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Cármen Lúcia tirou o turbo do indultão do Apocalipse: passou a ser um indulto tradicional
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Já que o indultão do Apocalipse de Temer faz o Executivo meter o bedelho nas funções do Judiciário e, mais especificamente, no momento em que ele mexe com os malfeitos da alta cúpula dos dois outros poderes, a reação de Cármen Lúcia na semana morta entre Natal e Ano Novo era o ato político mais aguardado da República – e mais decisivo para o equilíbrio entre os poderes.

O documento completo está aqui: ADI5874liminar-Ministra-Cármen-Lúcia

A presidente do STF e do CNJ não é dada a atos de demonstração de força nem de espetacularização, mas é craque em falar bem nos autos, como falou desta vez.

Há alguns fatos objetivos a serem observados na reação: a velocidade de resposta, o quanto é atendido do pedido da PGR e se há comentários pessoais sobre o Decreto presidencial.

Só há DUAS justificativas para se conceder uma liminar monocrática durante um plantão de recesso do Supremo Tribunal Federal: fumus boni iuris e periculum in mora, necessariamente combinadas. A primeira tem a tradução que eu não gosto, mas é a única “fumaça do bom direito”, ou seja, parece à primeira vista ser algo bastante pertinente constitucionalmente. A segunda é o perigo da demora, ou seja, o risco de que a demora de uma decisão coloque em risco a validade dela.

Na decisão, a presidente do STF justifica que não há direito posto em risco a quem espera mais um pouco por um indulto, mas há ao permitir que se indulte indevidamente aquele que cometeu crimes julgados dentro do devido processo legal e que não são passíveis de anistia de acordo com a Constituição. O risco é à ordem, ao Estado de Direito.

Cármem Lúcia demorou menos de 24 horas para atender integralmente o pedido de Raquel Dodge e fazer comentários no mesmo sentido dos da PGR: preocupada com os limites do poder do presidente da República. É um recado cristalino.

Michel Temer foi notificado para manifestar-se SE QUISER, ou seja, é desnecessária sua intervenção no processo até que ele chegue ao relator, ministro Barroso, ou ao plenário do STF, após o recesso. Já a PGR, é instada a necessariamente pronunciar-se de novo.

Fosse futebol, a vitória de Raquel Dodge seria descrita como um chocolate. A grande questão é: como Michel Temer, um dos maiores constitucionalistas do país, não previu essa jogada? Ou previu?

A PGR foi cautelosa ao não questionar o instituto do indulto, não extrapolar com questionamentos ideológicos seus deveres constitucionais e manter o foco exclusivamente no ponto em que a Presidência da República extrapolava os limites constitucionais de sua atuação, sempre de forma absolutamente técnica, inclusive compilando todos os indultos presidenciais desde 1999 para não deixar dúvidas do quanto este destoava dos demais.

JAMAIS foi pedida a anulação ou suspensão de todo o decreto. Tudo o que foi pedido pela PGR foi atendido pela ministra Cármen Lúcia.

A Lava Jato está em risco e o poder de Temer tem limites, diz Raquel Dodge em ação contra o indultão do Apocalipse (documento na íntegra)

O QUE FOI PEDIDO E CONCEDIDO

O controle de constitucionalidade se faz artigo por artigo. Não se analisa um texto inteiro como constitucional ou não, nem se pode editar artigo pela metade, cortar palavra ou modificar. Fica ou sai um artigo ou inciso inteiro sempre. O que foi feito: Impugnação do inciso I do artigo 1º, o parágrafo 1º do artigo 2º e os artigos 8º, 10 e 11 do Decreto 9247/17.  Esse combo é o que transformava um indulto comum, como os dados desde sempre no Brasil, no indultão do apocalipse.

O que mudava com esses pontos?

Embora todo mundo tenha justificadamente voltado seus olhos para os réus da Lava Jato que poderiam obter benefícios a partir desses pontos, essa pátria de chuteiras também tem outros criminosos que se beneficiariam do pacote, como traficantes de órgãos e de pessoas.

Ocorre que há vedação constitucional expressa para isso. Não se pode conceder nenhum tipo de graça, perdão ou benefício, por nenhuma razão para esse tipo de crime.

Também não se pode anistiar pena pecuniária, está expresso na Constituição.

OS COMENTÁRIOS DE CÁRMEN LÚCIA

Em sua sentença, a presidente do STF e do CNJ citou Ruy Barbosa para lembrar que os nossos problemas com os mais altos mandatários se repetem há muito tempo:

“Nenhum poder mais augusto confiou a nossa lei fundamental ao Presidente do que o indulto. É a sua colaboração na justiça. Não se lhe deu, para se entregar ao arbítrio, para se desnaturar em atos de validismo, para contrariar a justa expiação dos crimes. Pelo contrário, é o meio, que se faculta ao critério do mais alto magistrado nacional, para emendar os erros judiciários, reparar as iniquidades da rigidez da lei, acudir aos arrependidos, relevando, comutando, reduzindo as penas, quando se mostrar que recaem sobre os inocentes, exageram a severidade com os culpados, ou torturam os que, regenerados, já não merecem o castigo, nem ameaçam com a reincidência a sociedade. Todos os Chefes de Estado exercem essa função melindrosíssima com o sentimento de uma grande responsabilidade, cercando-se de todas as cautelas, para não a converter em valhacouto dos maus e escândalo dos bons” (Barbosa, Ruy – Comentários à Constituição Federal Brasileira. São Paulo: Saraiva, 1933, v. III, p. 257)

É na mesma linha o alerta que a ministra faz sucessivas vezes ao longo da decisão liminar sobre o indultão do Apocalipse:

Indulto não é nem pode ser instrumento de impunidade.

Indulto não é prêmio ao criminoso nem tolerância ao crime.

O indulto constitucionalmente previsto é legitimo apenas se estiver em consonância com a finalidade juridicamente estabelecida. Fora daí é arbítrio.

Maquiando a descriminalização sob a forma de indulto, o que se estaria a praticar seria o afastamento do processo penal e da pena definida judicialmente.

NÃO TENHAMOS ILUSÕES

Os argumentos jurídicos são sólidos, a Constituição é clara e o presidente da República é um dos maiores constitucionalistas que o Brasil já teve. Aliás, ele próprio escreveria muito melhor que eu este texto, encontrando outros 10 mil defeitos em todas as peças jurídicas e mandando reescrever até chegar ao texto do jeito que considera apresentável.

As negociações políticas e as declarações de emissários prosseguirão durante o recesso e até uma decisão definitiva do STF, que não tem prazo legal para colocar um ponto final nessa história.

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