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Direitos individuais

Quando o Estado se mete onde não deve

Especialistas criticam a prática de regular de forma excessiva a vida privada dos cidadãos brasileiros

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Não é só pelos supersalários, pelos desvios de conduta e pela depen­­­dên­­cia do Executivo que os legisladores são criticados. Especialistas em Direito e em Ciência Política afirmam que os integrantes do Legislativo brasileiro frequentemente ultrapassam um outro limite, mais sutil, mas que deveria ser respeitado tanto quanto os outros. O limite é o dos direitos indivi­­duais, que, na visão de alguns, estão sendo desrespeitados por algumas leis.

Um exemplo está no Código Civil, afirma o doutor em Direito Penal pela USP João Paulo Orsini Martinelli. Autor de uma tese em que defende que o Estado brasileiro tenta "tutelar" demais os seus cidadãos, Martinelli usa como símbolo a determinação de que pes­­soas com 70 anos ou mais só possam se casar em regime de separação de bens. "A finalidade é proteger a pessoa contra si própria de cair no chamado golpe do baú, impedindo-a de casar em regime de comunhão de bens", diz. No entanto, lembra o pesquisador, isso tira a autonomia do cidadão.

Entre as leis e projetos que podem ferir os direitos individuais, segundo especialistas, estão alguns temas polêmicos, que não são consenso: a criminalização da homofobia, a Lei da Palmada, a proibição de porte de drogas para uso pessoal e até mesmo o auxílio à prostituição. A ingerência ocorre mesmo em casos mais simples. É o caso do projeto de lei apresentado recentemente em Curitiba pelo ve­­­reador Felipe Braga Côrtes (PSDB), que quer proibir o consumo de bebidas alcoólicas ao ar livre.

"Existem diversas leis que são, na verdade, o Estado metendo o bedelho onde não deve", afirma o professor de Ciência Política e de Ética na Unicamp Roberto Romano. "Esse projeto sobre a bebida, por exemplo. O Estado não tem nada que interferir na maneira como a pessoa se comporta. É ela que está ingerindo a bebida. E se ela provocar algum problema, jogando uma garrafa em alguém, aí sim existe uma lei para proibir esse tipo de comportamento", afirma.

Liberal

A discussão sobre os limites do poder do Estado é antiga. Na Grécia clássica, Platão e Aristóteles defendiam que o governo deveria ensinar as pessoas a serem "bons ci­­­da­­­dãos". Ou seja: o Estado tinha o direito de dizer a alguém quais eram os melhores valores a serem seguidos. Com o início da Era Moderna, porém, essa ideia passou a causar arrepios no Ocidente.

"A lei deve estabelecer quais são os limites do comportamento de um indivíduo pensando em dois critérios", ensina o jurista Ives Gandra Martins. "De um lado, há os direitos inalienáveis, aqueles de que a pessoa não pode decidir abrir mão. Portanto, ninguém pode decidir tirar a própria vida, por exemplo. O outro caso ocorre quando o direito de uma pessoa precisa ser limitado para garantir o direito dos outros", diz.

Assim, não sobra espaço para que o poder público diga como as pessoas devem se comportar. "Toda lei deve impor restrições negativas. Precisa dizer o que é proibido fazer. E nunca dizer aquilo que deve ser o modelo de comportamento", afirma Romano. Para ele, isso deixa claro porque o Estado moderno não pode fazer diferença entre uma união civil heterossexual e uma homossexual. Se preferisse aceitar apenas o primeiro caso, estaria dizendo que há um comportamento sexual melhor do que outro.

Mas por que, afinal de contas, o Estado precisa respeitar esses limites? Martinelli afirma que há pelo menos quatro razões. A primeira é de origem social. "Quem elabora as leis são as pessoas que estão no poder, e não se pode permitir que estas digam como a sociedade deve se comportar", afirma.

Outro argumento diz respeito à diversidade: se você limita a sociedade a um comportamento, está matando a possibilidade de os cidadãos viverem de maneiras diferentes. A terceira razão é referente à democracia. "A intromissão na vida privada abre as portas para o autoritarismo e a concentração do poder; basta lembrar que, no Brasil, na ditadura, o simples fato de alguém pensar diferente do governo era motivo para aplicar a lei penal", diz. Por último, a mera intromissão por meio das proibições já se mostrou ineficaz na resolução de conflitos sociais. Ou seja: além de tudo, essas leis resolvem muito poucos problemas, ensina Martinelli.

Proibição do biquíni faz meio século

A mais célebre lei editada no Brasil e que tinha conteúdo meramente moral completa 50 anos em 2011. Em 1961, durante seu mandato relâmpago de sete meses, que terminou com uma inesperada renúncia, Jânio Quadros determinou a proibição de biquínis nas praias do Rio de Janeiro. Os biquínis eram uma invenção recente – a roupa feminina de praia típica ainda era o maiô, considerado menos provocante.

Outras leis que causaram polêmica pelo claro excesso de intromissão do Estado na vida dos cidadãos incluem um exemplo paranaense. Élcio Berti, que foi prefeito de Bocaiúva do Sul, na região metropolitana de Curitiba, por dois mandatos (1997-2004) baixou um decreto proibindo que homossexuais morassem no município.

Outra lei polêmica surgiu do prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, que baixou uma portaria proibindo gritos nas feiras livres do município. Mais tarde, o prefeito afirmou que se tratava de um erro de redação e que os gritos estavam liberados.

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