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 | Ivonaldo Alexandre/Gazeta do Povo
| Foto: Ivonaldo Alexandre/Gazeta do Povo

Para o juiz de direito e constitucionalista Ingo Wolfgang Sarlet há muito que se comemorar nos 25 anos de vigência da Constituição Federal brasileira, principalmente no que diz respeito aos direitos e garantias fundamentais do cidadão. "Foi a primeira Constituição a falar de direitos fundamentais no Brasil, o que já foi um grande avanço", aponta. Mesmo assim ele acredita que o país ainda precisa progredir no seu ordenamento jurídico, embutindo mais a ideia de controle de convencionalidade na aplicação dos tratados internacionais quando em conflito com a Constituição. Sarlet concedeu esta entrevista à Gazeta do Povo durante o Congresso Nacional do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito, promovido pelo UniCuritiba entre os dias 29 de maio e 1º de junho. Gaúcho, filho de europeus, ele confessa que prefere o Brasil à Alemanha e o Grêmio ao Internacional. Ex-jogador de futebol, Sarlet conta que, agora, a paixão virou um interesse localizado. "Fiquei muito frustrado vendo futebol sem poder jogar", diz.

Nesses 25 anos de existência quais os avanços que a Constituição Federal trouxe à questão dos direitos fundamentais?

Foi a primeira constituição a falar de direitos fundamentais no Brasil, o que já foi um grande avanço. Os direitos e garantias fundamentais também passaram a ser mais operativos e a ter mais instrumentos de efetividade. Isso foi acoplado por outros avanços e, para alguns, inclusive, problemas, porque, para tornar direitos efetivos, é preciso que haja um Poder Judiciário forte, reforçar a cidadania para que ela tenha condições de mobilizar atores judiciais e um conjunto de ações constitucionais e procedimentos processuais para chegar aos tribunais. Direitos e garantias fundamentais são um misto de normas que reconhecem e atribuem direitos no plano material, mas que também estabelecem garantias procedimentais e organizacionais que tornam possível efetivar esses direitos muito mais do que era possível antes da Constituição de 1988, inclusive contra o próprio poder público, o que foi outra conquista.

Nesse aspecto, qual a importância da Cons­tituição de 1988 ter sido mais garantista?

O constitucionalismo sempre é um movimento de reação a situações sociais, econômicas e políticas, passadas e presentes. É natural que constituições pós-autoritárias sejam marcadas por um cunho democrático acentuado, um Poder Judiciário mais aparelhado, mais instrumentos de cidadania e por um catálogo de direitos e liberdades mais sólido, além de garantias de matéria penal e processual. Claro que esse sistema não é propriamente uma garantia de que não possa haver um novo golpe contra a Constituição, mas ele faz com que os mecanismos institucionais sejam mais resistentes.

Mas muita coisa foi incluí­da nela...

Sim, também nesse aspecto houve um avanço. A Constituição tem várias normas no catálogo de direitos e garantias que não estão convencionalmente presentes em constituições, como a criminalização do racismo, a penalização da tortura e a proteção reforçada do meio ambiente. Não chegamos ao ponto da Constituição equatoriana de assegurar direitos à natureza, mas a nossa Constituição prevê a proteção da flora e da fauna antes mesmo de algumas constituições europeias. Então, a Constituição brasileira, embora acusada de ser muito analítica, foi a nossa resposta.

Como o senhor vê o controle da constitucionalidade com as súmulas vinculantes?

A súmula vinculante é o instituto criado com o objetivo de uniformizar a jurisprudência, assegurar a autoridade das decisões dos tribunais superiores e vincular os órgãos judiciais e administrativos. O lado negativo é que, dependendo de como é formulado o enunciado, ele pode engessar de forma perigosa e virar muito mais normativo do que fático. Fatos iguais devem ser julgados da mesma forma e, na verdade, a súmula vinculante não faz isso, porque, em matéria de direitos aparentemente iguais, acontece um processo muito perigoso de se distorcerem os fatos para adequar o direito. Além disso, como a súmula vinculante é um enunciado normativo, tem força para reformar a Constituição, o que também nem sempre é bom.

E qual seria o melhor modelo?

No caso brasileiro, penso que o melhor é continuar apostando nos efeitos próprios das decisões de controle de constitucionalidade, não da súmula vinculante. Evidentemente, a introdução no Brasil de um sistema de precedentes, como é o inglês, depende de outros fatores, não só de uma introdução de cima para baixo, mas de um processo plural de reconhecer as autoridades dos tribunais superiores em dizer o direito. Enquanto os tribunais superiores brasileiros forem compostos de forma nem sempre reconhecida como legítima e tiverem uma jurisprudência muito vacilante, não vão conseguir consolidar um sistema de precedentes. Portanto, a convivência de sistemas judiciais formais ou informais de solução de conflitos sem qualquer hierarquia não é a solução, é o caos.

O senhor comentou que o Brasil continua fechado na questão da prevalência dos direitos humanos segundo os tratados internacionais...

Temos dois tipos de tratados de direitos humanos aos quais o Brasil se encontra vinculado: o sistema americano e o sistema internacional. Nossa Constituição tem várias cláusulas de abertura que falam da prevalência dos direitos humanos e também que os direitos desses tratados integram o sistema constitucional de direitos e garantias. A partir disso, temos um conflito de hierarquia normativa na medida em que o nosso Supremo Tribunal Federal não reconhece os tratados. Tendencialmente, nossos direitos são mais fortes que os do sistema internacional porque o sistema internacional estabelece padrões mínimos de proteção. Portanto, efetivo conflito só há quando a proteção fica aquém dos níveis mínimos internacionais, o que normalmente não é o caso, mas, às vezes, é. E o comum no Brasil é que não se checa realmente quando é ou não é o caso. É necessário se embutir mais isso hoje pelo controle de convencionalidade.

O senhor morou na Ale­manha. Quais as principais diferenças culturais que o senhor sente entre lá e o Brasil?

Abissais em alguns aspectos, mas nem tanto porque a gente também tem uma forte imigração alemã aqui. A Alemanha é um país extremamente maduro justamente por ter ido ao fundo do poço e passado por uma reconstrução. Então, apesar dos problemas, o índice de integração dos estrangeiros hoje é bastante forte por lá. Ao mesmo tempo, o valor que se dá à cidadania responsável se mede, por exemplo, nas eleições alemãs com índices de 80% de presença, mesmo com o voto facultativo. O nível médio de respeito um ao outro também é muito acentuado em relação ao nosso.

Mas, independente de profissão e condições de vida, o senhor prefere morar onde?

Eu sou brasileiro [risos], com forte ascendência europeia: meu pai é belga, e minha mãe, alemã. Sou um fã da cultura e da tradição jurídica e institucional alemã recente. Acredito que, com a devida incorporação, temos muito a aprender com eles, e eles, conosco. Evidente que lá há uma qualidade de vida bastante significativa em relação à nossa média. O Brasil precisa superar alguns desafios, como o da criminalidade e o da violência. A segurança é algo impagável. Também precisamos resolver o processo de reforma política para termos realmente um sistema democrático. Com isso, temos um potencial imenso para nos transformamos em um país tão avançado quanto ou mais que a Alemanha ou tantos outros que estão envoltos em uma camisa de força com a crise na Europa.

E a sua camisa é vermelha ou azul?

A minha é azul. Radicalmente azul [risos].

E o futebol?

O futebol foi uma paixão até os 32 anos, quando parei de jogar por questões físicas e, agora, passou a ser um interesse localizado. Quando eu parei de jogar futebol tentei me desvincular um pouco porque fiquei muito frustrado vendo futebol sem poder jogar.

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