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| Foto: Cesar Machado/Gazeta do Povo

Ficha técnica

Natural de: Heindelberg, na Alemanha

Currículo: professor da Universidade Georg August de Göttingen, na Alemanha, juiz do Tribunal Estadual de Göttingen, coordenador do Grupo Latino-americano de Estudos sobre Direito Penal Internacional.

Juristas que admira: Klaus Roxin, Aníbal Bruno

Nas horas vagas: pratica esportes e toma vinho

O que gostou de Curitiba: visita ao Museu Oscar Niemeyer

Curiosidade: é casado com uma brasileira

O Tribunal Penal Internacional (TPI) só pode atuar se contar com a colaboração dos Estados membros. É nesse aspecto que o Brasil é criticado pelo professor alemão Kai Ambos, uma vez que o país ainda não criou legislação interna que especifique como ocorrerá a cooperação com o órgão de justiça internacional. A recusa de outros países, como Estados Unidos e Rússia, de participar do TPI também é tema de análise por parte do docente. Em entrevista concedida ao Justiça & Direito durante estadia em Curitiba para comandar um curso na Universidade Federal do Paraná (UFPR), Ambos comenta ainda sua visão sobre direito penal do inimigo. É possível fazer uma avaliação do TPI?

A pergunta que devemos fazer é se estamos melhor ou pior com o TPI, se o mundo é melhor ou pior com um tribunal que pode julgar crimes que todos nós não queremos. Mesmo com todos os defeitos que a corte tem – e eles são muitos –, estamos melhor com a existência do TPI. Quais são alguns dos defeitos?

O TPI tem muitos problemas para implementar a sua jurisdição, a sua competência. Imagine o TPI julgando o ex-chefe da ditadura militar do Brasil. Evidentemente não é fácil. Até hoje a Justiça brasileira não abriu processos penais por crimes durante a ditadura militar. Esses são os agentes que o TPI está procurando. Ele não cuida de roubo na rua, mas de políticos, presidentes de países, militares com muito poder. Situações em que o TPI tem que agir contra o interesse dos Estados. Essa situação cria problemas. O tribunal não tem uma polícia, não existe uma força que poderia executar uma ordem de detenção. Quem tem que fazer isso é o Estado onde está o acusado. Se ele diz que não vai fazer nada, há poucas possibilidades no direito internacional. Se o país é poderoso, são ainda menos possibilidades. O tribunal tem a força dos Estados partes ou não têm força. Se eles não o apoiarem, ele passa a ser simbólico. O Brasil colabora com o TPI?

O Brasil não fez nada para implementá-lo internamente, não tem legislação interna, como França, Alemanha e Inglaterra. Não há aqui lei de cooperação com o tribunal. O país sustenta o tribunal, pois o sistema de financiamento é o mesmo da ONU: quem tem mais paga mais. O Brasil cumpre com sua obrigação como parte e paga. O Estado brasileiro tinha uma juíza muito importante, Sylvia Steiner, e vai ter outro candidato, Leonardo Nemer, que é de Belo Horizonte, e é muito provável que ele seja eleito. Mas não há uma lei interna de cooperação, o que é um descumprimento por parte do Brasil e cria problemas. Imagine se uma pessoa, nem precisa ser brasileira, comete um crime contra a humanidade e se exile no Brasil. A quem deve comunicar o TPI? Não existe uma lei que diz quem é o responsável, se é o Ministério Público Federal ou o Ministério das Relações Exteriores. O mínimo que deve fazer um Estado é criar a legislação interna para cooperar. Sem eles, não há como o TPI funcionar. O fato de os Estados Unidos não serem um Estado parte afeta o TPI?

Não somente os EUA, mas Rússia, China e Índia não fazem parte. Mas posso dizer que os EUA não são o pior. Comparando com outros Estados realmente fortes, os EUA cooperam muito com o TPI mesmo sem ser parte. Eles apoiaram o TPI no caso do Sudão, do Quênia, da Líbia. Foi através de informações dos Estados Unidos que encontramos os acusados, como o ex-presidente da República Centro-Africana Jean Pierre Bemba Gombo, que estava viajando para a Bélgica – a informação para capturá-lo veio dos Estados Unidos . Eles tampouco aceitam a jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos, é uma posição deles. Os EUA são uma democracia muito complexa. Têm muita informação através dos sistemas de inteligência e cooperam. O Senado é sempre muito crítico em relação a tratados internacionais que poderiam restringir direitos. O governo de Obama é muito a favor do TPI, mas sabe que nunca conseguirá a aprovação do Senado. Talvez em 20 anos sim, mas agora não, devido ao ceticismo dos republicanos. A ausência de outros Estados influentes é mais sentida?

Dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, apenas dois compõem o TPI: França e Reino Unido. O Conselho de Segurança queria mandar as violações de direitos humanos na Síria para ser julgada pelo TPI, mas a Rússia impediu com seu poder de veto. O direito internacional é um direito dos Estados. Está claro que não podemos tratar na prática Rússia e EUA da mesma maneira que Luxemburgo e Nicarágua. A ideia de que todos os Estados são iguais é pura teoria. Os ordenamentos dos países europeus estão em consonância no que se refere ao direito penal?

O direito penal europeu não é supranacional, porque a União Europeia não tem competência em direito penal e não pode legislar sobre esse tema. A única matéria que pode ser tratada diz respeito à questão financeira. Em todas as outras, como crime organizado, terrorismo, tráfico de pessoas, só há competência subsidiária, que se expressa através de diretivas. Essas diretivas não têm efeito direto no Estado membro, mas devem ter seus fins implementados pelos Estados europeus. A União Europeia criou uma diretiva que aponta que a lavagem de dinheiro deveria ser crime em todos os países, com alguns elementos mínimos. E o que isso significa?

É mais forte que o tratado contra corrupção internacional, do qual até o Brasil faz parte. Se o Estado não aplica a diretiva no prazo, ela passa a ser diretamente aplicável. O direito penal europeu é um direito de harmonização dos direitos criminais dos países europeus. Mas os sistemas de cada país ainda são muito diferentes quanto à parte especial, quanto ao processo penal. São 28 países, cada um com seu sistema de justiça criminal. Implementar um direito penal comum demandaria um código penal europeu e um código de processo penal europeu. Como a concepção de direito penal do inimigo interfere no ordenamento jurídico?

No Brasil, podemos dizer que alguns são considerados inimigos, pessoas com menos direitos, como é o caso dos moradores de rua. O artigo 5.º da Convenção Europeia ainda fala da possibilidade de deter vagabundos. É o direito penal do autor, policial. Durante a Copa do Mundo, os centros das cidades estavam cheios de polícia militar, protegendo os turistas. Foi criada uma sensação de segurança irreal. Pessoas na rua fazem parte de uma sociedade livre, temos que aceitar, mas ainda as tratamos como não-pessoas, como inimigos. Na América Latina existe o fenômeno da limpeza social. O direito penal do inimigo não é uma defesa de certo direito penal, como muitos interpretam por aqui, mas antes a descrição de um fenômeno. A concepção de inimigo poderia ser usada para aqueles que lutam contra a sociedade?

Se há um grupo que diz não aceitar os valores da sociedade democrática e quer destruí-la, como é o caso do Estado islâmico, isso nos leva a um ponto em que podemos falar de inimigos da sociedade, do nosso modelo de organização democrático-liberal. Se essas pessoas se colocam fora das nossas regras e não as aceitam, aí eu acho que podemos falar de inimigos da sociedade liberal. Não é possível discutir com um membro do Estado Islâmico e atuar com contraviolência. Não somos nós que os colocamos fora da sociedade, são eles que se põem para fora. Para Günther Jakobs, cada sociedade tem valores fundamentais, como liberdade de imprensa e dignidade humana, que devem ser compartilhados por todos. Aqui no Brasil se lê Jakobs a partir de uma tradução do espanhol e se falam bobagens. Qual a importância dos estudos sobre a América Latina na academia alemã?

Aprendemos muito mutuamente. Para entender como funciona o sistema criminal brasileiro, deve-se conhecer a sociedade brasileira. Não acho que o direito penal seja abstrato, algo técnico que possa ser implementado em um país sem considerar o contexto social prático. Para nós alemães, é uma aprendizagem em várias matérias. A ideia do centro é criar um espaço para pesquisadores, com uma biblioteca de livros de penal e processo penal do Brasil, da Espanha, dos EUA. Queremos fomentar o intercâmbio na língua espanhola e portuguesa. Para a maioria dos latino-americanos, o alemão é uma grande barreira e muitos não podem participar da universidade lá porque não sabem alemão. Somos o primeiro centro que oferece cursos em espanhol ou português e permite que um professor possa dar palesttra na sua língua na Alemanha.

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