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Brasil acima de tudo? Aham, Claudia, senta lá…
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Uma das principais linhas de discurso do presidente eleito, aplaudida de pé nas redes sociais, é a da política externa livre de ideologia política, centrada nos interesses do Brasil. O reforço da narrativa me ensinou algo muito importante: ideologia é como sotaque, só existe quando é dos outros. Talvez seja por isso que Jair Bolsonaro insiste na narrativa a despeito das atitudes de seu núcleo duro.

Ao repetir a apologia à falta de especialização formal, explorada à exaustão pelo ex-presidente e agora presidiário Lula, o governo de transição muito rapidamente contradiz com atos as próprias palavras e repete o erro que critica nos petistas: submete o destino dos brasileiros às condições impostas pela ideologia do núcleo duro do governo.

Na realidade, a “política externa sem ideologia”, ao que parece, é apenas mudar a chave para o outro pólo ideológico. Em vez de a economia brasileira perder por servir aos interesses de países governados pela esquerda, passa a perder por servir aos interesses de determinados governantes de direita. Se esses fossem tão generosos quanto o governo de transição, até seria interessante. Mas os demais países priorizam mesmo a soberania e o próprio povo.

Chegamos ao ridículo de enviar um filho como representante do presidente eleito a outro país. Qual foi o último filho que recebemos aqui como representante do pai? Teodorín Obiang, filho do ditador sanguinário da Guiné Equatorial, país enroscado agora na última denúncia da Lava Jato feita contra Lula. É tradição de ditadores africanos enviar seus filhos como representantes ao exterior. Até ditaduras árabes titubeiam sobre a prática porque o país começa a ser visto como uma republiqueta.

O governo de transição despreza todo o conhecimento acumulado na tradição diplomática do Barão do Rio Branco, cujo profissionalismo é elogiado em todo o mundo, para expor as entranhas de uma falta de organização familiar.

Bolsonaro filho vestindo um boné de campanha de um único candidato à presidência do maior parceiro comercial do Brasil é muito mais grave que Lula gravando vídeo de campanha para Maduro. Se a oposição ganha na Venezuela, afeta pouco o Brasil, sobra só o vexame e o ato injustificável de um governante que de diz democrático apoiar uma ditadura. Mas, e se um democrata ganha nos Estados Unidos, quanto custará a todos nós e à nossa economia a travessura do filho-emissário?

Os apoiadores minimizam o gesto. Estou acostumada com o discurso. Morei em Angola, onde o ditador à época, José Eduardo dos Santos, costumava mandar sua filha Isabel como representante oficial ao exterior. Todas as reclamações sobre o fato eram tratadas com o mesmo desdém que vemos agora no governo de transição. Afinal, Isabel dos Santos é uma grande negociadora, grande empresária e a mulher mais rica de Portugal (isso mesmo, de Portugal!). Talvez estejamos buscando essa imagem da mais absoluta seriedade e profissionalismo que o governo ZéDu imprimia à política externa angolana.

A falta de profissionalização e o total desprezo por assessoramento especializado, repetindo a prática diária lulista, transformaram o encontro com o Conselheiro Nacional de Segurança dos Estados Unidos em um manual de como ser capacho. O presidente eleito do Brasil presta continência a John Bolton, que NÃO retribui. Nem os militares americanos prestam continência a ele, que não faz parte da linha de comando. Fosse uma continência de cortesia, como defendem os adoradores do presidente eleito, teria sido retribuída.

John Bolton entendeu o gesto como o que é, não como Jair Bolsonaro quis que fosse. A seguir, quando o General Fernando, nosso futuro ministro da Defesa, lhe estende a mão para cumprimentar, ele passa uma caneca esperando ser servido. Só depois cumprimenta, entendendo que é um ministro. Julgou que fosse um subalterno. Aliás, mais um ali no grupo. Ao contrário do vexame do filho no exterior, este não tem o risco de nos trazer consequências práticas além do arranhão na imagem e de algum deboche internacional.

Há uma diferença entre administrar contas de twitter ou sites alternativos e administrar um país com 200 milhões de habitantes. A defesa dos nossos interesses e da nossa soberania não será feita a golpe de frases feitas aplaudidas por uma multidão de seguidores religiosos, será feita com ações.

Em uma entrevista coletiva muito confusa, foi perguntado ao presidente eleito se era dele a decisão de voltar atrás no compromisso internacional de sediar em Foz do Iguaçu a COP 25, Conferência Internacional do Clima. Onyx Lorenzoni, desesperado, soprava que era decisão do Itamaraty, não do novo governo. Jair Bolsonaro dispara que teve participação na decisão sim.

Parte do núcleo duro do presidente eleito não acredita em aquecimento global. Quem vai pagar pela crença são os empresários brasileiros que já se preparavam para o evento. O Brasil tem liderança técnica internacional em pouquíssimas áreas e essa é uma delas. Nossos especialistas em energia limpa, crédito de carbono e desenvolvimento sustentável são respeitados no mundo todo e diversos ramos produtivos investiram pesado nos últimos anos nesse campo. É uma grande oportunidade de mostrar trabalhos e fazer contatos. Suspende tudo agora por que é contra as crenças de alguém no governo?

Se há algo que o governo de transição poderia ter aprendido na viagem aos Estados Unidos, mas os americanos não são tontos o suficiente para ensinar, é como tratar a China, principal parceiro comercial deles. Foi negado um convite para viagem porque vinha da parte do Partido Comunista, que controla o país. Mais uma vez, a ideologia pesou mais do que toda a troca comercial e a necessidade de investidores e empresários brasileiros.

Todas essas críticas a fatos são tratadas com desdém, simplesmente ignoradas ou rebatidas com virulência e sem resposta. Não é apresentada nenhuma explicação razoável para o fato de um governo de transição que nas outras áreas tem cumprido exatamente o que prometeu resolver fazer o oposto do que prometia na política externa. A expertise diplomática brasileira tem sido deixada de lado porque acredita-se que no núcleo duro há pessoas inexperientes mas capacitadas devido a pequenas realizações pontuais. Isso se chama vaidade.

Sem querer dar spoiler, a cena final do filme “O Advogado do Diabo” é uma frase de Al Pacino, que interpretava o satanás em pessoa: “A vaidade é meu pecado preferido”. Onde há vaidade não há Deus, dizem as 3 principais religiões monoteístas. Palavras são espumas ao vento. Nem Brasil acima de tudo, nem Deus acima de todos.

Oremos para que seja mais um caso em que, depois de avaliar o estrago, Jair Bolsonaro enxergue o preço da vaidade dos que o cercam e decida botar ordem na casa.

 

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