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O Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR) admitiu, no dia 18 de novembro do corrente ano de 2016, nos autos do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR n.º 1537839-9), a pedido da Fazenda Pública Estadual, o primeiro pedido de instauração de IRDR do estado. O objeto da controvérsia é a inclusão, na base de cálculo do ICMS-Energia Elétrica, dos valores referentes à Tarifa de Uso de Sistema de Distribuição de Energia (TUSD) e à Tarifa de Uso do Sistema de Transmissão de Energia TUST.

Em linhas gerais, os contribuintes argumentam que o tributo deveria incidir somente sobre o valor da mercadoria (no caso, a energia), e não sobre o seu transporte, bem como que apenas os valores envolvidos na operação final, realizada entre distribuidora de energia Elétrica (Copel) e consumidor, deveriam ser considerados para fins de base de cálculo.

A solução da controvérsia não demanda maiores divagações, desde que se aplique ao caso a mesma sistemática do ICMS incidente nas operações relativas à circulação das demais mercadorias.

Pois bem. Ainda que a energia elétrica brasileira esteja entre as mais caras do mundo e que, num momento de crise, ninguém pague de bom grado elevados tributos, as decisões judiciais não podem ser pautadas por critérios meramente econômicos – seja em favor da Fazenda Pública, seja em favor dos contribuintes.

Num Estado de Direito, tributa-se dentro dos estritos limites fixados pelas leis e pela Constituição. A legalidade tributária, direito fundamental dos contribuintes brasileiros e pilar de nosso Estado Democrático, decorre da ideia segundo a qual as pessoas só estão obrigadas a contribuir para os gastos públicos até o limite com o qual tenham assentido por meio de seus representantes eleitos (no taxation without representation).

Quer-se dizer com isso que todos os elementos da regra de incidência tributária devem vir discriminados no instrumento normativo primário criador do tributo (em regra, lei ordinária), desde que referido instrumento esteja também em consonância com os ditames da Carta Constitucional.

Prescrevendo a Constituição de 1988 que o ICMS incide sobre operações relativas à circulação de mercadorias (elemento material do tributo), pode-se chegar à inarredável conclusão de que a base de cálculo do tributo (elemento quantitativo) diz respeito ao valor da referida operação de circulação. Em outros termos, nas operações mercantis, o preço constitui a base de cálculo do ICMS.

Para a formação do preço de uma mercadoria, por sua vez, o comerciante deve levar em consideração numerosos componentes, como o valor da matéria prima utilizada, os salários dos empregados envolvidos nas operações, o eventual aluguel pago ao proprietário do imóvel-sede da empresa, além de outros tributos incidentes sobre as mesmas operações. Em resumo, todos os custos da operação integram a base de cálculo do ICMS (Lei Complementar n. 87/96, art. 13, inciso I).

No caso do cálculo do ICMS incidente sobre as operações de circulação onerosa de energia elétrica – considerada bem móvel por força da norma contida no art. 83, inciso I, do Código Civil de 2002 –, a situação não é diferente. Também aqui devem ser somados todos os custos que integram a cadeia econômica de circulação da energia, desde sua geração, na usina hidrelétrica, até o consumo da mercadoria, momento a partir do qual se considera concluída a operação.

Entre a geração da energia e o consumo, porém, atuam empresas responsáveis pela redução da (elevada) tensão da energia produzida pelas usinas, conhecidas como transmissoras e distribuidoras. Referidas empresas, contribuintes do ICMS, ressalte-se, têm a missão de disponibilizar o moderno aparato tecnológico (composto por grandes torres de transmissão e distribuição, além de cabos de alta tensão e outros componentes) indispensável ao fornecimento do produto final.

As tarifas – regulamentadas pela Aneel – pagas pelas pessoas jurídicas fornecedoras de energia ao consumidor (como a Copel) para remunerar a estrutura mencionada no parágrafo anterior, conhecidas como Tarifa de Uso do Sistema de Transmissão e Tarifa de Uso do Sistema de Distribuição, e aqui não podem restar dúvidas, configuram custos de operação, integrantes da base de cálculo do ICMS-Energia Elétrica.

Essas tarifas assemelham-se àquela recolhida às empresas de telefonia a título de assinatura mensal básica telefônica – destinada a custear os gastos com a infraestrutura necessária à realização da comunicação –, também integrante da base de cálculo do ICMS-Comunicação, como bem decidido pelo Supremo Tribunal Federal quando do julgamento do Recurso Extraordinário n. 912988, realizado em meados de outubro deste ano.

Demais disso, desde o advento da chamada “desverticalização do setor de energia elétrica”, determinada pela Lei 10.848 de 15 de março de 2004, momento em que a Aneel vedou que uma mesma pessoa jurídica ocupasse mais de uma posição na cadeia econômica de circulação da energia, não há mais como sustentar a tese de que a inclusão da TUSD e da TUST na base de cálculo do ICMS provocaria ofensa ao enunciado n.º 166 da Súmula do Superior Tribunal de Justiça, segundo o qual “não constitui fato gerador do ICMS o simples deslocamento de mercadoria de um para outro estabelecimento do mesmo contribuinte”. Sendo as atividades de geração, transmissão, distribuição e fornecimento de energia desempenhadas necessariamente por pessoas jurídicas distintas, revela-se indiscutível a incidência do imposto.

Não bastasse isso tudo, há previsão expressa na Constituição Federal de 1988 dispondo que todos os custos da operação, desde a geração (pela Usina) até o consumo, devem ser levados em conta para cálculo do montante devido a título de ICMS-Energia Elétrica, como se pode perceber pela leitura do art. 34, § 9.º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias; confira-se:

Art. 34. (...) § 9.º Até que lei complementar disponha sobre a matéria, as empresas distribuidoras de energia elétrica, na condição de contribuintes ou de substitutos tributários, serão as responsáveis, por ocasião da saída do produto de seus estabelecimentos, ainda que destinado a outra unidade da Federação, pelo pagamento do imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias incidente sobre energia elétrica, desde a produção ou importação até a última operação, calculado o imposto sobre o preço então praticado na operação final e assegurado seu recolhimento ao Estado ou ao Distrito Federal, conforme o local onde deva ocorrer essa operação.

Prescrevendo o texto constitucional que o imposto incide desde a produção ou importação até a última operação, revela-se quase impossível defender que, no momento da fixação do preço da operação final, os custos das etapas anteriores sejam simplesmente ignorados.

Afirmar que o ICMS só incide no momento do consumo é bastante diferente de afirmar que a energia “brota” da empresa de distribuição, e que as fases anteriores da cadeia econômica são irrelevantes. A verdade é que não há consumo de energia sem que esta seja previamente gerada (pelas usinas) e tenha sua tensão reduzida pelas empresas de transmissão e distribuição.

A exclusão de algum dos componentes conformadores do preço da operação da base de cálculo do ICMS, por caracterizar verdadeira hipótese de isenção tributária, só seria válida se fosse instituída mediante lei específica, ou seja, lei criada com o objetivo precípuo de reduzir o tributo (Constituição Federal, art. 150, §6º), ou mesmo Decreto Específico, precedido de Convênio aprovado de maneira unânime no âmbito do Conselho Nacional de Política Fazendária – CONFAZ (Constituição Federal, art. 155, §2º, XII, g c/c Lei Complementar n.º 24/75, art. 2º, §2º). Não se admite a criação de isenções por decisões judiciais, uma vez que o poder de isentar é corolário do poder de tributar.

Não à toa, acatando os argumentos aqui apresentados, a 2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, na Apelação Cível e Reexame Necessário n.º 1.405.792-0, deu provimento ao recurso interposto pelo estado do Paraná para o fim de reformar a sentença de primeiro grau, julgando o pedido improcedente, no sentido de reconhecer a validade da inclusão de todos os custos de operação, inclusive aqueles referentes à TUSD e à TUST, na base de cálculo do ICMS-Energia Elétrica. Na oportunidade, refutou-se a aplicação do supracitado enunciado de súmula n.º 166 do STJ, sob o argumento de que a cadeia econômica de circulação da energia, desde a implementação da desverticalização do setor de energia elétrica, conta com a participação de diversas empresas distintas.

Mais recentemente, nos autos de Suspensão de Liminar n.º 1.475.643-5, a Presidência do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, levando em consideração os graves riscos às finanças públicas do Estado, bem como o fato de o Superior Tribunal de Justiça jamais ter analisado o mérito da controvérsia à luz da desverticalização supracitada, determinou a suspensão imediata da eficácia de todas as decisões referentes à matéria – ainda não transitadas em julgado – proferidas no Estado do Paraná.

Esse posicionamento, digno de aplausos, representa, a nosso sentir, a fiel análise da estrutura constitucional e legal do ICMS, tendo o Tribunal de Justiça analisado a questão a ele submetida de maneira escorreita e ponderada.

Em suma, as tarifas (TUSD/TUST) representam apenas elementos – dentre vários outros – que compõem o preço da mercadoria adquirida pelo consumidor, vale dizer, a energia elétrica, integrando, como já se disse, a base de cálculo do ICMS.

Não custa salientar, por fim, que a controvérsia aqui analisada diz respeito exclusivamente aos chamados “consumidores cativos” (pessoas físicas e jurídicas obrigadas a adquirir energia das empresas de distribuição), não aos chamados “consumidores livres” (grandes empresas autorizadas a comprar energia diretamente dos fornecedores, por meio de livre negociação). A discussão a respeito da inclusão da TUSD e da TUST na base de cálculo do ICMS, no caso de consumidores livres, está sendo analisada pelo Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial n.º 1163020.

Eduardo Moreira Lima Rodrigues de Castro, mestre em Direito do Estado (Direito Tributário) pela UFPR, professor de Direito Tributário em Cursos de Graduação e Pós-graduação, é procurador do Estado do Paraná e Chefe do Núcleo Jurídico da Administração na SEFA/PR.
Julio da Costa Rostirola Aveiro, mestrando em Direito do Estado (Direito Tributário) pela UFPR, é procurador do Estado do Paraná e Chefe da Procuradoria do Contencioso Fiscal.
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