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 | Jonathan Campos/Gazeta do Povo
| Foto: Jonathan Campos/Gazeta do Povo

No meio do caminho tinha um shopping

Em algumas tampas de bueiros de Curitiba que resistiram à ação do tempo e de assaltos, está estampada aquela que foi uma das primeiras marcas industriais da cidade. Os produtos Marumby, fabricados pela antiga Fundição Mueller a partir de 1878, foram muito utilizados na urbanização de Curitiba. Além das tampas, a fábrica foi a fornecedora municipal de postes e bancos de praças por várias décadas. Mas foi com o seu fechamento, por volta de 1970, que ela interferiu pra valer no visual da cidade. No terreno da antiga fábrica, mantendo-se a fachada original, foi erguido o primeiro shopping do Paraná, o Mueller, o precursor de uma série de empreendimentos que exigiram muitas modificações viárias em espaços nobres curitibanos.

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Ao reunir material para o livro Curitiba e o mito da cidade modelo, lançado em 2001, o historiador Dennison de Oliveira, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), se deparou com uma daqueles historinhas que valem por mil teorias. Nos idos de 1971, quando o prefeito Jaime Lerner já dava mostras de que ia revirar cada paralelepípedos da capital, uma enquete da prefeitura junto à população perguntou o que se esperava do poder público. A resposta não foi parques ou calçadões para privilegiar pedestres, assuntos já em voga na época, mas asfalto, muito asfalto. Uma decepção.

A ciência urbanística somada à criatividade – marcas do lernismo – não pareciam fortes o bastante para derrotar o Coringa que apavora os gestores públicos, o buraco da rua. Se tivesse escrito seu livro em 2008, Dennison iria se deparar com situação parecida. As enquetes viraram audiências públicas. Em Curitiba, foram 234 assembléias desde 2005, resultando num calhamaço de documentos, mas com uma conclusão que cabe numa tirinha de papel: o buraco da rua ainda é a maior preocupação do seu Nicolau e da dona Itália.

A pavimentação foi a prioridade mais votada nos debates para a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), realizados em abril deste ano, com 27,4% dos votos, superando três assuntos que mobilizam o debate social em toda a América Latina – saúde, segurança pública e trânsito. Nos colóquios em torno da Lei Orçamentária Anual (LOA), em julho deste ano, idem: as vias cravaram 50% na tabela de preocupações populares. A tendência se repete em outro documento divulgado pela prefeitura este ano – "A regional desejada", apanhado dos mais sinceros desejos da população.

Resta saber se a propalada cultura urbanística de Curitiba ficou reduzida à buraqueira das ruas ou se realmente nunca ultrapassou os limites das faculdades de Arquitetura e do Ippuc – a Sorbonne do Juvevê. Qualquer uma das hipóteses é lamentável. Mais de 80% da população do mundo vive em áreas urbanas, fazendo desse assunto o prato dia. Alguma coisa está fora de ordem se a cidade ideal se resume a asfalto lisinho na porta de casa.

Entre os especialistas procurados pela reportagem da Gazeta do Povo, "discutir o modelo" não só dá caldo, como pratos diferentes. Não há pensamento único, o que é um bom sinal. O historiador Dennison, da ala pessimista, afirma que a mística da cidade das soluções inteligentes começou a desabar há muito tempo, logo que a Fundição Müller deu origem a um shopping no Centro da cidade, desmentindo a imagem da capital que se propôs a ser a antítese de Brasília (leia mais nesta página).

Se no Distrito Federal faltavam não só esquinas, mas pontos de encontro, aqui eles se multiplicariam a céu aberto, nos calçadões. A afirmação política era de que nada substituía a rua. Segundo o pesquisador, essa lógica não só se inverteu como Curitiba se parece cada vez mais com a problemática cidade da qual tentou se diferenciar – Brasília. "Sou cético. Estudar políticas urbanas se tornou inútil. Os prefeitos perderam a autonomia administrativa, pois têm de pagar favores a quem financiou a campanha. Acabou o modelo municipal."

Se Dennison se diz cético, o arquiteto e designer José Marcos Nowak – uma das vozes mais independentes do seu circuito – se diz trágico. Para ele, a discussão sobre modelo de cidade não envelheceu, ficou caduco. "Não há mais volta", comenta o profissional, ao se referir a uma espécie de atestado de óbito das urbes contemporâneas: a segregação. Vale para Curitiba e para Tóquio. Quando dois pontos não se ligam mais, finda a idéia de cidade e nasce "a coisa." Nowak fala de cadeira: nos últimos anos ele tem trabalhado junto a artesãos de favelas, experiência que ajuda a reiterar suas teses. O que ele mais vê são muralhas urbanas separando áreas, a exemplo do que acontece na Vila das Torres.

"Curitiba tem muito controle das suas ocupações irregulares. Mas não basta controle. É preciso aceitação. Quando há aceitação, as ruas são abertas, até porque o desenho urbano da capital favorece. Mas a separação é mantida, deixando a cidade fragmentada, descontínua, desigual. O isolamento de uma área é o que há de pior para uma cidade", comenta. Exemplos não faltam. Basta pensar nos dois mundos criados pela BR-277 no Cajuru. Ou da barreira que representa a Avenida Mariano Torres, por onde passam 6 mil carros por hora – movimento digno de feriadão no litoral.

O arquiteto Fábio Duarte, coordenador do mestrado de Gestão Urbana da PUCPR, alinhava as teses de Nowak com o seguinte raciocínio. O modelo sobre o qual o mito de Curitiba se construiu – particularmente o transporte coletivo – ganhou cabelos brancos. Para continuar sendo referência urbanística, resta-lhe se reinventar. Uma saída nos moldes dos anos 2000 é assumir o posto de cidade sustentável, alistando-se com São Francisco, nos Estados Unidos, ou Montreal, no Canadá, entre as áreas neutras na emissão de carbono. "Temos de fazer um Protocolo de Kioto municipal", ilustra, apontando o caminho natural para um lugar que se auto-intitulou Capital Ecológica. "Só se fala em trânsito e em deslocamento. O foco deve ir para o bem-estar. Acho uma pena. Há 40 anos, Curitiba chegou ao que ninguém conseguia: deter o avanço da cidade sobre os espaços vazios. Foi lá e fez parques. Hoje, perde espaço para automóveis. A pressão para que vença o antimodelo é enorme."

Do outro lado do ringue, Salvador Gnoato, arquiteto conhecido pela defesa canina que faz do patrimônio modernista da capital, garante estar satisfeito em viver na Curitiba de hoje – onde há mais de dois lugares para ir à noite, o que não acontecia nos seus tempos de mocidade. "Passamos décadas procurando fazer uma cidade humana. Hoje, além de ser humana, a cidade tem de ser moderna. Me incomoda essa história de que na década de 70 era melhor. Uma cidade-pólo de região metropolitana não pode mais ser como era antes. A escala do mundo globalizado é outra", provoca.

Voz de consenso, Maria Luiza Marques Dias, a Malu, professora da UFPR na área de Planejamento Urbano e Regional faz uma contraproposta: avaliar se Curitiba envelheceu bem. Estudiosa das relações entre patrimônio e avanço das cidades, ela diz que sim, apesar de tantos carros, do tráfico, das favelas que mais parecem uma cena do Juízo Final. "Temos problemas, mas conseguimos desviar da tentação dos viadutos. É uma prova de que a cidade reage. De que algo do modelo que projetou Curitiba sobreviveu", considera – de posse do problema: por quanto tempo ainda? Para Malu, a equação é mais simples do que parece. A cidade cresceu, o interesse pelos debates urbanos diminuiu e o Ippuc perdeu parte de seu encanto. Mas ficou o DNA. Os curitibanos, por tradição, estão dispostos a discutir o que querem. "Somos uma cidade aberta", garante. O buraco da rua não é o limite.

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Miragem

Em 1967, o filósofo francês Henri Lefévre fez a cabeça de arquitetos e urbanistas de todo o mundo com o livro O direito à cidade. Obra reivindicava o urbano como espaço à literatura e à arte – aspectos que vão fazer parte dos projetos a partir daí. A mudança de rota veio com o nascimento da cidade-espetáculo, globalizada, talhada para atrair turistas e transnacionais. Faça sua escolha.

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