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A Europa unida, surgida do Tratado de Roma, em 25 de marco de 1957, na mesma Roma dos césares e do império, vive momento de singular dificuldade em todo o seu percurso histórico. Essa integração, que deu os primeiros passos com meia dúzia de Estados, tendo como protagonistas França e Alemanha, os dois grandes rivais da Segunda Guerra Mundial, hoje conta com quase três dezenas de sócios, com a recente entrada da Croácia, em julho de 2013.

E 57 anos se passaram… Ao completar quase seis décadas de integração, que leitura podemos retirar da construção do idealizado neo-império europeu? Fazendo analogia com o Império Romano, vemos hoje na União Europeia a figura de uma imperadora, que detém sozinha o poder centralizador, entre mandos e desmandos, com os demais Estados-súditos a fazerem-lhe a corte e a darem satisfações dos seus atos.

Continuando a nossa analogia, vemos com clareza o neo-império dividido em dois grupos: dos cidadãos e dos não cidadãos. O primeiro grupo é composto por classes sociais, segundo a sua riqueza e o seu poder de influência, que lembra o Império Romano com as suas ordens senatorial, equestre e plebeia. O segundo grupo é formado por libertos e por escravos.

A ordem senatorial, no contexto atual, está representada por membros que exercem os mais elevados cargos políticos e administrativos, distribuídos (i) no Conselho Europeu, formado pelos Chefes de Estado ou de Governo; (ii) no Conselho da União, representado pelos Estados membros em nível ministerial; (iii) na Comissão Europeia, o executivo europeu, com mais de 25 mil funcionários, com a árdua tarefa de defender os interesses da União e não o interesse dos seus Estados; e (iv) last but not least, no Parlamento Europeu, com os seus 751 eurodeputados que ali estão para representar o interesse dos cidadãos da União.

A ordem equestre é constituída por cidadãos que, através da economia ou do exercício dos cargos nas administrações nacionais, conseguem ter uma posição relevante nesse enorme mercado comum, consolidado em 1993, ano em que entrou em vigor o Tratado da União Europeia, que criou uma nova fase de integração: a União Econômica Europeia, coroada com a chegada do euro, mas que tantos dissabores têm trazido nos últimos tempos. Destacam-se na ordem equestre os cavaleiros-empresários, os cavaleiros-banqueiros, os cavaleiros-industriais, ou seja, aqueles que desbravam, com corridas a galope, todas as cidades neo-imperiais, aproveitando-se das benesses inerentes ao seu mercado interno: livre circulação de mercadorias, pessoas, serviços e capitais.

Na cauda dos cidadãos da União está a plebe, composta por funcionários públicos, comerciantes, profissionais liberais, agricultores, que vivem distantes do grande centro de decisões ou, melhor dizendo, longe de Bruxelas. A plebe tem enfrentado muitas dificuldades, agravadas pela crise econômica, pela falta de governação nos Estados, pelos direitos antes adquiridos e hoje retirados, nomeadamente nos seus salários e pensões, pelo aumento do desemprego, que fez migrar para outras plagas um séquito de jovens bacharéis, em busca de melhores oportunidades. Mas, pese embora todos esses percalços, há um fator de extrema importância que a plebe reconhece: há seis décadas que o império neo-europeu consegue manter a paz e a segurança, incluindo a segurança alimentar, tão cara àqueles que passaram pelo terrível inverno de fome durante o período das duas grandes guerras. Não é por acaso que a Política Agrícola Comum continua a ser a rainha das políticas europeias, intocável dentro da União, e intolerável fora dela.

Depois encontramos a classe dos não cidadãos: os libertos e os escravos. Os libertos, especialmente aqueles que vêm de Estados que privilegiam a cultura e os estudos, mas que não conseguem dar aos seus um emprego justo, obrigando-os a procurar melhor sorte nos demais Estados-membros, que fingem respeitar o princípio da não discriminação, imposto pelos tratados que regem a UE, mas que constroem barreiras invisíveis, para demarcar o terreno dos cidadãos de primeira e de segunda classe.

E, por fim, os escravos, aqueles que chegam em embarcações clandestinas, servindo-se do Mare Nostrum à procura de uma vida digna, que respeite os decantados direitos humanos, dispostos a fazer o trabalho a que a plebe já não se submete, isso quando conseguem vencer a "globalização da indiferença", em busca de um sonho, que tanta vez acaba nas águas do Mediterrâneo.

E qual será o destino dos mais de 500 milhões de cidadãos e não cidadãos europeus, conduzidos pela imperadora que, pela primeira vez, está a ver o seu lugar ameaçado por um imperador-impostor, que está a assustar o mundo com as suas aparições fantasmagóricas nas profundezas do Mar Negro?

É oportuno lembrar algumas das razões que enfraqueceram o Império Romano até a sua queda, no Século V d.C.: a enorme extensão territorial, que dificultava a administração e a defesa; a falta de mão de obra, que levou a forte crise na produção de alimentos; o aumento de conflitos entre as classes senatorial, equestre e plebeia, gerando instabilidade política; o aumento da corrupção no centro do império e nas regiões conquistadas; e a facilidade com que Odoacro se apossou de Roma, mostrando a extrema vulnerabilidade a que havia chegado o Império Romano do Ocidente.

Esperemos que a história não se repita, e que os visigodos, os ostrogodos e os vândalos permaneçam nos manuais da antiguidade, para não regredirmos para a Idade Média ou, quiçá, para a Guerra Fria, se permitirem que o Império Russo, que já foi o terceiro império do mundo, ressuscite. O velho continente não merece tal destino!

Elizabeth Accioly, advogada, é professora da Universidade Lusíada de Lisboa e do Centro de Excelência Jean Monnet, da Faculdade de Direito de Lisboa.

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