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O Tratado de Direito Privado, principal elaboração científica de Pontes de Miranda, convida a algumas diferenciações metodológicas, isto é, de teoria do método, que são úteis para acessar a grandiosidade desse indiscutível monumento de nossas letras jurídicas.

Apanhará a superfície do Tratado aquele que acreditar seu especial valor no método da obra. Aqui, Pontes não se apresenta qualitativamente à frente da geração anterior da tratadística nacional. Privatistas como Martinho Garcez, Eduardo Espínola, Lacerda de Almeida, Paulo de Lacerda, Carvalho de Mendonça (ambos, Manuel Ignácio e José Xavier) e Clovis Bevilaqua já haviam lançado os métodos do pensamento jurídico que são, em linhas gerais, empregados por Pontes. No entardecer do século 19, a Escola de Recife fincara, nos trópicos – mas não sem contradições e alguma antropofagia seletiva –, as bases do positivismo, da definição de direito como ciência normativa e até mesmo do pragmatismo. Também não fará Pontes contraponto ao normativismo, tendo pouco contribuído para os métodos de uma ciência jurídica compreensiva. É mesmo rarefeita a ênfase que o Tratado dá à nova hermenêutica, à estrutura circular da interpretação e à pré-compreensão – inobstante Pontes conhecesse as elaborações de Esser, que causavam contemporaneamente convulsões na dogmática alemã, sua grande fonte de inspiração e com a qual diretamente dialogava.

Ao estado da arte metodológica, Pontes contribuirá, na verdade, com a metódica normativa, isto é, o conjunto de técnicas e procedimentos lógicos que permitem ao cientista do direito usar os métodos normativos já adensados pela experiência jurídica. A motivação virá da noção de sistema que Pontes elabora em uma obra não estritamente jurídica, laureada pela Academia Brasileira de Letras: Introdução à Sociologia Geral, de 1924. As funções do subsistema jurídico ("sistema externo"), direcionadas ao ideal de segurança jurídica como previsibilidade dos juízos práticos sobre um caso concreto e, portanto, como estabilização de conflitos sociais, sublinham duas das etapas da dogmática jurídica mais caras às contribuições ponteanas: a construção e a sistematização dos fatos jurídicos. Explica-se.

É recente a postulação metodológica por uma concepção tripartite da dogmática jurídica (Dreier-Alexy, Aarnio), mediante a qual vêm propostas etapas racionalmente independentes de (i) coleta e seleção de material normativo empírico (Rechtsstoffe); (ii) análise do material normativo, por construção (Konstruktion) de categorias ou modelos jurídicos abstratos; e (iii) síntese ou formulação de juízos abstratos orientadores dos processos de aplicação do direito. Em cada uma dessas etapas, alguns métodos somam-se uns aos outros; outros se excluem mutuamente, por recíproca incompatibilidade. Como organizar a todos eles?

Se Pontes não tinha discernimento dessas etapas, tais quais se discutem hoje, parece inegável seu esforço de pautar por uma unidade dos mais diversos métodos normativos coextensíveis a cada uma delas. Essa unidade repousa na articulação de três atividades fundamentais empreendidas ao longo das mais de trinta mil páginas do Tratado: (a) a elaboração dos suportes fáticos; (b) as construções histórico-dogmáticas dos conceitos ou tipos de fatos jurídicos; e (c) a formulação de juízos decisórios que não são meramente binominais (existência-inexistência, validade-invalidade), mas, adicionalmente e estritamente dialéticos: o plano da eficácia, o mais exuberante da tricotomia, ganha, no Tomo V, do Tratado, os fundamentos, e nos tomos subsequentes, a aplicação, ambos desdobrando os efeitos jurídicos em inúmeros índices de eficacização, representados pelos graus e categorias de irradiação de efeitos, tais como direitos, pretensões, ações (em sentido material) e exceções, e as correspondentes posições passivas.

Sumariamente, o esforço ponteano revela-se por duas fases metódicas. Na primeira, o cientista, diante da observação do material empírico coletado, transforma a normatividade ínsita a esse mesmo material em suportes fáticos que apresentam categorias jurídicas – ora conceitos, ora tipos, ora outras categorias não assimiláveis a essas duas espécies de pensamento universal – construídas a partir da abstração progressiva ocasionada pela análise das doutrinas, dos julgados, dos costumes, enfim, da história. Constroem-se os fatos jurídicos: eles não são dados pelo legislador, pela jurisprudência ou pelos costumes – os fatos jurídicos são construídos pelo cientista, na tentativa de articulação do sistema e, logo, de permitir ao direito a plenitude necessária para o exercício de suas altas funções socioestabilizadoras. Já na segunda das fases metódicas, o cientista, a partir dos fatos jurídicos construídos, conecta ou sistematiza sua identidade a efeitos jurídicos que são complexos e apresentam consequências espirais: um inexistente negócio jurídico de compra e venda pode existir como negócio jurídico de mútuo; um negócio jurídico anulável por coação ou fraude contra credores é nada obstante eficaz até que seja desconstituído; um negócio jurídico condicionado irradia, desde logo, direitos expectativos – e assim por diante.

As críticas que se dirigem aos normativistas são igualmente extensíveis a Pontes. Mas também as virtudes lhe são. Em tempos de redescobrimento do ideal de segurança jurídica, principal função do subsistema jurídico e da metódica que lhe proporciona, a dogmática, o Tratado de Pontes é uma grande cartilha dos sentidos enfraquecidos do direito, todavia demandados pelas sociedades democráticas: a decidibilidade de conflitos de interesses equilibrada em um sistema prévio, transparente e positivo.

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