
Desde fevereiro, um caso de racismo em Araucária, região metropolitana de Curitiba, tem ganhado projeção e reacendido os debates sobre racismo no Brasil. Janete Martins, uma doceira de 44 anos, recebeu diversas mensagens anônimas por cartas, pelo celular e pela internet. Janete registrou a ocorrência e os atos estão sendo investigados pela polícia como crime de racismo, com base no artigo 20 da Lei 7716/1989, mas nem todas as vítimas desse tipo de atitude têm a mesma atenção do Estado brasileiro, mesmo passados mais de 60 anos desde a aprovação da primeira lei contra o racismo no país.
Mariana Bazzo, promotora e coordenadora do Núcleo de Promoção de Igualdade Étnico-Racial do Ministério Público do Paraná (MP-PR), destaca que, nos últimos anos, inúmeras ações têm sido empreendidas para combater o problema da subnotificação, o que ocorre quando a quantidade de determinados tipos de crimes é bem menor nas ocorrências policiais do que na realidade. “O próprio caso da Janete foi inicialmente registrado como injúria, embora o caso dela seja nitidamente de racismo”, relata Mariana.
Silvana de Oliveira, presidente da Comissão de Igualdade Racial da OAB do Paraná e a primeira mulher negra a presidir uma comissão da OAB no estado, observa que um dos principais empecilhos ao combate ao crime de racismo é a falta de informações que as pessoas têm sobre o assunto. “Existem muitos casos de pedestres e crianças agredidas verbalmente e até fisicamente nas ruas e nas escolas e nosso desafio é informar população de que isso é um crime que é punido”, diz a advogada.
Mariana destaca que, entre 2013 e 2015, as denúncias de racismo e de injúria racial aumentaram em 511% no estado do Paraná. A promotora atribui esse aumento às iniciativas do Ministério Público junto às Polícias Militar e Civil e à população como um todo, com apoio da OAB do Paraná e da Secretaria Especial de Políticas de Promoção à Igualdade Racial do governo federal. De acordo com a promotora, a campanha do MP-PR teve dois focos: “As pessoas não podem aceitar duas coisas na hora de registrar um crime racial: primeiro, a confecção de um termo circunstanciado, porque os crimes de racismo ou injúria racial nunca vão para o juizado especial, então sempre haverá inquérito; segundo, que não fosse feita a correta capitulação, diferenciando entre injúria racial e crime de racismo”, resume a promotora.
Racismo e injúria racial
Os atos que a linguagem corrente trata todos como racismo têm diferenças à luz do direito. No Brasil, o artigo 1º da Lei 7.716/1989 prevê que “serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. A lei prossegue elencando em seus artigos uma série de condutas que configuram crimes, como recusar ou obstar o ingresso de pessoas em empregos, estabelecimentos públicos e comerciais em razão de discriminação ou preconceito, e que acarretam diferentes penas.
Christiano Jorge Santos, promotor em São Paulo, professor de Direito Penal da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP) e autor do livro Crimes de preconceito e de discriminação: análise jurídico-penal da Lei n.7716/89 e aspectos correlatos, explica a diferença entre preconceito e discriminação. “Preconceito é uma concepção mal elaborada racionalmente sobre determinada pessoa. Por exemplo, quando alguém diz que todos os negros são preguiçosos ou bandidos, porque cresceu ouvindo isso”, diz. O promotor ressalva que a lei não pune o preconceito, mas sua manifestação. “A manifestação desse preconceito pode ser verbal, gestual ou por meio da discriminação, que é uma diferenciação de uma pessoa negando a ela direitos a que teria acesso”, afirma.
A questão se complica quando se trata de diferenciar entre a conduta descrita pelo artigo 20 da Lei 7716/1989, que prevê o crime de “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”, e a conduta descrita no §3º do artigo 140 do Código Penal (CP), chamada de injúria qualificada ou injúria racial. “Quando se fala em racismo ou manifestação de preconceito racial, existe uma alusão a toda uma categoria: por exemplo, se eu digo ‘todo negro é bandido’. Mas quando eu falo ‘você, fulano, é um negro bandido’, isso é uma injúria racial, porque estou praticando uma ofensa contra determinada pessoa, mas não contra o coletivo”, elucida o promotor.
A importância da distinção não é só de nomenclatura. Os crimes de racismo que constam da Lei 7716/1989 são todos inafiançáveis e imprescritíveis, por causa da previsão do inciso XLII do artigo 5º da Constituição Federal. Nesses casos, a ação judicial é de iniciativa pública e incondicionada, ou seja, o Ministério Público deve entrar com o processo independentemente da vontade da vítima, uma vez que o bem jurídico tutelado é a coletividade. Já no caso do §3º do artigo 140 do CP, a vítima tem até seis meses para denunciar o caso e a ação é de iniciativa pública condicionada, ou seja, o Ministério Público precisa da anuência da vítima para entrar com o processo.



