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| Foto: Aniele Nascimento/Gazeta do Povo

Ficha técnica

Naturalidade: São Paulo (SP)

Currículo: livre docente, doutor e mestre pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professor titular da PUC-SP. Procurador de Justiça do Estado de São Paulo aposentado. Advogado

Juristas que admira: Franz Wiacker, Francisco Carnelutti, Giuseppe Chiovenda, Enrico Tullio Liebman, Friedrich Muller

Está lendo: I contratti del consumatore, Guido Alpa

Nas horas vagas: participa da Sociedade de Cultura Artística de São Paulo e frequenta a Ópera de Munique

As críticas de Nelson Nery Jr. ao novo Código de Processo Civil partem de um ponto: o espírito de salvador da pátria atribuído ao texto legal. O respeitado jurista discorda da falta de debate do código, que ele enxerga como imposição dos tribunais superiores. A categoria do precedente obrigatório, que está presente no novo CPC, também desagrada Nery, por colidir contra o espírito democrático. Em entrevista ao caderno Justiça & Direito durante sua passagem pelo XI Simpósio de Direito Constitucional da ABDConst, o advogado comentou suas impressões sobre esses e outros assuntos da área jurídica.

Qual a sua opinião sobre o projeto do novo Código de Processo Civil (CPC)?

Minha opinião sobre o novo CPC é bastante objetiva e clara. Eu não elogio aquilo que não pode ser elogiado e também não faço crítica gratuita só por criticar. Se você tiver um projeto que melhore a lei brasileira, ninguém pode ser contra. Eu não sou contra a melhora da lei brasileira e nem posso ser. Leis são obras humanas e, se elas contêm equívocos, o direito precisa acompanhar as mudanças que ocorrem no mundo, e as mudanças para melhorar são bem-vindas. A minha crítica ao novo CPC é a respeito do espírito messiânico que se quer dar a ele, que diz que, se aprovada esta lei, todo o problema do Brasil está resolvido. A justiça não vai mais ser morosa, os processos vão terminar rápido, agora todos seremos felizes para sempre porque temos um novo CPC. É contra essa ideia messiânica que eu me insurjo na verdade. Porque o CPC atual é espetacularmente bom, esse é o ponto. Agora, se ele não é bem cumprido, não é bem aplicado pelo juiz ou não é bem manejado pelo advogado que não sabe levar corretamente sua pretensão ao juízo é uma outra coisa.

Qual seria o problema então?

Nós temos leis ótimas, como o Código de Defesa do Consumidor (CDC) e a Lei da Ação Civil Pública, que não têm a eficácia que as leis deveriam ter, não têm efetividade. Nosso problema não é de lei, nosso problema é de cultura, de mentalidade, de aplicação da lei por todos aqueles que intervêm nesse processo. Não estou fazendo uma crítica ao Poder Judiciário. É uma crítica à advocacia, ao Ministério Público, ao Judiciário, à própria sociedade brasileira, que não está informada de tudo aquilo de que pode fazer uso com o cabedal de legislação que nós temos aqui no país. Por isso eu sou bastante cético em relação a este novo CPC. O que me incomoda é que quem está dando a pauta do novo CPC não é o povo brasileiro. São os tribunais superiores. Criou-se uma aura em torno disso, de que precisamos impedir que recursos cheguem ao Superior Tribunal de Justiça e ao Supremo Tribunal Federal. Com isso, vale tudo para desafogarmos aqueles tribunais.

Qual é sua crítica em relação aos precedentes obrigatórios do novo CPC?

Isso é básico, nem no common law, que é um sistema diferente do nosso, adotado nos países da Commonwealth [EUA, Inglaterra, Austrália, Nova Zelândia etc.], o precedente vincula. E o que é precedente não é a corte que vai dizer, é o juiz seguinte no sistema do common law. O precedente que deu o start para analisarmos o controle jurisdicional da constitucionalidade das leis foi o caso Marbury vs. Madison nos Estados Unidos, que é de 1803 e só foi aplicado como precedente mais de 100 anos depois. Mesmo assim o decisum do caso Marbury vs. Madison não é o que deu o precedente, o que gerou o precedente estava jogado no meio da decisão, o que chamaríamos de obiter dictum, um fundamento. Ou seja, nem lá vincula a decisão principal. No sistema do common law, o tribunal decide e só 50, 100, 200 anos depois é que nós vamos saber se vai se tornar ou não precedente. E por um juiz que vai julgar no futuro, e não por aquele que vai impor que agora vocês vão obedecer à minha ordem. Em regime democrático, não acontece a imposição de decisão do Poder Judiciário goela abaixo do juiz do primeiro grau para estandartizar a justiça brasileira e ninguém poder mais litigar contra aquilo. No momento em que vou entrar com uma ação, o funcionário do protocolo vê que isso é contra a súmula, bate um carimbo e está julgada a minha ação improcedente. Eu nem entrei com a ação, fui impedido de entrar. Em um artigo que escrevi, citei que a cláusula pétrea do direito de ação, que está no artigo 5º, XXV da Constituição, na verdade pode ser transformada em cláusula de algodão, tal o ridículo que se quer colocar com esse novo CPC.

O senhor concorda com a proeminência do direito jurisprudencial?

Esse termo do direito jurisprudencial para mim é impróprio e pejorativo. Desde quando tribunal profere decisão que vincula? O que vincula é a lei. A Constituição não vincula e a decisão do juiz vai vincular? Então o juiz não é obrigado a observar a constituição nem a lei, mas somos todos obrigados a observar a decisão do juiz? Que democracia é essa? É contra isso que estou me insurgindo. Nós não podemos criar esse direito jurisprudencial, que muda a toda hora. No STJ, no mesmo dia tem julgamento da mesma turma com o mesmo relator que decide a mesma tese com soluções diferentes. Não é que a jurisprudência varia, o ministro varia no mesmo dia. De manhã ele julga A, ao meio dia, B, e à tarde, C, sobre a mesma tese. É essa jurisprudência que a gente quer que vincule? Não perguntaram ao povo brasileiro se é isso que ele quer. Fizeram um projeto lá no Congresso Nacional, com a aura de que foi debatido na Câmara, a casa do povo. Democracia não é assim que se faz. Nós temos uma democracia de fachada no Brasil, porque esse código não foi discutido com ninguém, não se deu o amplo debate que se deveria dar a uma lei da magnitude do Código de Processo Civil.

O senhor participou da formulação do Código de Defesa do Consumidor, de 1990. É preciso adaptação no texto legal?

É a mesma crítica que eu fiz ao CPC. A lei é boa, tanto que está sendo copiada no mundo inteiro, os estrangeiros olham e acham uma maravilha. Mas devagar com o andor, porque no Brasil não é bem assim porque não aplicam. Uma coisa é você ter a lei que é boa, outra coisa é você ter a aplicação e a efetividade da lei, que nós não temos. O CDC não precisa ser mudado. Fizeram três projetos de lei agora no Senado: um de alteração da parte processual, que não está prosseguindo, e outras duas alterações, uma para criar o comércio eletrônico e outro capítulo do superendividamento. As duas coisas já estão reguladas no CDC, já há mecanismos para proteger o consumidor.

Falta conhecimento do legislador da lei vigente?

Não, porque a turma que está fazendo as alterações é capitaneada pelo ministro Herman Benjamin, que foi um dos autores comigo do CDC. Existem plataformas políticas de algumas ideias que se quer implantar no CDC. Um contrato eletrônico nada mais é do que um contrato. Proteção contratual no CDC está extremamente bem colocada, como fala o artigo 46 do CDC. Os detalhes são tirados da interpretação doutrinária, do marco civil da internet, que regula a questão de provedor de acesso. Eu acho que é desnecessário essa mudança. Na parte processual, eu tive uma discussão longa com a Ada Grinover, que foi autora do CDC e capitaneou essa reforma processual. Ela disse que precisa mudar porque está sem efetividade. E eu falei que a efetividade existe dentro do CDC, mas a interpretação que a doutrina deu, inclusive a Ada, de apequenar o Ministério Público, falando que não tem legitimidade para a defesa de direitos individuais homogêneos, fez com que o CDC perdesse efetividade. Agora, se interpretassem o código como ele deveria ser interpretado, o que eu faço desde o início, não precisaria de uma nova mudança na parte processual. A lei está lá e é boa, mas as pessoas não sabem cumpri-la ou não cumprem e aí querem mudar a lei com o argumento de que agora vai resolver. E será mais uma lei que não será cumprida.

O senhor é um dos maiores pareceristas do Brasil. Como é o mercado nacional de pareceres?

No mercado de pareceres, não é parecerista quem quer ser parecerista. Eu vejo muitas vezes colegas magistrados ou ministros que pensam em se aposentar e dar parecer. Não é assim que funciona, não é você que quer dar parecer. Você tem que ser contratado para dar parecer. O mercado que faz você ser um parecerista e não você que se coloca à disposição. Quem dá um parecer hoje já tem uma estrada andada. Eu sou bastante procurado felizmente em muitas áreas. Às vezes o parecerista tem uma especialidade e ele dá pareceres na especialidade dele. Eu dou em praticamente todas as áreas: penal, processo penal, constitucional, administrativo, ambiental, consumidor, societário, processo civil, o que é um diferencial. O meu parecer custa cinco vezes mais do que a grande média do Brasil cobra para dar parecer.

Colaboração: Paulo Ferracioli, especial para a Gazeta do Povo.

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