
A escavação para encontrar os corpos dos guerrilheiros do Araguaia trará à luz parte da própria História brasileira que foi literalmente enterrada pelo Estado no meio da Floresta Amazônica, entre o fim de 1973 e início de 1974, quando a ditatura militar acabou com o grupo armado de esquerda. Já para os familiares dos desaparecidos, será a oportunidade de reconstruir a memória de seus parentes.
Essa é a expectativa da cearense Mercês de Castro, moradora de Curitiba desde 2007, que viajou à região do Araguaia no mês passado para tentar descobrir o que aconteceu com seu irmão Antônio Teodoro de Castro, guerrilheiro de codinome "Raul", integrante do PCdoB e estudante de Farmácia da Universidade Federal do Ceará, morto pelo Exército aos 25 anos, em fevereiro de 1974.
A decisão de Mercês deixar Curitiba e correr para o Araguaia ocorreu depois que o militar Sebastião Curió Rodrigues de Moura, o major Curió, deu há dois meses uma entrevista ao jornal O Estado de São Paulo revelando detalhes sobre o extermínio dos guerrilheiros. Na ocasião, vieram à tona informações de outras fontes (um militar não identificado), com detalhes da morte de Raul.
Mercês pediu dinheiro aos outros sete irmãos vivos e, acompanhada do marido e da filha adolescente, passou 15 dias entrevistando moradores e antigos mateiros da região do Araguaia em busca de informações de seu irmão até o derradeiro encontro com um camponês que, segundo ela, teria presenciado e participado da morte de Raul.
Embora o camponês tenha negado a participação no assassinato, Mercês tem convicção de que ele teria ajudado a matar o guerrilheiro, que estaria fraco devido à malária e ainda teria sido amarrado pelos militares antes da execução. A certeza dela está baseada nos relatos que ela obteve dos mateiros e moradores da região que viveram o período da Guerrilha do Araguaia. Em especial, de três mateiros: Zé da Rita (José Francisco Pinto), Isaías (Isaías Prudente de Oliveira) e Zé Catingueiro (José Maria Alves da Silva).
Esses depoimentos, aliás, renderam a Mercês 12 horas de gravação em vídeo, além da amizade com alguns dos mateiros que hoje são as principais fontes de informação para localizar os corpos dos desaparecidos. Bacharel em Direito, Mercês usou a simpatia e a sinceridade para conquistar a confiança dos guias da região, os mesmos que ajudaram tanto guerrilheiros como militares.
Em seu trabalho, ela conseguiu informações inéditas e acabou por ajudar o grupo que inicia amanhã as buscas pelos corpos a incluir mais pontos de escavação.
Mas a principal conquista de Mercês foi a promessa dos mateiros de empenhar-se para encontrar os restos mortais de seu irmão Raul. "Eu quero levar nem que seja um dente, qualquer coisa pra dizer depois: tá aqui, tá aqui perto da gente", afirma Mercês, emociada.
Relatos dos mateiros obtidos pela família indicam que o guerrilheiro está enterrado na fazenda Matrichã, hoje chamada de Rainha do Araguaia, no município de Brejo Grande do Araguaia (veja a localização no mapa da página ao lado). Os depoimentos ainda revelaram que ele teria sido assassinado no fim de fevereiro de 1974, 22 dias após ter sido capturado pelo Exército e torturado na base de Xambioá. De lá, teria sido levado de helicóptero para a execução na fazenda Matrichã.
Descaso
Mercês está animada e ansiosa com o início das escavações, embora denuncie um certo descaso do governo federal e do governo do Pará com as equipes que iniciaram recentemente o trabalho de preparação para as escavações. "Eles (os integrantes do grupo que buscará os corpos) são idealistas. Os enviados do governo do Pará e do Ministério da Defesa estão sem dinheiro lá", afirma ela.
Ainda assim, a expectativa de irmã de Raul é grande. E não é para menos. Depois de quase 35 anos, a família poderá, enfim, descobrir o corpo e realizar uma cerimônia religiosa de enterro para Antônio Teodoro (ou Raul).
A mulher lamenta, porém, que a mãe do guerrilheiro não verá a despedida final do filho. Ela morreu em 2004, sem notícias do paradeiro dele. Mercês conta que a última informação que a família teve de Antônio Teodoro foi quando ele avisou que iria estudar na Alemanha, em 1971. Na verdade, o destino era o Araguaia. E o objetivo não eram os estudos, mas o combate à ditadura e a instituição do comunismo no Brasil. "Minha mãe ia da raiva, achando que ele estava na Alemanha, à esperança, imaginando que ele poderia estar vivo, depois de saber que ele esteve no Araguaia", afirma Mercês.
Sem mágoas
Hoje, Mercês faz questão de dizer que não guarda mágoas das pessoas envolvidas no assassinato do irmão. Nem do camponês que teria ajudado os militares tampouco de "Simão", o companheiro de armas de Raul que teria delatado os guerrilheiros aos militares. Mercês inclusive defende Simão e diz que tudo o que ele fez foi porque não aguentava mais a situação em que vivia. "Ele estava há três meses andando solto na base. A pressão psicológica estava muito grande. Ele fez tudo o que podia para se livrar", afirma ela. "Ele não foi (traidor), ele foi massacrado (pelos militares)."





