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Carole Poteman: “Muitas pessoas consideram a mudança algo perturbador”. | Daniel Castellano/Gazeta do Povo
Carole Poteman: “Muitas pessoas consideram a mudança algo perturbador”.| Foto: Daniel Castellano/Gazeta do Povo

A cientista política Carole Pateman é reconhecida no mundo inteiro por seus livros sobre feminismo e por sua pesquisa sobre políticas de redução de desigualdade. Em abril, ela esteve em Curitiba para fazer uma palestra na Universidade Federal do Paraná (UFPR) e concedeu entrevista exclusiva à Gazeta do Povo.

Na conversa, ela diz que muitos homens mais jovens “evoluíram” em sua relação com as mulheres, mas que ainda há muito a fazer. E elogia a iniciativa brasileira de dar renda mínima às famílias. Segundo ela, esse pode ser um passo fundamental para garantir a independência das mulheres e reduzir a violência em uma sociedade machista.

A sra. participou da discussão sobre a existência de uma “essência biológica” sobre homens e mulheres. E também fala sobre o fato de a sociedade ser construída de acordo com a visão masculina. Como essas duas coisas se relacionam?

Um dos meus argumentos no meu livro “The Sexual Contract”, que é meu principal livro feminista, era que nos clássicos da teoria política – Hobbes, Locke, Rosseau e outros – eles apresentavam características “naturais”

A noção do espaço público era desenhada de acordo com essa visão do masculino.”

dos sexos e como eles deveriam se relacionar com o outro. Mas meu argumento é de que essa é uma visão política e de que toda a parte sexual do contrato social original se baseia em certas visões que eles tinham sobre homem e mulher. Isso era “disfarçado” como se fossem características naturais. E o ponto disso é que o homem era “naturalmente” talhado para a arena pública e a mulher era “naturalmente” feita para cuidar da casa e coisas relacionadas a isso. E se elas fossem longe demais no espaço público, as coisas iriam mal. A noção do espaço público era desenhada de acordo com essa visão do masculino.

Os escritores que a sra. citou são de outra época e podem ter sido influenciados por isso. Mas a sra. questiona também os filósofos liberais atuais. Na sua visão eles cometem ainda o mesmo erro? Existe “redenção” para o liberalismo?

Depende do que você chama de liberalismo. Deixe eu dizer primeiro que, claro, todo mundo é filho do seu tempo, mas o que é interessante é que muito cedo – no caso da Inglaterra, pelo menos nos anos 1700 – havia críticas feministas desses argumentos. Mas elas não eram parte até recentemente dos currículos, não eram estudadas. E eram críticas brilhantes. Essa tradição continuou. John Stuart Mill, que escreveu esse famoso livro feminista, “A Sujeição das Mulheres”, mas por um longo tempo isso foi esquecido, como se fosse um constrangimento: “Esse filósofo famoso escrevendo sobre esse tipo de tema”. Havia era presunção geral de que assuntos relacionados com a casa, com a vida em família, e as relações entre os gêneros esse não era o tema apropriado para a filosofia política. Essas premissas ainda estavam lá, mas ninguém as discutia.

Como os governos podem agir para reduzir o sexismo?

Se você fizer um retrato dos chefes de Estado ou de Governo, ainda não há muitas mulheres, continua sendo um privilégio masculino. Há mulheres no Parlamento”

Não tenho certeza. As coisas mudaram em um grau considerável. Quando comecei a ler sobre feminismo era uma total revelação. Hoje temos uma mulher presidente aqui, e isso seria impensável antes. Mas de muitos modos as coisas continuam iguais. Se você fizer um retrato dos chefes de Estado ou de Governo, ainda não há muitas mulheres, continua sendo um privilégio masculino. Há mulheres no Parlamento. Mas fiz uma apresentação para mulheres no Congresso em Brasília, e mostrei números sobre mulheres em Parlamento. Acho que havia quatro nações com mais de 50% de mulheres no Parlamento. O Brasil acho que tem 9%. Há muita coisa a fazer. E mesmo se houvesse metade de mulheres, não há garantia de que seriam mulheres feministas.

Uma pesquisa da Gazeta do Povo mostrou que a maior parte das deputadas paranaenses não se considera feminista. O que a sra. diria para elas?

É uma questão difícil. Sempre houve isso. Na campanha pela conquista do voto feminino, tanto nos Estados Unidos quanto na Grâ-Bretanha, havia muitas mulheres que eram contra. E de algum modo eu acho que elas achavam que iam perder mais do que iam ganhar porque havia coisas bizarras sendo ditas sobre o que ia ocorrer se essa lei fosse aprovada. Muitas pessoas consideram a mudança algo perturbador. E acho que isso ocorre com muitas coisas relacionadas ao feminismo. E há essas imagens estranhas de feministas que você encontra na mídia: mulheres peludas sendo agressivas... Esse tipo de coisa. E acho que isso deixa algumas pessoas desconfortáveis. Não sei como explicar de outro modo.

O que seria mais urgente para melhorar a condição das mulheres?

Em 1792, quando Mary Wollstonecraft publicou “Uma Reivindicação pelos Direitos da Mulher”, uma das coisas que ela disse foi que as mulheres precisavam de independência financeira. Mesmo as mulheres

Mesmo as mulheres casadas não deviam depender do marido.”

casadas não deviam depender do marido. Isso era impressionante na época e ainda é bastante radical. Mas com o Bolsa-Família, se você tiver um programa realmente universal, pela primeira vez na história as mulheres teriam uma renda independente. Tudo depende do valor pago, claro. Minha formulação é que deveria ser suficiente para uma vida modesta mas decente. Se você tiver isso, pela primeira vez as mulheres terão uma renda independente e isso faz uma grande diferença. Mesmo hoje, nos EUA, as mulheres ainda não ganham o mesmo que os homens. Elas ainda são dependentes, mesmo que não tanto quanto antes.

Os economistas liberais dizem que esse tipo de política refreia a economia, que as pessoas parariam de trabalhar.

Não há muitos indícios de que isso ocorreria. Muitos estudos-piloto estão sendo feitos. Experimentos nos Estados Unidos não mostraram que isso ocorreria. Talvez com uma ou duas pessoas. Mas em geral as pessoas são muito sensatas com isso. E faz uma imensa diferença. Normalmente, as pessoas começam um

negócio próprio ou algo assim. Faz uma grande diferença para toda a economia. Seria um grande avanço. Na verdade, pessoas que estudam desenvolvimento foram contra transferências de renda. Mas elas mudaram de ideia. Claro que leis contra discriminação são boas [para melhorar a condição das mulheres], mas a implantação é muito mais difícil. Não é algo que a legislação resolva, é preciso mudar as atitudes das pessoas sobre elas mesmas, sobre masculinidade e feminilidade. Não sei exatamente como se muda isso. Exceto pelo fato de que vi que muitos homens jovens mudarem.

Há uma discussão sobre a possibilidade de legalizar a prostituição. Como a sra. vê isso?

Recebi muitas críticas por isso. A prostituição é um tema que parece fazer as feministas discutirem muito umas com as outras. Minha visão depende da discussão de propriedade da pessoa. Uma pessoa pode fazer um contrato ou vender uma pequena parte de propriedade de sem que isso a prejudique. Foi assim que analisei o contrato de trabalho. Você não está se vendendo, porque isso seria escravidão. Mas está vendendo esse pedacinho de propriedade por um determinado período de tempo. Mas claro que emprego é uma relação muito específica, porque o empregador decide como esse pedaço de propriedade vai ser usado. Mas claro que você não tem como separar essa propriedade de você mesmo. Você tem que estar lá.

E foi por uma extensão disso que cheguei à prostituição. Porque o argumento é que você está apenas vendendo um pedaço de propriedade no mercado. E você faz a transação e fica tudo bem. O que eu estava tentando argumentar, e não sei se fui bem-sucedida, é que na verdade isso está muito ligado ao senso de si mesmo e no longo prazo provavelmente pode ser muito prejudicial. E por outro lado isso é um símbolo muito importante da dominação dos homens sobre as mulheres. Porque o que está sendo comprado não é um serviço abstrato, são corpos de mulheres sendo vendidos como mercadorias no mercado.

Há um projeto no Brasil para legalizar a prostituição, mas muitas feministas criticam que isso legalizaria também a profissão do cafetão, por exemplo. Como a sra. vê isso?

O que está sendo comprado não é um serviço abstrato, são corpos de mulheres sendo vendidos como mercadorias no mercado”

Não conheço os detalhes desse projeto, mas minha posição tem sido mal entendida. Por alguma razão, em muitos artigos entendem que eu estava dizendo que a prostituição deve ser ou completamente legalizada ou proibida. Eu acho que nos casos em que é proibido devia ser descriminalizado. Em muitas situações é a única maneira de as mulheres e seus filhos sobreviverem. E a proibição não funciona, como sabemos. Então acho que devia ser descriminalizado, mas acho que elas deviam ter as salvaguardas que outros trabalhadores têm. Deveriam poder formar cooperativas. Talvez isso eliminasse os cafetões. Mas é complicado hoje em dia porque estamos falando de mulheres que estão se prostituindo voluntariamente. Mas há tráfico, rapto e isso tem que ser combatido.

A legislação pode mudar essa situação? Ou só a educação?

Não sei até onde os governos podem mudar algo com legislação. Claro que eles interferem na vida doméstica

porque retiram crianças de casa se há negligência, interferem em caso de violência doméstica. Mas é difícil perceber como a legislação pode mudar isso. Acho que é uma questão de educação e de mudar a cultura. Os homens precisam mudar. Mas acho que certos homens mais jovens estão mudando. Mas é preciso mais do que isso.

É possível ser otimista em relação à igualdade dos sexos?

Difícil dizer. Óbvio que nos últimos séculos muita coisa melhorou, mas quando você vê os problemas que continuam existindo você percebe que tem sido dolorosamente lento. Você pode ser otimista ou pessimista. Os homens ainda monopolizam os empregos mais bem pagos, a voz deles tem mais peso. Há uma quantidade enorme de violência contra as mulheres. Há muitas leis que precisam ser garantidas pelos governos. Há muitos problemas. Curiosamente, eu tenho recebido mais publicidade, todo mundo se interessa por isso. Mas as pessoas não desistem facilmente do poder. E os homens muitas vezes se incomodam muito por ver as mulheres em lugares onde elas “não deveriam estar”. Infelizmente, eu não tenho a resposta.

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