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| Foto: Daniel Castellano/Gazeta do Povo

A advogada e professora de Direito Tributário da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Betina Treiger Grupenmacher costuma dizer que estava na hora certa e no local certo. Ela conta que teve a sorte de estudar na PUC de São Paulo na época em que os maiores tributaristas do Brasil davam aula lá: Geraldo Ataliba, Elizabeth Carrazza e Roque Antonio Carrazza. Não bastasse isso, quando se mudou para Curitiba e fez o doutorado na UFPR, teve aula com Marçal Justen Filho. “Fechei com chave de ouro minha formação acadêmica no Brasil”, ressalta a advogada, que recebeu a reportagem do Justiça & Direito em seu escritório recentemente.

Betina está à frente do VIII Congresso Internacional de Direito Tributário do Paraná (ela coordena todo o evento desde a primeira edição), que começa nesta quarta-feira (31/08) e termina no próximo dia 2 e cuja programação pode ser conferida no site do evento. Nesta conversa, a advogada fala da importância do direito tributário na vida das pessoas e sobre o poder que o tributo tem de fazer justiça social. Para ela, “a redistribuição pela tributação se faz através da progressividade: quem tem mais paga proporcional e progressivamente mais. Mas deve ser uma tributação progressiva lenta e gradual que leva ao Estado de justiça fiscal e social”.

A senhora defende que o direito tributário seja um caminho para solucionar problemas sociais...

O direito tributário tem vários vieses. É a principal fonte de renda do Estado, não só no Brasil, mas no mundo inteiro, sobretudo nos países democráticos. Muitos consideram que a principal função do tributo é o financiamento das instituições democráticas. De fato é. Por outro lado, estamos com uma economia andando a passos lentos, o que leva as empresas a não faturarem. Se elas não faturam, não recolhem tributo; se não recolhem, o caixa do Estado fica defasado. Se nós temos um custo, são os tributos que têm que ser aumentados numa primeira ideia. Mas após vários estudos eu cheguei à conclusão que não necessariamente precisamos incrementar a carga tributária – que já é alta, mas não é a mais elevada do mundo. Ela é a mais sentida, porque nós não temos o retorno em serviços, investimentos, etc.

Mas, se os tributos são a solução e a senhora diz que não devem necessariamente aumentá-los, o que é possível fazer?

O jeito não é criar tributos, o jeito é reduzir os incentivos e benefícios [fiscais]. É preciso fazer uma distinção dos dois. Nem temos que reduzir tanto os incentivos, que dependem de uma contrapartida do particular, como o Paraná Mais Empregos [programa do governo do Paraná durante a gestão de Jaime Lerner], ou seja, uma redução da carga tributária mediante uma contraprestação. Outra coisa são os benefícios, que são favores gratuitos sem nenhuma contrapartida. Eu não acho que eles tenham que ser eliminados, porque isso vai acabar com as empresas. Mas é preciso acabar ou diminuir sensivelmente as renúncias de receita, que são esses benefícios.

Qual é a alternativa que a senhora defende, então?

Nós temos aproximadamente 14 milhões de famílias em estado de miserabilidade no Brasil. É muito. A gente fica desesperado, a gente quer que todo mundo tenha o mínimo necessário ou mais do que o mínimo. Uma tributação bem aplicada pode levar, ao longo de décadas e de séculos, à diminuição dessas diferenças sociais. Lá atrás, os italianos começaram a verificar isso: se tiver uma tributação progressiva, conforme vai aumentando a riqueza, vai aumentando a alíquota. Geraldo Ataliba defendia: quem tem mais paga mais, quem tem menos paga menos, e quem não tem não paga. Só que essa tributação proporcional não gera a diminuição das diferenças sociais. É preciso gerar não a distribuição, mas a redistribuição porque a distribuição ocorreu de maneira equivocada. A redistribuição pela tributação se faz através da progressividade: quem tem mais paga proporcional e progressivamente mais. Mas deve ser uma tributação progressiva lenta e gradual que leva ao Estado de justiça fiscal e social. Quando eu fiz doutorado, fui aluna do professor Marçal Justen Filho, e ele falava que a proporcionalidade já realiza a capacidade contributiva. E ele me dizia: mas é injusta, porque não realiza a distribuição de riqueza.

E como aplicar isso no Brasil?

Até uns três anos atrás, eu achava que tinha que aplicar isso no Brasil, tinha que ser progressivo. Mas o que nós temos aqui? Só temos IPTU e Imposto de Renda progressivos. Estão querendo fazer aqui no Paraná o imposto de herança (ITCMD) progressivo e o ITBI progressivo.

E o que a senhora acha sobre a progressividade no ITCMD?

Vou falar que é injusta a progressividade? O que tem que ser visto é o valor das alíquotas. Porque a progressividade é assim: 1,5%,1,6%, 1,7%. Não pode ser 10%, 20% 30%, porque aí se torna confiscatório. Não podemos atacar a progressividade, mas o valor da alíquota. Ou o sistema é inteiro progressivo ou dois tributos progressivos não adiantam. Então vamos pensar em tudo progressivo: IPTU, Imposto de Renda, Imposto de Exportação, etc. O que vai acontecer? A carga tributária vai ficar um loucura. Nós temos uma carga tributária complexa e excessiva, esses são os problemas.

Então o sistema constitucional tributário precisa de reforma?

Não. Eu acho o sistema constitucional brasileiro maravilhoso e acho que não precisa de reforma, precisa ser aplicado. O sistema tributário é muito bom. Foi muito bem arquitetado, poucos sistemas são como o nosso. A única reforma de que nós precisamos é a do ICMS.

Como a senhora vê a legislação sobre ICMS hoje?

Essa situação de complexidade existe no sistema como um todo, mas o ponto nevrálgico é o ICMS. Nós temos 26 estados, mais Distrito federal, com 27 legislações diferentes e com a substituição tributária que é o fim do mundo. E agora temos essa emenda constitucional que faz com que tenha que destinar ao estado onde está o consumidor final, que eu acho justo. A riqueza que paga o produto sai do estado de destino. Se pensarmos academicamente, não é justo que o estado de onde sai aquela riqueza não receba nada. A ideia é muito boa, mas isso gerou um nível de complexidade para as empresas que é um negócio quase impraticável, a operacionalização gera um custo adicional enorme, cada operação tem que emitir uma nota. Então a ideia é boa, é justa, mas a operacionalização é complicada. Não precisaria de nenhuma alteração na Constituição a não ser em relação ao ICMS.

Mas e sobre progressividade, como seria possível instaurá-la em nosso sistema tributário?

Uma opção é alterar a Constituição para fazer todos os tributos progressivos, mas aí os dois grandes problemas vão piorar: vai aumentar a carga tributária e vai ficar mais complexo. Eu estudava o modelo italiano e achava ótimo, mas me dei conta de que não significa que o que é bom para a Itália é bom para nós. Se estamos buscando a simplificação e a desoneração, a progressividade que leva à justiça fiscal vai gerar o efeito contrário.

Mas qual seria o caminho?

É preciso acabar ou diminuir sensivelmente as renúncias de receita, que são esses benefícios, e se estabelecer uma tributação proporcional. Todo mundo pagaria um imposto de renda de 16%. Essa é uma ideia do Partido Republicano do EUA de 1964, volta e meia volta à discussão lá, e que eu acho que, se aplicada e aperfeiçoada para nós, pode ser boa. Para alguns, fere a generalidade – que todo mundo sinta o mesmo peso da tributação. Mas a minha ideia é excluir coisas que são muito anti-isonômicas. Porque, se eu tenho benefício fiscal, alguém deixa de pagar e outro terá que pagar.

O que seria justo para o Brasil?

É justo ter uma sistema mais oneroso e mais complexo? Isso reflete uma situação justa diante da não prestação de serviço, da corrupção? Eu comecei a achar que o conceito de justiça fiscal para o Brasil poderia não estar atrelado a essa ideia de progressividade. Então, em Aristóteles, encontrei a ideia de redistribuição de oportunidades. Se houver uma redistribuição de oportunidades, a redistribuição de riqueza vai ser consequência, sem que a gente precise fazer um sistema progressivo. E seja em um sistema progressivo ou em um proporcional precisamos observar o mínimo existencial.

De que forma se pode observar o mínimo existencial?

Quem tem o mínimo para sobreviver, com dignidade, não deveria estar sujeito a nenhum tipo de tributação. Como no Brasil a tributação é fortemente indireta, é muito difícil fazer com que as pessoas que efetivamente não podem pagar não paguem por nada. O autor Ricardo Lobo Torres – e essa é uma ideia genuinamente brasileira – diz que o mínimo existencial não é só não tributar aquela pessoa que não tem o mínimo, mas também deveres prestacionais. Uma pessoa que tem um carro mil, um imóvel de baixo padrão construtivo, em uma região pouco valorizada e um salário suficiente para viver com dignidade não deveria sofrer nenhum tipo de tributação. Não deveria pagar IPTU, nem IPVA, nem ter tributação na cesta básica, e até em um pouco além da cesta básica. Mas não há vontade política para isso.

Há orçamento para isso?

Aí há a barreira da reserva do possível. Mas está tudo na mão da tributação. Me impressiona o poder do tributo. O tributo é a solução para tudo. O poder é tão grande que ainda pode gerar uma sociedade mais justa. Mas temos que ter cabeças que conheçam ciências econômicas, ciências políticas e ciências jurídicas trabalhando juntas. A tributação é uma opção política do gestor. Não observar o mínimo existencial é uma opção política. Em tese teria que implodir o sistema e começar do zero. Será preciso gênios que tenham ideias para começar esse movimento de alteração – que não é a reforma da Constituição. Por isso que eu saio do tributário e começo a ir para a filosofia, para refletir também sobre o que é justo.

Sobre o Congresso

O quê: VIII Congresso Internacional de Direito Tributário do Paraná

Quando: de 31 de agosto a 2 de setembro

Onde: Sede da OAB/PR. Rua Brasilino Moura, 253, Ahú. Curitiba – PR

Colaborou: Kamila Mendes Martins
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