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No dia 17 de outubro deste ano, a convite da Paula Carina de Araújo, chefe da Biblioteca do Setor de Ciências Jurídicas da UFPR, eu fiz uma breve palestra na BiblioCamp Curitiba 2015. Paula e eu somos amigos; volta e meia ela me desafia a falar para bibliotecários. Quase sempre, o tema é a minha paixão pelos livros. Neste ano de 2015, a palestra teve algumas pitadas a mais. Achei melhor manter o estilo coloquial da prosa que mantive com o auditório. Confiram:

Muito bom dia a todos. Em primeiro lugar, eu gostaria de agradecer imensamente ao convite da Paula Carina. Para mim é uma alegria muito grande poder conversar com vocês – que vivem e respiram livros – sobre a minha relação apaixonada com a leitura. Sobretudo porque hoje contarei com a ajuda de uma pessoa muito especial, o meu filho, Rodrigo Cuéllar Bockmann Moreira, que se dispôs a interagir conosco – e cuja interação, assim espero, prestar-se-á a demonstrar algo que ficará em suspense durante a minha exposição.

Para a conversa desta manhã, eu pretendo retomar algo que ficou em aberto no meu pensamento desde 2011 – por culpa da Paula. Ela havia me convidado para a Semana do Livro e da Biblioteca, no salão nobre desta Faculdade de Direito da UFPR, a fim de falar a respeito de bibliofilia. Mas posso lhes dizer que foi bem complicado organizar aquela conferência.

Efetivamente, falar a propósito do meu amor pelos livros é algo, ao mesmo tempo, fácil e difícil. É fácil porque faz parte do meu cotidiano – os livros habitam a minha vida como o sol que nasce todas as manhãs. Peixes nadam, cães latem, pássaros voam – e o Egon sempre tem um livrinho por perto (às vezes nem leio, mas necessito da proximidade...). Mas também é difícil porque essa paixão, como todas as outras, é complicada de explicar: eu não sei por que sou tão vidrado em livros e para quê eu me relaciono tão intensamente com eles.

Afinal, não contente só em ler, eu resolvi também escrever – e escrever, como disse a Clarice Lispector, “é uma maldição, mas uma maldição que salva. Salva a alma presa, salva a pessoa que se sente inútil, salva o dia que se vive.” Claro que a minha escrita não chega aos pés da de Clarice – eu escrevo livros técnicos, não sei escrever romances nem contos ou crônicas, mas o sentimento é o mesmo: a escrita, assim como a leitura, me salva. Eu escrevo porque me faz bem; porque é desafiador e gosto de escrever, assim como gosto de ler. Mas, pelo menos para mim, não é exatamente um passeio no parque. Exige dedicação e, sobretudo, persistência. E abdicar da arrogância: sempre penso que meus textos deveriam ser melhores do que aqueles que consigo publicar (imagino que eu suponha ser “melhor” do que a minha própria escrita). Mas, como o dia do texto perfeito ainda não amanheceu, sigo publicando o que consigo escrever...

Pois, naquela palestra de 2011, eu falei que a literatura liberta. Por meio da leitura – sobretudo romances, contos, ensaios – nós somos transportados para outros mundos, para lugares que nos libertam das angústias do dia a dia. Esquecemos de nós mesmos – ou nos lembramos, refletimos e nos questionamos. Por meio da leitura abandonamos as vicissitudes do nosso cotidiano e passamos a viver outras vidas, a conhecer outros povos e outros costumes, a descobrir mundos e pessoas que, até então, nos eram inacessíveis. Muitos dos quais nem sequer existem de fato, mas vivem apenas na nossa imaginação. Os livros libertam.

Porém – e aqui surgiu a semente da minha inquietação -, depois de eu ter falado, o presidente da mesa fez o resumo das exposições e disse que a minha trazia uma abordagem terapêutica da leitura, do amor pelos livros como algo terapêutico. Terapêutico? Como assim? Que história é essa? Eu faço terapia, mas não é a mesma coisa que leitura (se bem que algumas das melhores dicas literárias que recebi foram dadas pelo meu terapeuta: há amigos que dizem que eu vou lá não para conversar com um psicólogo, mas sim para pegar palpites de livros e discos).

Mas essa frase do presidente da mesa me inquietou; durante anos fez-me pensar bastante e retornar à origem do meu amor pela leitura. Como ele surgiu? De onde ele vem? Por que persiste tão forte?

Eu tenho para mim que minha paixão pelos livros vem do exemplo do meu pai – e, aqui, talvez a ideia da leitura como processo de libertação adquira outros contornos. O meu pai foi um grande leitor, desde sempre leu bastante – e lia os livros até o final: começo, meio e fim. Nunca ouvi ele se queixar da leitura de um livro. Ele lia, acabava e, depois, dizia se o livro era bom ou ruim; bem ou mal escrito; indispensável ou supérfluo; chato ou agradável. Mas todos eram lidos.

Muito embora ele não tenha conseguido fazer curso universitário algum – as exigências da vida não permitiram - desde jovem lia muito, inclusive livros proibidos. Até hoje, tenho uma edição deste livro, que peço ao Rodrigo para ler o título: El Caballero de la Esperanza, de Jorge Amado, impresso em 1942 pela Editora Claridad, de Buenos Aires, mas cuja sobrecapa é a do Paso a Paso, de Winston Churchill (com a fotografia, carrancuda, do célebre primeiro-ministro inglês). O livro era proibido na ditadura Vargas: comprar, só por meio de contrabandistas – que o ofereciam com sobrecapa falsa e com ou sem o autógrafo de Jorge Amado e de Luis Carlos Prestes. Meu pai, que então contava com 22 anos e sustentava a família (havia se tornado órfão de pai aos 15), achou melhor não arriscar: possuir o livro já seria encrenca; com o autógrafo de ambos, nem pensar. (Dia desses descobri, por meio do Adorável comunista, de Antonio Risério, que quem conseguia esses livros era o Partido Comunista da Bahia, devido às suas boas relações com o Partido Comunista Argentino – que os mandava para serem vendidos por debaixo do pano na Pastelaria Triunfo, na Praça Municipal de Salvador.) Este “livro proibido” habita nossa família há mais de 70 anos – veio de Salvador para Curitiba, onde por 20 anos morou na avenida Getúlio Vargas (suprema ironia!), passou pela rua Visconde do Rio Branco e hoje está em Santa Felicidade.

Já se pode imaginar, portanto, que, desde sempre, eu conheço o meu pai como um homem que lê. Ocorre que, a partir de 1974-1976 (o meu pai contava com 52-54 anos), ele não pode mais andar. Viveu até 1986, caminhando por meio de uma cadeira de rodas. Nesse meio tempo, por volta de 1977, funcionário público que era, foi aposentado por invalidez: apesar de estar na plena força, naquela época não havia qualquer tolerância a portadores de necessidades especiais. E assim ele viveu, conosco todos os dias.

O que meu pai fez nestes anos? Acordava cedo, tomava o café da manhã, fazia alguns exercícios, sentava na “poltrona do papai” na sala da frente da casa, que tinha uma janela enorme, e lia. Almoço, descanso, exercícios e novamente leitura na frente da janela – até o Jornal Nacional e o sono. Lia o dia inteiro (às vezes, ouvia alguma fita k-7 de tango, música erudita ou de música popular brasileira, mas não tinha mais do que uma caixinha de fitas TDK C-90). Foram mais de 10 anos nessa rotina – vivida por ele com paz de espírito, amor pelos seus, tranquilidade e exemplo de persistência.

Mas lia o dia inteiro e, de vez em quando, olhava pela janela, via o mundo lá fora – onde ele não podia andar - e refletia a respeito da leitura. Conversa muito conosco – com minha mãe, meu irmão, comigo e com os nossos amigos -, quase sempre a respeito da leitura e da vida. Era bom de prosa.

Quando pensei nisso, vi quão certo estava o presidente da mesa daquele seminário de 2011. O meu amor pelos livros – e a compreensão libertadora que deles tenho – é, sim, bastante terapêutica. Por meio do exemplo do meu pai, eu soube que o livro efetivamente liberta e que, nessa vida, nessa uma só vida que às vezes é tão cruel conosco, a leitura nos permite viver outras vidas.

Mas quais são as vidas que hoje eu vivo? São muitas – e muito confusas, algumas delas pela metade, outras tantas que estão ansiosas a me esperar para vivê-las.

Para demonstrar a confusão que hoje impera na minha existência, eu trouxe os livros que estavam na minha mesinha de cabeceira. Vou pedir ao Rodrigo que leia os títulos e, em seguida, que os leve à audiência – para que possamos folheá-los e dar uma olhada, bem de perto, em todos. São eles: Le grand roman de la physique quantique: Einstein, Bohr... et le débat sur la nature de la réalité , de Manjit Kumar; Tirza , de Arnon Grunberg; Discricionariedade, Regulação e reflexividade: uma nova teoria sobre as escolhas administrativas , do Sérgio Guerra; Deplacement , de Fred Guterl; O silêncio do algoz: face a face com um torturador do Khmer Vermelho , de François Bizot; Why does E = mc2 (and why we should care?) , de Brian Cox e Jeff Fordshaw; e, finalmente, aquele livro que tem a melhor frase de abertura de todos os tempos: Moby Dick , de Herman Melville (que estou relendo).

Como vocês da audiência podem notar, nenhum desses livros está catalogado. Chega a ser uma ofensa trazê-los num congresso de bibliotecários, mas o que fazer? Mea culpa, mea maxima culpa. É assim mesmo: em casa, eu organizo os meus livros e confio na memória. Mas, calma lá: eu não sou tão maluco quanto o saudoso Moacyr Scliar, que guardava os livros deitados na prateleira. Como ele disse: “Fico imaginando esses livros em pé anos a fio. Ficam na horizontal para que seus autores também repousem”. A foto , que consta do livro O lugar do escritor , de Eder Chiodetto, traz aquelas centenas de livros deitados, descansando à espera de um leitor...

Assim, já contei para vocês parte da minha relação com os livros e já posso me encaminhar para o final da nossa conversa. Isso não sem antes revelar aquilo que ao início eu disse que ficaria em suspense, em vista da presença do Rodrigo aqui conosco nesta manhã.

A minha relação com os livros – isso já ficou óbvio – é familiar. Os livros e a paixão por eles fazem parte da nossa família, no nosso dia a dia: eu sou apenas uma ponte entre o exemplo do meu pai e o amor do meu filho pelos livros.

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