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Logo na abertura do seu magnífico A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos, Fábio Konder Comparato traz o alerta de que “a compreensão da dignidade suprema da pessoa humana e de seus direitos, no curso da História, tem sido, em grande parte, fruto da dor física e do sofrimento moral. A cada grande surto de violência, os homens recuam, horrorizados, à vista da ignomínia que afinal se abre claramente diante de seus olhos; e o remorso pelas torturas, pelas mutilações em massa, pelos massacres coletivos e pelas explorações aviltantes faz nascer nas consciências, agora purificadas, a exigência de novas regras de vida digna para todos.” Muito embora terrível, o sofrimento precisa trazer a compreensão – não dos atos que o causaram, mas do que deixou de ser feito para que ele ocorresse. O Direito há de estar atento às tragédias e aprender com elas, a fim de que os fatos não sejam esquecidos e, ao mesmo tempo, jamais se repitam.

Ocorre que, nos dias de hoje, as catástrofes já não são mais circunscritas a agressões presentes, individuais ou coletivas, mas igualmente tendem a assumir uma dimensão futura e difusa. Isso sobretudo nos desastres ambientais. Assim, a violência do homem sobre a natureza pode ter o condão de instalar sofrimentos sem fronteiras – nem cronológicas, nem físicas. O tempo presente deixa de ter relevância exclusiva quando pensamos nas futuras gerações, que não mais poderão se sustentar devido a desastres produzidos pelos abusos e falta de cuidados. Por isso que as gerações atuais precisam ser normativamente impedidas de instalar condutas que tornem insustentável o desenvolvimento futuro.

O Direito precisa pensar, cada vez com maior intensidade, na ampla, irrestrita e transversal incidência da proteção ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (Constituição, art. 225). As preocupações de Direito Ambiental atravessam, horizontalmente, todas as demais disciplinas jurídicas, incidindo sempre que houver a potencialidade de danos ao equilíbrio ambiental. A lógica para as ações humanas que possam causar agressões ao meio ambiente há de ser acautelatória: tanto a prevenção (quando os riscos já são previamente conhecidos e podem ser objeto de específicas medidas) quanto a precaução (quando não se conhecem os riscos: a ignorância exige que se transfira o ônus da prova da inocuidade ambiental do legislador e do administrador para a pessoa privada que pretende instalar a atividade potencialmente lesiva).

Isso há de fazer com que tragédias como as do Rio Doce sejam inibidas, a fim de que não surjam desastres cuja dimensão é naturalmente incomensurável. Afinal, jamais se saberá quantificar o exato significado – econômico e social – da notícia de que o rompimento da barragem levará a destruição a dezenas de cidades, desde o Estado de Minas Gerais até o mar que banha o Espírito Santo. A catástrofe, que trouxe consigo a morte de pessoas, de cidades, de animais e vegetais (com a correspondente impossibilidade do desenvolvimento de atividades econômicas de sobrevivência – pesca e agricultura, por exemplo – a centenas de famílias), não pode ser economicamente definida com precisão. Em outras palavras, os danos jamais serão reparados, mas apenas parcialmente compensados.

Daí a necessidade de repensarmos, com muito mais intensidade, o verdadeiro significado estrutural oriundo da Lei 12.349/2010, que inseriu a promoção do desenvolvimento sustentável no art. 3º da Lei 8.666/1993, ao lado da isonomia e da seleção da proposta mais vantajosa para a administração. Hoje, são estes três os princípios fundamentais das licitações brasileiras. Isto é, o princípio do desenvolvimento nacional sustentável não pode ser compreendido como mera figura de linguagem, a se perder na burocracia estatal. Nem tampouco pode ser aplicado de forma tímida, muitas vezes com lastro no argumento de que as exigências ambientais gerariam custos extraordinários, tornando excessivamente onerosos os contratos administrativos brasileiros.

O que a positivação de tal princípio revela é a transformação estrutural das licitações e contratos administrativos brasileiros, conferindo significado normativo específico ao que se pode entender por “contratação mais vantajosa”. A “vantagem” não pode ser compreendida como o menor preço presente, a gerar futuros custos incomensuráveis. Ao contrário: o que a norma exige é que se invista no presente, na melhor alternativa possível para que se prestigie o dever de proteção ativa do meio ambiente ecologicamente equilibrado. Já se passou o tempo da irresponsabilidade ambiental nas contratações – públicas e privadas – brasileiras. Precisamos, lamentavelmente, aprender com a tragédia do Rio Doce.

*Egon Bockmann Moreira: Advogado. Doutor em Direito. Professor da Faculdade de Direito da UFPR. Professor visitante da Faculdade de Direito de Lisboa (2011) e do Centro de Estudos de Direito Público e Regulação - CEDIPRE, da Faculdade de Direito de Coimbra (2012). Conferencista nas Universidades de Nankai e de JiLin, ambas na China (2012). Palestrante nos cursos de MBA, LLM e Educação Continuada na FGV/RJ. Escreve às segundas-feiras, quinzenalmente, para o Justiça & Direito.

** As opiniões expressas nas colunas apresentam o ponto de vista de seus autores e não refletem o posicionamento do caderno Justiça & Direito, nem do jornal Gazeta do Povo.

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