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Estatuto do desarmamento

Limites do poder do Estado estão em jogo no debate sobre desarmamento

Debate sobre o direito de acesso às armas vai além da questão prática de poder ou não comprar e portar e chega aos dilemas sobre até onde deve ir a intervenção estatal

 | Daniel Castellano/Gazeta do Povo
(Foto: Daniel Castellano/Gazeta do Povo)

Os debates sobre o Estatuto do Desarmamento têm se acirrado com a proposta de revogação desta lei, que está incluída na pauta das manifestações do próximo domingo (26). Além das consequências para a defesa pessoal e para a segurança pública, alterações na legislação sobre o tema envolvem também um debate sobre o papel do Estado e até onde se pode regular o modo como o cidadão se defende.

A violência no Brasil é o combustível para que o debate se inflame. Um estudo da ONG mexicana Conselho Cidadão de para Segurança Pública e Justiça Penal, por exemplo, aponta que o Brasil tem 21 das 50 cidades mais perigosas do mundo. O levantamento toma como base a taxa de homicídios para cada 100 mil habitantes.

O coordenador de advocacy do Instituto Sou da Paz, Felippe Angeli, admite que é compreensível que diante da realidade brasileira a população acredite na solução “mais fácil”. Mas ele insiste que faltam provas técnicas que comprovem que facilitar o acesso a armas resulta em mais segurança. “Se tivessem indícios de que isso é positivo, nós apoiaríamos”.

Para o deputado federal Rogério Peninha Mendonça (PMDB/SC), autor do PL 3722/2012, “está na hora de o governo parar de brincar com segurança pública, olhar para longe de seu próprio umbigo e adotar políticas que, de fato, estanquem este banho de sangue vivido no Brasil”.

O advogado e Professor de Direito Penal da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst) Guilherme Brenner Lucchesi observa que, ao contrário da Constituição norte-americana – que trata do tema explicitamente – a Constituição brasileira não assegura o aos cidadãos a posse ou o porte de armas. Mas ele lembra que está previsto no texto constitucional o direito à segurança. “Acaba sendo um debate sobre concepção de Estado, um exame do que o Estado pode fazer”, analisa o advogado.

Bene Barbosa, presidente do Movimento Viva Brasil, defende que a interferência estatal seja menor. “Não cabe ao Estado dizer que riscos eu posso correr e que riscos eu não posso correr. Hoje é isso [compra de armas], depois vai querer regular a quantidade de açúcar e de bacon que eu compro”, diz o ativista pró-armamento.

Um documento intitulado “Manifesto dos pesquisadores contra a revogação do Estatuto do Desarmamento” também reconhece que a situação crítica do país gera pressão por mudanças: “Inegavelmente, o apelo à aprovação desse projeto de lei ganha força no rastro da sensação de insegurança que vivemos no Brasil”. Por outro lado, o texto ressalta que há outros fatores que levam à violência e que devem ser analisados: “No entanto, a violência é um fenômeno complexo. Há outros fatores estruturais e conjunturais relacionados ao nível de violência, como educação, desigualdade de renda, arranjo institucional e orçamento para segurança pública. Assim, ao se avaliar o efeito da quantidade de armas em circulação sobre a violência, deve-se levar em conta todos esses fatores”.

Constituição

O artigo 144 da Constituição Federal define que a segurança pública é “dever do Estado, direito e responsabilidade de todos” e deve ser exercida “para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio”.

Para o jurista Dircêo Torrecillas Ramos, o texto constitucional é vago, mas garante o direito de defender a família e o patrimônio. “Como a pessoa vai exercer essa responsabilidade? Tem que ter os meios para defender seu patrimônio e as pessoas que convivem com ele”, observa. Na opinião dele, o movimento que defende mais acesso às armas é justo, mas precisa ter critérios. “Uma pessoa armada pode gerar acidentes ou, no desespero, pode vir a cometer crime ou lesão”, pondera Ramos.

Direito comparado

A Constituição dos Estados Unidos cita a questão das armas na Segunda Emenda. Mas, mesmo a menção ao tema sendo explícita, a interpretação não é única e divide opiniões entre os grupos armamentistas e os defensores de restrições ao uso de armas.

“Sendo necessária uma milícia bem ordenada para a segurança de um Estado livre, o direito do povo a possuir e portar armas não poderá ser violado”, diz a Segunda Emenda.

Lucchesi, que é mestre em Direito pela Cornell Law School (EUA), explica que o objetivo da Segunda Emenda, aprovada em 1791, era de assegurar o direito a ter armas para permitir a manutenção das milícias. Ao contrário do sentido pejorativo que têm no Brasil, no contexto norte-americano da época, milícias eram grupos paramilitares de apoio ao Exército formados por cidadãos, considerados fundamentais para a defesa contra invasões estrangeiras ou mesmo contra a tirania do Estado, tendo desempenhado um importante papel no processo de independência do país. Aos poucos, o texto foi ganhando vida própria. “Chegou ao ponto de a Suprema Corte ter decidido que há o direito de usar e portar armas, não só as de guerra, mas handguns (armas de mão)”, explica o professor de direito penal.

Hoje, a cada novo atentado em massa em que atiradores invadem escolas, universidades ou outros locais públicos, o debate se reacende. O modelo federalista dos EUA possibilita que cada estado tenha uma legislação própria sobre o assunto. Como a Constituição não diz em que termos deve ser o direito às armas, fica a critério de cada estado definir como será o controle.

Em 2016, o então presidente Barack Obama disse respeitar a Segunda Emenda e o direito a ter armas, mas argumentou: “Faz sentido tentar manter armas de fogo longe de indivíduos que queiram ferir outros. E o problema é que criamos uma atmosfera na qual uma proposta razoável é vista como um ataque à Constituição e uma tentativa de confiscar as armas dos cidadãos”. Ele defendeu um sistema mais forte de verificação de antecedentes criminais para evitar tragédias.

Defensor da Segunda Emenda como meio de garantir o livre acesso às armas, Donald Trump prometeu durante sua campanha que indicaria para a Suprema Corte “juízes que não causarão danos à Segunda Emenda”. E, em uma declaração polêmica, disse que a então candidata à presidência Hilarry Clinton pretendia abolir a parte da Constituição que dá direito ter armas e quase ninguém poderia detê-la. Trump então acrescentou: “Quem sabe o pessoal da segunda emenda possa [detê-la]”, em alusão ao uso de armas.

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