

Porém essa liberdade não elimina a necessidade de atenção às normas da CISG. A própria convenção é que regula a eficácia e a interpretação da exclusão ou derrogação. Se um contrato está no campo de aplicação da CISG, buscam-se nela as normas aplicáveis ou o fundamento de validade para sua modificação. Essa é a lição de Ingeborg Schwenzer em obra recentemente lançada no Brasil ("Comentários à Convenção das Nações Unidas sobre Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias", ed. Revista dos Tribunais, 2014, coord. por Ingeborg Schwenzer, Eduardo Grebler, Vera Fradera e Cesar A. Guimarães Pereira).

A definição do campo de aplicação baseia-se no local do estabelecimento. Segundo o art. 1(a), se o objeto do contrato for a compra e venda de mercadorias e os estabelecimentos das partes estiverem em diferentes Estados contratantes, aplica-se a CISG. Ela também incide se a lei aplicável for a de um país contratante, segundo o art. 1(b). Como a CISG se estende aos principais parceiros comerciais do Brasil (as exceções importantes são Reino Unido, Índia e Portugal), são grandes as chances de sua aplicação. É comum a situação de uma parte ter estabelecimentos em vários países, diversos deles envolvidos em um determinado contrato. A doutrina e a jurisprudência definem qual deles é decisivo. Discute-se a sua aplicação em relação a contratos mistos, envolvendo mercadorias e serviços. A venda de software é um caso típico de debate. Nos quase 30 anos de vigência da CISG, muito já se produziu. Como o art. 7(1) impõe sua aplicação uniforme e baseada em seu caráter internacional, o conhecimento da doutrina e jurisprudência internacionais é obrigatório para o aplicador em qualquer dos países signatários. Esse conhecimento é facilitado por vastos e confiáveis bancos de dados sobre a CISG, como o UNCITRAL-CLOUT, o CISG Online e o UNILEX. No Brasil, a principal iniciativa é o CISG Brasil, com informações em português.

O art. 1(3) contém uma regra importante para a definição do campo de aplicação, estabelecendo que o caráter civil ou comercial das partes ou do contrato é irrelevante. Isso dá à CISG uma grande amplitude. Um dos seus campos de incidência é o dos contratos administrativos de compra internacional de mercadorias. Isso abrange a administração direta, na importação de material de defesa ou segurança, por exemplo, e a administração indireta. As aquisições internacionais feitas pela Petrobras são um caso claro de contratos enquadrados no campo de aplicação da CISG. Apenas se deve atentar para as exclusões do art. 2 da convenção: embarcações, aeronaves e eletricidade, por exemplo, estão fora da CISG.

O fato de um contrato estar no campo de aplicação da CISG não resolve o problema, é apenas um ponto de partida. O art. 6 permite às partes excluir a aplicação da convenção ou derrogar qualquer de suas normas. Sempre caberá examinar se as partes valeram-se (e de modo eficaz) do art. 6.

Aqui se encontra um ponto central que exige a atenção das partes brasileiras, agora sujeitas à CISG. Os critérios para a interpretação da CISG e para a qualificação dos atos praticados nos contratos a ela sujeitos são dados pela própria CISG (arts. 7, 8 e 9), não pelo direito interno brasileiro. Assim, para saber se e em que extensão houve a exclusão ou derrogação da CISG, é preciso aplicar tais normas de estrutura. Se as partes inserirem em seu contrato que será aplicado o "direito brasileiro", terão excluído a CISG? E se previrem que será aplicado o "Código Civil brasileiro"? Nos casos de contratos administrativos, a referência à Lei nº 8.666 exclui a aplicação da CISG ou apenas configura derrogação parcial das regras incompatíveis com a lei nacional? A resposta a essas questões deve ser obtida a partir da aplicação da convenção, com base em interpretação uniforme e internacional, conforme exige o art. 7(1). O consentimento (intenção) das partes é elevado pela CISG a um novo patamar pelo art. 8, que prevê um critério normativo para a sua apuração – art. 8(2) – e assegura a ampla liberdade probatória na aferição da intenção – art. 8(3). Nos Estados Unidos, em que vige internamente a inadmissibilidade de provas orais para infirmar contratos escritos (parol evidence rule), reconhece-se que a CISG adota critérios distintos e afasta essa vedação. Discussões similares serão travadas no Brasil a partir de agora. A CISG dá importância central aos usos, costumes e práticas adotados pelas partes (art. 9), o que exigirá dos aplicadores nacionais atenção a elementos nem sempre considerados na solução de problemas jurídicos com base no direito interno.

A CISG traz novidades importantes que integram o direito brasileiro a partir de agora. Deve estar no campo de atenção das empresas privadas e dos entes administrativos que atuam no comércio internacional.

Cesar A. Guimarães Pereira, doutor e mestre pela PUC-SP. Visiting Scholar da Columbia University Course Leader da SiLS – Swiss International Law School (Basileia)

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