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Ricardo III é um verdadeiro tirano que representa o que Kant chamou de o mal radical. Era é um tirano totalmente racional e calculista e, como tal, radicalmente mal. Segundo Agnes Heller, os mecanismos de tirania em Ricardo III podem ser, de certa forma, generalizados para todos os tipos de tirania e, especialmente em Shakespeare, tirania é a forma mais abstrata de regra. Shakespeare nos fala sobre a experiência desastrosa que atos tirânicos representam, tanto para os cavaleiros quanto para os plebeus e os próprios tiranos.

É por causa do mecanismo abstrato das tiranias em Shakespeare que o papel de Ricardo III poderia muito bem se adequar a qualquer figura contemporânea. Não há, mesmo, a necessidade de modernizar a história para se ter uma adequação perfeita, ou dito de outra maneira, não é preciso esforço algum para reconhecer a essência política do presente no passado.

Ricardo III é, na trama, o tirano e todos os demais personagens são suas vítimas. É um tirano racional, racionalista e perspicaz que age movido pelo trabalho e destino de uma tirania radicalmente má.

Os personagens na peça são estáticos, não se reinventam, de forma que tudo nela é previsível e, talvez isso, a tenha tornado tão popular. Entretanto, o caráter estático e complexo deste particular espírito do mal fez de Ricardo III um dos papéis mais prestigiados entre os atores.

O jogo de Ricardo III é, durante um tempo, esconder a sua essência, parecendo ser outra pessoa e não quem ele realmente é. Ele tem prazer nesse jogo no qual ele exerce seu sadismo e o faz em relação aos outros, de forma a submetê-los à tortura, enganando-os, infringindo-lhes castigo e dor e, por fim, destruindo-os. A única pessoa indestrutível em Ricardo III é Margaret, na medida que é um fantasma ativo e que já perdeu absolutamente tudo. Sobre ela, ele não tem poder, não pode chantageá-la, torturá-la ou matá-la. Por sua vez, um fantasma pode torturar e matar com sua praga ou maldição.

Ricardo III não se tornou radicalmente mal porque escolheu o mal, mas porque se escolheu como mal. Ele justifica a sua vilania por causa da sua má aparência, ou seja, esta o fez ter uma alma má. Sua perversidade decorre da sua feiura, do desgosto da sua mãe pela sua aparência deformada. Ou seja, uma alma deformada pode habitar um corpo deformado. Shakespeare explora esse preconceito, embora não creia nele, na medida em que nas peças shakespearianas se vê que ele sempre desconfia do que é determinado pela natureza ou pela tradição. Para ele há sempre uma escolha em favor de um ou de outro ou dos dois, em sentidos diferentes.

Aquele que se escolhe como radicalmente mal atravessa todos os limites e seus atos são imperdoáveis. No tempo de Ricardo III os limites eram estabelecidos por Deus e pelos dez mandamentos e, assim, ao se escolher como mal ele quebrou todos os limites, todos os mandamentos e, de fato, ele infringiu todos. Ricardo III se escolheu como mal e esta foi uma condição para o drama que caracteriza a tragédia.

O adversário ou oponente é fundamental para o personagem se mostrar. Em Ricardo III aquele não é humano, pois todos os humanos sucumbem a ele. O mal caráter de Ricardo III talvez explique um dos títulos da peça: The tragedy of King Richard III, ou seja, é uma tragédia na qual um homem absolutamente perverso pode também ser um herói trágico, um homem carismático, o carisma do mal.

Shakespeare cria um personagem que agia não somente no palco da existência, mas, também, no palco histórico-político. Teve ele que nos apresentar o retrato mais abstrato dos mecanismos da tirania, mas com o retrato mais concreto do mal incarnado. Shakespeare une, assim, as características do tirano mal com as características do Satanás do livro de Jó. Mas, ao contrário do livro de Jó, é Ricardo III e não Deus que faz o homem e a mulher experimentarem se eles podem suportar e resistir ao mal, ainda que sejam tentados para tanto.

Apesar da sua aparência deformada, Ricardo III não tinha sentimento de inferioridade ou complexos. Ele era autoconfiante na sua superioridade enquanto espírito maligno e tentador. Ele tinha as grandes habilidades do diabo, a começar pela principal, ele não reconhecia limite algum. Ele agia como desejava, ou seja, não havia o mundo dos sonhos e o mundo da vontade, o mundo era este, o dos objetivos a alcançar e não dos sonhos. Neste sentido, tudo é possível, tudo pode ser feito, todos podem ser tentados, toda vontade poder ser enfrentada e submetida à sua. Isso ocorre, primeiro, porque não ter limites significa não ter consciência e consciência (isso nós aprendemos com Hamlet) nos torna covardes. Neste sentido, Ricardo III é absolutamente corajoso. Ele desafia tudo, como fazem os que não tem consciência, como também os que não têm o senso da honra e da vergonha.

Ricardo III inflige medo, mas não somente um medo racional, um medo irracional também, na medida em que um homem sem consciência pode fazer o mal sem muito alarde, sem muito barulho. Tais atitudes, como infligir medo e abster-se do reconhecimento dos limites o torna, por outro lado, um homem carismático e ele, apesar do seu repugnante aspecto, joga com isso, como se do carisma resultasse um tipo de charme, o charme do mal.

Isso tem um efeito tentador. Shakespeare tem a clareza deste jogo de tentação por exercido por Ricardo III, o qual representa o espírito do mal e o tirano. Estes dois elementos (o espírito do mal e a tirania) ou, dito de outra maneira, o mal radical e a tirania radical, são os elementos da peça. Isso faz com que a estrutura do seu enredo seja relativamente simples e a caracterização dos personagens principais relativamente abstrata. No entanto, o drama se torna propriamente um drama com a concretude de Ricardo III, isto é, seu jogo com um homem hipócrita e ao mesmo tempo um comediante.

Ricardo III é um ator que adora encenar na medida em que, constantemente, reinventa seus papeis e o faz sem qualquer limite. Sua encenação é sem limites e, assim, como todo bom ator, ele faz a plateia acreditar que ele é aquele que ele encena. Desde o primeiro ato, todos, exceto Margarete, acreditam nele. Assim, sua aparência é tomada como sendo a sua essência.

Ele também é um ator histórico, ou seja, ele encena no palco da história. O interessante disso é que no palco do teatro, no meio da sua performance, aparece o palco da história no qual ele também encena o tirano.

Ricardo III sempre teve o desejo de ser rei em mente. O fato é que ele sempre foi um homem sem limites que não conhecia a diferença entre o devaneio e a realidade. Como ele já havia sonhado ser rei, mesmo quando não apenas seus irmãos, mas, também, o rei Henry e o Príncipe Edward estavam vivos, a concretização do seu devaneio exige nada mais do que se ver livre do resto. Há uma espécie de loucura na ausência de distinção entre o desejo e a realidade; o mal é uma espécie de loucura, ao menos em Shakespeare.

Pois bem, os grandes tiranos e os radicalmente mal são pessoas que não conhecem limites, não conhecem a diferença entre um desejo e um devaneio. Entretanto, isso não alivia o seu comportamento calculado, medido, racional. Poderíamos indagar se aí não há uma contradição, ou seja, louco e profundamente racional? Neste ponto, Shakespeare é preciso, tanto histórica quanto psicologicamente, na medida em que loucura e racionalidade intencional não são mutualmente excludentes. Alguém pode ser obcecado por uma ideia fixa e ainda calcular todos os degraus existentes que se deve galgar. Por exemplo, alguém pode ter a ideia fixa de que determinada pessoa faz mal à sociedade (loucura) e calcular como, quando e aonde se poderia eliminá-la da sociedade.

Pois bem, como quase todo tirano, Ricardo III se aproxima de sua qualidade humana quando ele está perto de ter sua vida perdida. Ele está se desfazendo, mas ele se ergue e fala: I have set my life upon a cast/Eu coloquei minha vida sobre um cálculo. Ou seja, quando ele se escolheu como um tirano, ele colocou sua vida sobre um cálculo. Ao final da peça ele é um perdedor, mas jamais dirá que Deus é o vencedor. Ele perdeu por azar, o azar da morte. Afinal, o mundo não é o mundo de Deus e nem o mundo do Demônio. Quem vence, Deus ou o Demônio, depende do giro do dado. Para Ricardo III sua derrota é tão contingente quanto a vitória de Richmond.

Pois bem, Ricardo III é uma peça inspiradora e da qual é impossível não gostar. Mais do que isso, o protagonista da peça nos provoca a pensar sobre os nossos tiranos ou “heróis” contemporâneos.

*Vera Karam de Chueiri: professora associada de direito constitucional do departamento de direito público da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (nos programas de graduação e pós-graduação em Direito) e vice-diretora da Faculdade de Direito. Coordena o Núcleo de Constitucionalismo e Democracia do PPGD. Foi editora da revista da Faculdade de Direito da UFPR (2008-2013). Tem experiência na área de Direito Constitucional , Filosofia do Direito e Direito e Literatura atuando principalmente nos seguintes temas: poder constituinte, estado de exceção, constitucionalismo e democracia, teoria das decisões judiciais (Dworkin), justiça de transição, direito e desconstrução. Escreve mensalmente para o Justiça & Direito.

** As opiniões expressas nas colunas apresentam o ponto de vista de seus autores e não refletem o posicionamento do caderno Justiça & Direito, nem do jornal Gazeta do Povo.

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