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Brasil está entre os “top 5” mundiais do casamento infantil
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Você sabia que todos os anos aqui no Brasil há 65 mil "casamentos" em que a noiva tem entre 10 e 14 anos de idade? Eu não imaginava, fiquei sabendo através do alerta de uma promotora que trabalha na área. Hoje é o "Dia Internacional da Menina", celebrado pela ONU, data criada para dar visibilidade aos dramas silenciosos de milhões de meninas em todo o mundo. Aqui, temos uma parcela enorme e um desafio de mudança cultural pela frente.

Ficou conhecido aqui no Brasil o experimento do youtubber norte-americano Corby Persin envolvendo um casal de atores que tirava fotos de casamento na Times Square, em Nova Iorque. Era um homem feito e uma menininha. Muita gente se revoltou, teve até quem levasse a garota dali.

Não duvido que a reação seria a mesma se o experimento fosse conduzido num lugar movimentado de qualquer grande cidade brasileira. Ocorre que, nas mesmas cidades, há meninas dessa idade "casando" com homens e elas são invisíveis. De acordo com a lei, sexo com menor de 14 anos é estupro, crime hediondo, ainda que haja consentimento, já que a pessoa não é capaz de consentir ou não com essa idade. Mas muitas famílias aceitam a prática, não vão à polícia e remediam com o início de um novo núcleo familiar.

No Brasil são realizados anualmente 554 mil casamentos de meninas menores de 18 anos de idade. Que tipo de futuro estamos traçando para a nossa sociedade com a constituição dessas famílias

No mundo, são 12 milhões de meninas menores de 18 anos que casam anualmente, o que nos faz chegar à cifra de uma população total de 650 milhões de mulheres que se casaram antes dos 18 anos de idade. Há um traço em comum nessas uniões: geralmente o homem é mais velho, mais experiente e tem melhores condições econômicas que a família da menina. É no casamento precoce - com todas as chances de dar errado - e não nos estudos que muitas famílias enxergam um futuro para suas meninas.

A promotora Fabíola Sucasas Negrão Covas conta um caso concreto em que um colega ficou muito indignado. Uma menina de 11 anos de idade havia se "casado" com um homem mais velho, que foi obviamente processado por estupro. Para surpresa do promotor, ele foi absolvido e a família da menina ficou aliviada porque via aquela união como única saída para a vida dela.

"Eu refleti com ele: quais são as ofertas que nós, da sociedade, demos a essa menina ou damos para ela? Primeiro porque já não se dá oportunidade para ela ser a criança que ela é. Segundo porque, a partir de uma gravidez, além dos riscos à saúde, lá se vão as oportunidades para o desenvolvimento intelectual e de autonomia dela porque certamente ela vai abandonar os estudos." - conta a promotora.

No último final de semana tive uma conversa muito interessante com uma professora experiente da rede pública de São Paulo e uma aluna da escola pública mais conceituada do Estado. Ambas abriram meus olhos para algo que eu desconhecia: a importância que a sensualidade tem passado a ter nas vidas das meninas. Antes mesmo da adolescência, a prioridade de muitas delas é mostrar um corpo sensual - e por isso arrumam as maiores brigas quando a escola obriga a usar uniforme.

Diversos acadêmicos das áreas de psicologia, ciências sociais, comunicação, linguística e literatura têm se dedicado a estudar um fenômeno contemporâneo: a relação entre permissividade com condutas adultas entre adolescentes e a aceitação de uma massa de adultos que se comporta como adolescente.

Parecem estudos muito complicados, mas são bem objetivos. Adolescência é a fase em que deixamos a vida de sonhos da infância para assumir uma postura adulta, com regras e princípios. Só que os adultos ao redor desses adolescentes têm como ideal uma vida desregrada, de liberdade sem consequências, uma eterna juventude em que estética, frivolidades e consumo são as prioridades. Qual é exatamente a transição que esse jovem vai fazer? O que será o mundo adulto que ele primeiro contesta para depois achar seu lugar? Uma eterna adolescência.

"Hoje, a adolescência como ideal parece intensificar o desamparo dos adolescentes num mundo em que as “as regras são feitas por eles e para eles”, no qual os adultos não oferecem mais referências identificatórias nem consistência imaginária. (...) Muitos jovens hoje apresentam intensos sentimentos de tédio e vazio que, além de serem indicativos de sofrimento psíquico, podem também se configurar em uma forma de oposição ou rebeldia frente aos prazeres sugeridos e praticados pelos adultos. Assim, muitos adolescentes de hoje estariam construindo uma saída depressiva face à dificuldade de gozar irrestritamente, sugerindo que ficar deprimido ou entediado seria uma maneira de resistir e desaprovar o gozo dos pais e se recusar a compartilhá-lo" - explica um paper feito por 3 psicólogas da Puc-Rio, intitulado "A Adolescência como Ideal Cultural Contemporâneo".

O trabalho acadêmico em psicologia chama a atenção para a boa-vontade da mídia em retratar como positiva a possibilidade de compartilhar com os pais as maneiras de "gozar a vida": " mesmo que as reportagens indiquem alguns dos perigos que podem surgir dessa ausência de diferenças, parece haver uma disposição geral de ressaltar os aspectos positivos dessa prática social". Pais podem e devem dialogar muito com os filhos, mas não podem se esquecer que são diferentes. Se os pais querem ser adolescentes, por que o adolescente não vai querer também uma vida de "adulto"?

Dois trabalhos de áreas diferentes mostram como o corpo tem sido o foco da identidade dos adolescentes. Quem já foi adolescente lembra exatamente de como a combinação entre hormônios e inexperiência pode levar a resultados ruins. Adicione ao pacote o foco o tempo todo em consumo, estética e corpo. Não tem o menor risco de dar certo.

O paper "Mídias e a imagem corporal na adolescência: o corpo em discussão", feito por duas psicólogas e uma cientista social da PUC de Minas também toca na temática de que a nossa sociedade elegeu a adolescência como ideal de vida - e tem chamado isso de "liberdade". "As exigências traduzidas pelas imagens do contemporâneo, sobretudo as fornecidas pelas mídias, configuram um corpo-imagem irreal e ilusório, nem sempre convergente e em sintonia com as imagens corporais de indivíduos imbuídos de marcas familiares e vivenciais de ordem biológica, afetiva e social", diz o estudo. A mídia vende como "pessoa ideal" aquela que em nada se parece com os adultos do dia-a-dia, que deveriam ser os modelos para os adolescentes. Sobra para eles a sensualização precoce e desregrada.

Um estudo de literatura e linguística da Unicamp mostra como as revistas adolescentes contribuem para reduzir a identidade ao corpo, consumo e estética. Chama-se "Corpo e moda com glamour: imagens sobre a adolescência" e analisa duas das mais famosas revistas para meninas adolescentes. As publicações reduzem a identidade das meninas e a diferenciação entre os diversos grupos sociais ao visual, à moda, à estética. Toda a dimensão humana, nessas publicações, é tratada como se pudesse ser reduzida a um corpo.

Numa sociedade em que os adultos têm como ideal parecer jovens, a adolescência é tida como valor, como auge - e não como a transição que deve ser para um mundo regido por valores, princípios, estudo e trabalho.

O resultado do comportamento adolescentes dos adultos na sexualização dos jovens é brutal. Um aspecto interessante é o dos pais que rejeitam qualquer tipo de orientação sexual para os filhos - com qualquer desculpa estapafúrdia - e deixam que eles aprendam na rua ou com o coleguinha. Como os jovens ficam sem parâmetros, a estética e sensualidade, que faz parte do universo dos pais, passa a ser valor no deles.

As meninas querem ser sensuais para obter aceitação do grupo e isso implica também se mostrar aos meninos como "objeto de desejo" e ambos os grupos tentem a glamorizar atos sexuais irresponsáveis. Ouvi de vários professores a história das meninas (de 11 a 14 anos) fazendo listas de "quem pegou mais" e debochando das que são virgens. Muitas se orgulham ao serem chamadas de "puta", "cachorra" ou "vagabunda", algo que também já tem reflexo na mídia: muitas letras de funk e sertanejo tratam de dar status a quem tem comportamento sexual irresponsável.

Se tivesse solução fácil para esse imbroglio, já teria sido resolvido. Sempre há quem proponha soluções simplistas ou bravateiras para problemas estruturais e sociais tão graves. É mais uma comprovação da glamorização da adolescência: comportar-se como papai-sabe-tudo sem nem saber do que está falando hoje é comportamento aceito socialmente. Eu, sinceramente, não sei nem por onde começar para dar às meninas brasileiras a atenção e estrutura social que não estamos dando.

Gosto muito de uma frase do inesquecível Arthur Ashe: "Comece onde você está, use o que você tem, faça o que você pode". Cada um de nós pode, direta ou indiretamente, melhorar o mundo para as meninas. Que seja na família, num grupo pequeno ou até mesmo levantando a discussão. Precisamos, de alguma forma, dar o primeiro passo.

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