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O universo paralelo do PSOL e do PT
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Seriam cômicos se não fossem trágicos os textos publicados pelo PSOL e pelo PT em apoio ao massacre que o ditador Nicolás Maduro promove contra seu povo. Vivemos uma era em que a política bebe da distorção completa da verdade, ironicamente contando com o fato de haver tantas fontes de informação que o povo jamais irá beber da correta, mas sempre da versão temperada conforme o gosto do freguês. Algumas pitadas de realidade são adicionadas a um caldo fantasioso que casa com as expectativas de quem lê – é simples assim a receita da quase verdade.

Fato é que não existem quase verdades, elas se chamam mentiras. Mas é por meio delas que os deuses e demônios da política têm sido construídos ultimamente. Se o cidadão tem acesso a todas as fontes de informação segura nessa era de transparência, também é verdade que prefere a arena segura dos que pensam da mesma forma e atacam em bando os que ousam discordar da manada. Por essas e outras, PT e PSOL têm a desfaçatez de defender Nicolás Maduro e, ao mesmo tempo, posar de defensores dos direitos humanos.

É óbvio que as imensas reservas de petróleo da Venezuela atraem a cobiça de chefes de Estado no exterior, mas resumir todo o drama a essa simplificação é uma desonestidade.

Nós já vimos este filme a vida toda: quando há um regime autoritário em um país que tem riqueza estratégica para a economia mundial, a reação de todos os demais países é muitíssimo mais rápida e efetiva. Não veremos mobilizações pelo Mali e pelo Sudão do Sul. Há países africanos em que os cidadãos começaram a matar gorilas para que a comunidade internacional desse atenção à fome e à carnificina a que estava submetido o povo.

Podemos buscar o argumento fácil de que a vida humana vale menos que o dinheiro, mas a questão é bem mais complicada: cada um vale o risco que representa. Enquanto um conflito num país que não tem riquezas estratégicas para a humanidade vitima apenas seus nacionais, o autoritarismo e a guerra em uma nação assentada sobre petróleo afetam as vidas de gente em todo o mundo. É pela mistura da intenção de minimizar riscos com a esperança de, quem sabe, ainda ter um lucro que “coincidentemente” todos os conflitos em países produtores de petróleo recebem mais esforços e atenção.

Fosse no Paraguai e não na Venezuela o massacre autoritário contra o povo, os Estados Unidos estariam tão interessados assim? Provavelmente não. Não estiveram interessados em enviar ajuda militar a praticamente nenhum país que não tenha importância estratégica para o povo norte-americano. Claro que se pode questionar a real intenção humanitária das intervenções, mas também é necessário ponderar: os Estados Unidos não são a polícia do mundo. Vestem a carapuça quando interessa, mas a real intenção é proteger os seus – e talvez somente os seus.

Nada disso, no entanto, minimiza a barbárie a que Nicolás Maduro submete o próprio povo e que já rendeu contra ele denúncia por crime de lesa-humanidade no Tribunal Penal Internacional.

Qualquer que seja a situação política de um governante, ele não tem o direito de privar seu povo do mais básico para a sobrevivência em nome da própria ideologia ou da manutenção da autoridade. É, infelizmente, o que ocorre na Venezuela. A falta de comida e de remédios é documentada à exaustão. Entidades internacionais de Direitos Humanos estimam em 20 quilos a perda de peso média do venezuelano nos últimos anos devido à falta de alimentos no país.

Há ainda uma outra verdade sendo torcida tanto pela esquerda mal-intencionada quanto pelos rambos que estão pouco se lixando para a democracia desde que vejam o circo pegar fogo: o não-intervencionismo do Brasil.

O Brasil é, historicamente e constitucionalmente, partidário da não-intervenção e da soberania dos povos. Porque surgiram, na direita, alguns rambos inconsequentes querendo rasgar nossa Constituição e nossa história em nome de uma oportunidade de ver tiro comendo solto, surge na esquerda a narrativa de que apoiar Juan Guaidó é apoiar uma intervenção dos Estados Unidos no país. Dois erros não fazem um acerto, fazem no máximo um erro maior ainda.

O presidente interino – chamado pelo PT de presidente autoproclamado – tem legitimidade para assumir o poder naquelas circunstâncias de acordo com a Constituição da Venezuela. Que o PCO classifique ajuda humanitária de “tentativa de invasão” não me surpreende. Não é prioridade do partido a defesa dos Direitos Humanos, mas a defesa de sua ideologia. O partido defende claramente o armamento da população para que possa promover a luta armada e impor o que chama de “governo do proletariado”.

No entanto, é surpreendente que partidos como o PT e o PSOL, que reivindicam para si o monopólio da virtude e da defesa dos Direitos Humanos, com tradição recente na guerra de grupos de pressão em pautas identitárias, coloquem a ideologia de esquerda acima da dignidade humana. Há muito tempo que a cúpula do PT – e depois parte da cúpula do PSOL – nutrem uma relação nada saudável com a ditadura cubana, glamurizada e romanceada como se estivéssemos falando realmente de heróis que se dedicam ao povo.

A amizade entre Lula e Fidel Castro, as sucessivas visitas de cortesia – antes, durante e depois da presidência -, a hospedagem em hotéis de luxo diante do povo miserável, a narrativa de que o povo é feliz devido à perfeição na saúde e educação poderiam até ser explicadas pela mitificação do ditador cubano mas jamais justificadas. Não pode alguém que se diz democrata compactuar com a perda das liberdades individuais denunciada pelos milhares de fugitivos do regime.

A questão é que, enquanto Lula estava no poder, a deferência se estendeu a um Hugo Chávez eleito democraticamente como alternativa “contra tudo isso que está aí”. De tempos em tempos, os povos parecem reincidir na ideia absurda de que alguém de dentro do regime é a nova política e vai salvar todas as almas dos cidadãos simplesmente porque essa pessoa foi ungida, por Deus ou pela ideologia.

Chávez se aproveitou da boa fé do povo até a última gota e começou, pouco a pouco, a mirar nos críticos. Primeiro foi a direita, depois a imprensa, depois a escolha democrática de outro presidente.

O PT, que na época estava no poder no Brasil, apoiou diretamente Nicolás Maduro como sucessor do falecido Chávez, mesmo tendo uma ideia da bomba que se estava armando. Se, com todo o talento e tino político do militar, aliados à promoção de sua figura como mito, já não era possível conter o descontentamento do povo, alçar ao poder alguém como Maduro poderia significar o início do caos. Nada importou além da identidade ideológica nesse caso.

A questão da identidade ideológica se tornou central para o brasileiro nos anos subsequentes. Mesmo sem saber muito bem o que é direita e o que é esquerda, os cidadãos meio que se dividiram entre esses dois times tendo como base não os princípios e valores individuais mas os políticos que idolatram e o grupo social do qual fazem parte.

Do mesmo jeito que os defensores do porte de arma acham que isso é política de direita, usar bicicleta em bairro rico passou a ser sinônimo de política de esquerda. Na verdade, é apenas a política do samba do crioulo doido.

Quem realmente tem princípios e acredita em determinada ideologia dialoga. Os que se dividem em timinhos de 5ª série tentando desqualificar todo e qualquer raciocínio do grupo adversário têm apenas ídolos e imaturidade. Não há debate político sério envolvendo pessoas que não saibam apontar uma falha do próprio grupo ideológico e uma qualidade do adversário. Se o medo de perder a narrativa é maior que a honestidade intelectual, não se trata mais de política.

Para PT e PSOL é tão importante tratar a crise venezuelana como uma ameaça da direita à soberania dos países que escolheram governos de esquerda que os fatos já não importam mais. O PSOL chega ao cúmulo de chamar o presidente interino da Venezuela de “direitista”, sendo que ele é filho do movimento estudantil e filiado ao Voluntad Popular, partido de esquerda que faz parte da Internacional Socialista.

A presidente do PT, Gleisi Hoffmann, chega ao absurdo de gravar um vídeo para defender Nicolás Maduro. A história que conta é de uma conspiração norte-americana, da qual o presidente do Brasil seria parte, e tem tudo a ver com petróleo e com desmontar um governo absolutamente legítimo. As imagens de fome, miséria e da Guarda Nacional Bolivariana atirando contra o próprio povo são apenas intrigas da oposição para atender aos interesses norte-americanos. A nota do PSOL vem carregada de clichês antiquados, como neoliberalismo e ianques, para chegar a uma conclusão que periga concorrer ao Oscar de melhor roteiro ano que vem.

Todos os países, exceto Coreia do Norte, Cuba, Rússia e China, essas potências da democracia mundial, estariam então mancomunados para o falso esquerdista Guaidó entregar seu país aos ianques?

A mais nova narrativa da esquerda é que seus ícones não estão defendendo Nicolás Maduro, mas a soberania da Venezuela e a não-intervenção. Talvez isso tranquilize quem vê seus ídolos políticos compactuando com uma carnificina, mas nem por isso passa a ser um fato. Da mesma forma, há os fanáticos do outro lado, os que crêem ser necessária uma intervenção em todas as formas mundiais de “esquerdismo” em nome da democracia. Não há democracia sem equilíbrio entre as mais diversas opiniões.

O fato é que, se os venezuelanos estão deixando o próprio país a pé, aos milhares, rumo aos vizinhos mais próximos, há efetivamente algo de muito errado acontecendo por lá.

Em torno dessa crise humanitária, dos relatos de prisões políticas, dos vídeos mostrando execuções públicas que se reúne o chamado “Grupo de Lima”, composto em 2017 pelos chanceleres de 8 países da região em busca de uma saída para a Venezuela que não resulte num banho de sangue. Em nada ajuda a postura mesquinha dos amigos de Maduro criando versões soft de sua atuação contra os adversários e enganando uns poucos insensíveis no parque de areia antialérgica da política.

A polêmica em torno da ajuda humanitária é um dos maiores disparates da política atual. Ajuda humanitária entra até em guerra, entra na guerra da Síria, por exemplo. Não há perdão para quem, à revelia do mais básico sentimento de fraternidade humana, queima comida na frente dos famintos e remédios na frente dos doentes porque deseja manter seu quinhão de poder. A teoria fantasiosa do Cavalo de Tróia humanitário tem sido comprada de maneira vergonhosa por alguns líderes políticos da esquerda brasileira.

Vale lembrar que não é só o governo Bolsonaro quem oferece ajuda humanitária à Venezuela nem só os Estados Unidos. Diversos países se compadecem do povo e tentam, junto com o presidente interino, encontrar uma saída para a liberdade dos venezuelanos sem que sobre eles seja derramada como última cartada a ira do ditador Nicolás Maduro, aferrado até agora ao palácio de Miraflores e recebendo vídeos de apoio de celebridades internacionais que nunca passaram fome.

O PT posta em seu site que “delegações” de 85 países chegam hoje à Venezuela para a Assembleia Internacional dos Povos (AIP). O representante do Brasil, segundo a publicação, é o fundador do MST, João Pedro Stédile. Fosse delegação, ele necessariamente teria representatividade oficial, ou seja, um cargo no governo de Jair Bolsonaro, coisa que parece bastante improvável. Trata-se de uma reunião de expoentes da esquerda, celebrada onde transita a malta que desfruta dos luxos providenciados pelo petróleo venezuelano enquanto a população luta contra a fome.

É difícil entender o que faz alguém reduzir a ideologia um caso em que o poder esmaga a dignidade humana. Talvez seja a sede de poder ou um inconfessável desprezo pela condição humana. PT e PSOL parecem viver num universo paralelo onde são reais suas narrativas de luta pelos excluídos e pela ética na política. São dois partidos grandes, completamente perdidos agora que ganharam oposição real e sem nenhuma intenção de um debate sério em torno da importância da garantia dos Direitos Humanos.

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