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“Quem tem algo a esconder não deve optar por um cargo público. A privacidade do homem público é relativa. Ele está compelido a prestar contas aos cidadãos, aos contribuintes.” | Daniel Castellano/ Gazeta do Povo
“Quem tem algo a esconder não deve optar por um cargo público. A privacidade do homem público é relativa. Ele está compelido a prestar contas aos cidadãos, aos contribuintes.”| Foto: Daniel Castellano/ Gazeta do Povo

Entrevista Marco Aurélio Mello, ministro do STF.

Famoso por suas opiniões contrárias às da maioria de seus colegas do Supremo Tribunal Federal (STF) – não raro ele faz questão de lavrar solitários votos-vencidos –, o ministro Marco Aurélio Mello tem traços de um workaholic. Já chega falando de casos em que está trabalhando e da luta para julgar a enorme cota de processos que lhe cabe. "A carga é desumana. Não me considero um juiz, mas um estivador", afirma. Uma de suas recentes batalhas solitárias, aliás, é para que alguns de seus colegas não se atrasem para as sessões. "As sessões têm começado com muito atraso. Venho preconizando, inclusive, que só ocorra o encerramento da sessão quando a pauta estiver encerrada", explica.

Mello esteve em Curitiba na última sexta-feira para a reunião da comissão julgadora, da qual é presidente, do Prêmio Francisco Cunha Pereira Filho – premiação criada pelo Instituto dos Advogados do Paraná (IAP), em homenagem ao ex-diretor-presidente da Rede Paranaense de Comunicação (RPC) e da Gazeta do Povo, falecido em março deste ano. E foi sobre o tema do prêmio, a Liberdade de Expressão no Estado Democrático de Direito, que o ministro mais falou em entrevista exclusiva. "Além da homenagem a um homem que marcou como jornalista e advogado, esse prêmio é importantíssimo para firmar que a liberdade de expressão é inerente ao Estado de Direito Democrático", destacou Mello.

Qual é a importância da temática escolhida para o primeiro Prêmio Francisco Cunha Pereira Filho: a liberdade de expressão?

Nós precisamos dar ênfase maior ao papel da comunicação, que é imprescindível para chegarmos a dias melhores. Considerando-se os interesses da sociedade, a imprensa surge com uma valia enorme. Como dizia Rui Barbosa, a imprensa são os olhos da nação. É graças à imprensa que as mazelas, as práticas indesejáveis vêm à tona. Por isso esse prêmio é importantíssimo, para firmar que a liberdade expressão é inerente ao Estado de Direito Democrático. Sem liberdade de expressão não se pode falar em democracia.

Mesmo tão importante ao estado democrático, a liberdade de expressão não é absoluta. Quais são seus limites?

Não temos uma hierarquia, considerados os preceitos constitucionais. Mas a Constituição está direcionada a não se ter empecilho à liberdade de expressão. É preceito legal: "Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação". Pode ocorrer abuso, sim, como em todas as áreas. Mas, quando há o abuso, a própria Constituição informa as formas de mitigar esse abuso, com os devidos processos civil, para reparação, e penal, por injúria, difamação ou calúnia.

Os limites à liberdade de informação jornalística, como os direitos da personalidade (imagem, honra, privacidade) são relativizados quando a pessoa envolvida é pública, correto?

Sim. Em havendo o envolvimento na reportagem, nos fatos veiculados, de homem público, só podemos chegar à responsabilidade do veículo de comunicação ou do jornalista se a vítima provar que o veículo ou o jornalista sabia que os fatos publicados eram inverídicos. Não é o que acontece com o cidadão comum: como esse não deve contas como o cidadão público, basta ele comprovar o dano (causado pela publicação da notícia). O homem público é um livro aberto, ele está na vitrine. Quem tem algo a esconder não deve optar por um cargo público. A privacidade do homem público é relativa. Ele está compelido a prestar contas aos cidadãos, aos contribuintes. Há pouco, me vi às voltas com uma situação cujo julgamento mostrará em que estágio da democracia nós estamos. Dei liminar a um jornal de São Paulo (Folha de S.Paulo), para que a Câmara abra os dados das verbas indenizatórias concedidas aos deputados federais. Por 42 dias a Câmara driblou a liminar. O Tribunal acabou cassando a liminar, por conta de um defeito de forma. Estou apressando o aparelhamento do processo para que ele vá à bancada e julguemos o mérito. Em fevereiro, a Folha tentou ter acesso aos dados. Em abril, passaram a inserir no site da Câmara os gastos com verbas indenizatórias dos parlamentares. Mas os dados do período anterior eles não querem revelar. Isso é sugestivo: só se esconde o que não pode vir à luz democrática. Estamos numa fase de perda de parâmetros, abandono de princípios, de inversão de valores. Isso não é bom. Não se avança culturalmente assim, mas observando as regras estabelecidas.

E o que falar do segredo de Justiça?

O segredo de Justiça é um problema sério. Ele existe em certas áreas. Mas nós precisamos conceber que quando o dado acobertado pelo sigilo chega à imprensa sem ela ter ido buscá-lo, ela tem o dever de informar. Não prevalece mais o sigilo, pois esse já foi quebrado. É preciso ver quem foi o responsável pela quebra, mas não se pode responsabilizar o jornal, mesmo porque o jornalista não tem tempo para pesquisar se há sigilo, se não há sigilo, se foi aberto ou não. Por que a Constituição revela que no exercício profissional não se tem o dever de indicar a fonte? Para preservar a liberdade imprensa. Precisamos mudar essa ótica de potencializar o individual, que está na preservação do sigilo, do privado, em detrimento do público. No conflito entre o individual e o coletivo há de prevalecer sempre o coletivo.

Ainda que indiretamente, estamos falando do caso da recente censura judicial ao jornal O Estado de São Paulo (pedida pela família Sarney)...

Pois é. Não estou aqui antecipando meu voto (é provável que o caso do Estadão chegue ao STF) nem criticando nenhum colega. Mas eu não concebo censura partindo do Judiciário. Não concebo a censura nem por via administrativa, muito menos a concebo vinda de um órgão que tem de ser equidistante, que deve guardar as normas constitucionais. Para mim é inconcebível. Nesse caso, chegou ao jornal. O jornal não quebrou o sigilo. Alguém quebrou o sigilo e passou as informações. Chegando ao jornal, ele não é guarda do sigilo, não é órgão protetor do sigilo. Ao contrário, o jornal tem o dever público de informar.

O senhor foi o único ministro que votou pela manutenção da Lei de Imprensa, que caiu no STF em abril. Esses casos recentes de restrições à liberdade de informação jornalística têm alguma relação com o fim da Lei de Imprensa?

Não, porque continuamos tendo a Constituição Federal. A Constituição está no ápice da pirâmide das normas jurídicas. Votei contra o fim da Lei de Imprensa porque não posso conceber que, passados 40 anos da vigência de uma lei, 20 dos quais sob a proteção da Constituição Cidadã, de repente se descubra que a lei é inconstitucional. A Lei de Imprensa já estava depurada pelo Judiciário, que já havia afastado os preceitos conflitantes com a Constituição.

E ficaram vácuos jurídicos...

Sim. Hoje não temos balizas para o direito de resposta, que é constitucional. Agora, como isso vai ocorrer? Vamos ter avaliação de cabeça para cabeça, conforme o juiz? Isso gera insegurança. A sociedade não pode viver à base de solavancos, de surpresas.

Mudando de assunto, o senhor já está com o voto do caso de extradição do Cesare Battisti pronto?

Não. Recebi nesta semana o material. Estava dependendo de notas taquigráficas, de pesquisas da assessoria, mas vou trabalhar nisso a partir deste fim de semana. Minha ideia é me declarar habilitado a proferir voto a partir da sessão do dia 28 deste mês. Quero abrir o embrulho para ver o que tem dentro. Eu não me contentei em votar simplesmente de ouvido. Porque quem tem vista do processo é o relator. Não temos como estudar os processos de colegas. Mas esse caso é muito complexo.

No dia 28, o novo ministro, José Antonio Dias Toffoli, já vai estar empossado e poderá votar, correto?

No dia 23 ele toma posse e estará compondo o colegiado. Segundo o regimento, poderemos ter ou não a participação dele, ocupante da última cadeira. Ele é que vai dizer se está habilitado ou não a votar. Impedido ele não está, porque não atuou no processo (como advogado-geral da União, cargo que ocupava no governo federal). A sustentação oral, na tribuna, em defesa do ato do ministro da Justiça (Tarso Genro), do refúgio, foi realizada por uma advogada da União.

Mas a participação dele pode alterar o resultado do julgamento. Se o senhor entregasse o voto antes...

O ideal seria que o tribunal não funcionasse dividido em turmas, mas sempre com os 11 ministro. É bom esclarecer: tenho 31 anos de magistratura e jamais manobrei votação. Não estou segurando processos. A carga é desumana. Não me considero um juiz, mas um estivador. E faço meu trabalho com o mesmo encantamento como se estivesse no meu primeiro dia de magistratura, com muita preocupação com o jurisdicionado. Mas eu só recebi os elementos nesta semana. Vamos aguardar. E que prevaleça o bom direito.

Serviço: Informações sobre o Prêmio Francisco Cunha Pereira Filho no site www.iappr.com.br.

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