Saúde e Bem-Estar

Diego Denck, especial para a Gazeta do Povo

“Quando eu morrer, você cuida do meu pai?”: as histórias de crianças em fase terminal

Diego Denck, especial para a Gazeta do Povo
03/06/2019 17:00
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Para os médicos, existe uma linha divisória muito tênue entre usar todos os meios disponíveis para salvar um paciente ou causar ainda mais sofrimento e desconforto. Foto: Bigstock.

“Era uma vez um príncipe que precisava salvar o seu reino. Para isso, ele precisava ir até o centro de um vulcão resgatar uma pedra. O único problema é que, se ele fizesse isso, não teria como sair de lá. Ele sabia que isso faria o reino parar de sofrer, mas que não teria como voltar. Todo dia, ele ia até metade do caminho, mas voltava.”
A história acima foi criada por um paciente terminal de Angela de Leão Bley, psicóloga no Hospital Pequeno Príncipe, em Curitiba. O autor tinha cerca de 10 anos, mas já tinha consciência da proximidade de sua morte, criando uma metáfora para esse momento.
No dia em que ela finalmente iria chegar, o garoto, bastante fragilizado, contou o final da história para a psicóloga.

“O príncipe conseguiu resgatar a pedra e sair do vulcão. Só que no entorno da montanha havia um fosso com uma água cristalina. Ele acabou caindo no fosso, mas ficou feliz porque de lá conseguia enxergar os seus pais, só não podia mais conversar com eles. E seus pais também sabiam que ele estava ali, apesar de não poderem vê-lo”.

O fim precoce

A terminalidade infantil é um tema tabu até hoje. O esperado é que a vida siga a ordem natural de os mais velhos morrerem primeiro. A maioria das culturas, como a latina, não está preparada para lidar com a morte, sendo que ela é a única certeza que se tem.

“A terminalidade em crianças ou jovens é mais complexa do que nas pessoas de outra faixa etária. Em Pediatria, envolve mais atores: o médico tem que tratar de seu paciente, e a confiança também tem que ser da família ou de seus responsáveis legais”, explica Donizetti Giamberardino, diretor-clínico do Hospital Pequeno Príncipe.

Segundo a ONU, estima-se que, em 2017, morreram 6,3 milhões de crianças com menos de 15 anos em todo o mundo. A maior parte, 5,4 milhões, faleceu antes mesmo de completar os 5 anos de vida. Entretanto, é possível notar um avanço muito grande nesta área em específico em relação a 1990, por exemplo, no qual houve 12,6 milhões de mortes, sendo que a população mundial era menor.
É importante lembrar que não se tratam apenas de números, mas de vidas, cada uma com suas próprias características. “Muitas vezes a gente leva essa informação à família, as pessoas dizem terem compreendido, mas em realidade não compreenderam. Seja por negação ou por outra razão, às vezes é preciso repetir em distintos momentos a mesma questão, porque não há uma captação imediata”, analisa o doutor Giamberardino.

O diretor clínico do Pequeno Príncipe lembra de uma história marcante: “A criança tinha uns 6 anos e falou: ‘Tio, isso não vai resolver mais, pode parar. Não faça isso porque vai ser pior para mim’. Ela não queria receber a quimioterapia e tinha razão”. A criança estava certa e, segundo o médico, faleceu poucos dias depois.

A obstinação terapêutica

Donizetti Giamberardino lembra que a Medicina prepara para salvar vidas. Assim, a terminalidade de um paciente pode gerar uma série de comportamentos, inclusive nos profissionais que fazem o acompanhamento.

“O amor dos pais é um valor que precisa ser respeitado sem que isso resulte em uma obstinação terapêutica, mas é difícil chegar a um equilíbrio. Você tem que identificar e dizer: ‘Mãe, não temos mais nada o que fazer para resolver, nós só temos que planejar o cuidado’”, analisa o pediatra.

Para o médico, existe uma linha divisória muito tênue entre usar todos os meios disponíveis para salvar um paciente ou causar ainda mais sofrimento e desconforto. Por isso, quando “nada mais há para fazer”, é justamente quando se tem muito a fazer.
A psicóloga Angela Bley explica essa fase: “Se tem uma chance de sair bem, é lógico que ninguém vai colocar o paciente em cuidados paliativos, mas o que a gente quer muito que vire cada vez mais uma filosofia institucional é esse cuidado mais atento, mais empático e mais carinhoso para que nesse momento, que nunca será um momento bonito, a gente possa fazer algo para amenizar a dor”.

O elo entre a família e a equipe

É nessa hora que uma conexão cada vez maior precisa ser feita entre a equipe de assistência, o paciente e a família. Os parentes podem criar vínculos com os médicos, com os psicólogos, com os nutricionistas e até mesmo com o pessoal da limpeza. É preciso dar valor a essas relações e respeitar as decisões dos familiares.

O doutor Giamberardino lembra a vez que estava tentando reanimar uma criança que teve uma parada cardíaca na UTI. Ela vinha de uma família muito humilde e seu estado era gravíssimo, gerando muito sofrimento. Depois de vários minutos de massagem cardíaca, o avô falou: “Posso pedir uma coisa? Parem. Apenas parem”.

“Essa clareza de raciocínio é muito individual e há diversos valores que interferem nessa decisão”, analisa o diretor clínico do Pequeno Príncipe. Entre os valores estão a estrutura familiar, a espiritualidade, as condições que levaram à gestação daquela criança e o que se sonhava com ela.
“Você costuma encontrar na família uma liderança, para fazer uma conexão dentro da razão, mas esse é um assunto que não tem fim, não tem receita de bolo e não tem uma fórmula mágica. Cada família enfrenta os seus problemas do tamanho que ela enxerga”, explica o doutor Giamberardino.

O poder da empatia

Para lidar com todas essas questões, o Hospital Pequeno Príncipe criou o comitê de bioética. De acordo com a psicóloga Angela de Leão Bley, isso aconteceu depois que um menino de 12 anos, que precisava de uma transplante duplo, optou por recusar o tratamento por motivos religiosos. “A família também não queria. A chance de sucesso era muitíssimo pequena, e o risco era muito grande”, relembra a doutora.
O adolescente faleceu dias depois, por isso foi preciso fazer um trabalho com toda a equipe médica, com a segurança, com o pessoal da limpeza e da comunicação, para que todo mundo entendesse que ninguém estava desistindo do garoto, mas lhe proporcionando qualidade de vida.
“Há todo um planejamento terapêutico para cuidar, para minimizar o sofrimento e o desconforto respiratório, por exemplo”, explica Donizetti Giamberardino.
A psicóloga Angela concorda que o melhor, no momento, é respeitar as decisões da família e da criança. “É lógico que não dá para fazer loucura. Enquanto houver uma chance, vai ser lutado por isso”, analisa a doutora.

Ela lembra o caso de uma adolescente que, depois de meses de tratamento e dieta restrita, nada mais restava a ser feito. Por isso, como último desejo, ela quis um dia de fartura: comeu pizza, hambúrgueres, sushi e até costela! Imediatamente após o banquete, os seus sinais vitais melhoraram, mas ela só resistiu por mais uma semana.

Ensinamentos e esperança

Outro caso marcante na carreira de Angela foi o de uma menina de 9 anos, em estágio terminal de câncer. Ao entrar no quarto para conversar com ela, seu pai proibiu a psicóloga de dar a notícia fatídica. Depois de alguns minutos de papo, a menina pediu para o pai se retirar e pediu à psicóloga: “Quando eu morrer, você cuida do meu pai?”.

Ao contar a conversa para o pai, a doutora a viu desmontar. “Foi muito forte, mas muito bonito, porque ele abraçou a filha, e os dois puderam entender esse momento de que os dois já sabiam, mas que tinha aquele pacto de silêncio”, relembra.

Essa visão da beleza, mesmo em um momento tão delicado, é um sentimento compartilhado pelo doutor Giamberardino. “Nós que trabalhamos em um hospital pediátrico somos muito privilegiados, porque os ensinamentos que as crianças nos passam no dia a dia são algo mágico. O olhar sereno diante de uma terminalidade tem uma paz. Elas dão muito mais para nós do que nós damos para elas”, analisa o pediatra.
Também é preciso ter esperança. A psicóloga Angela lembra da história de uma paciente que sonhava com seu baile de debutantes. Como ela estava em cuidados paliativos, sem chance de cura, a probabilidade de chegar aos 15 anos era pequena, ela fez o baile aos 10 anos.
“E teve direito a valsa, bolo, príncipe, tudo o que ela queria. Depois, aos 11 anos, ela fez outro baile. E de novo aos 12”, conta a doutora. Ela está na torcida para que os cuidados paliativos permitam que a garota possa realizar seu sonho original.
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