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Quem desvendou as Fake News da paralisação dos caminhoneiros?
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“Já foi retirado do YouTube. O pessoal da Globo está aflito com a circulação desse vídeo. Repasse sem dó.” É um chavão comum das diversas Fake News que recebemos por WhatsApp desde o início da paralisação dos caminhoneiros e que realmente tiveram reflexo no comportamento da população. Você provavelmente recebeu algumas das mais famosas.

Grupos de mães, grupos de famílias, grupos de empresas, grupos do futebol, grupos da igreja, grupos de partidos políticos, todos eles foram atingidos por textos alarmistas, contendo um fundo de verdade. Pode ser uma declaração verídica de um político descontextualizada, um vídeo legítimo de muito tempo atrás descrito como se fosse da paralisação, uma gravação de pessoa pública sobre outro tema atribuída ao que vivemos agora. Quem está em casa sem combustível e saber como será o dia de amanhã só quer ter certeza de proteger a própria família.

É dessa forma que as notícias falsas acabam repassadas, quase nada por ideologia e invariavelmente por instinto de sobrevivência e necessidade de garantir a segurança das pessoas que amamos. As Fake News algumas vezes geram pânico e, na maioria dos casos, geram apreensão, mudança de comportamento: melhor não levar as crianças à escola, melhor trabalhar de casa hoje, melhor não ir à igreja, melhor agredir esta repórter que é aliada do governo e está tentando mentir sobre a nossa luta legítima e a nossa paralisação – ainda que ela não tenha dito uma palavra e sequer se saiba o que ela iria dizer.

“Somos pacíficos”, garantem caminhoneiros ao expulsar repórter de passarela em rodovia e ameaçar quebrar a câmera

CALCANHAR DE AQUILES

Recentemente o Facebook lançou um projeto, à moda americana, de checagem de fatos para impedir que as notícias falsas fossem determinantes em resultados de eleições, tentando combater nos países em desenvolvimento o que já ocorreu nos Estados Unidos e Reino Unido.

O calcanhar de Aquiles das agências de fact-checking está na eficiência em ter acesso e desmentir o que realmente afeta o processo democrático e muda o comportamento da população. Alguma das contratadas pelo Facebook sequer se preocupou com os boatos via WhatsApp – empresa de propriedade do Facebook – que tiveram consequências no comportamento da população brasileira? NÃO. Não espere nada diferente no processo eleitoral.

Não se trata de um fenômeno brasileiro, mas algo já registrado e muito bem documentado na Índia, México e Colômbia: nossos mercados de mídias sociais são muito diferentes do norte-americano, modelo do fact-checking anunciado por aqui com pompa e circunstância.

Segundo registram Annie Gowen e Elizabeth Dwoskin, correspondentes do Washington Post na Ásia, o WhatsApp não é tão utilizado nos Estados Unidos. Quando foi comprado pelo Facebook em 2014, o valor de US$ 14 bi até chocou o mercado, mas Mark Zuckerberg justificou pelo alcance global: tem mais capilaridade que o Facebook em algumas partes do mundo. É o caso do Brasil. E é por isso que o modelo de checagem de fatos que nos foi apresentado não tem nenhum impacto naquilo que interessa.

As duas correspondentes do jornal norte-americano fizeram, no último 14 de maio, um longo artigo sobre como as Fake News espalhadas por WhatsApp foram decisivas para o rumo das eleições na Índia, onde o aplicativo de mensagens é tão útil quanto aqui no Brasil.

Na Índia, mais de 20 mil grupos de WhatsApp disseminam em minutos mensagens que inflamam as tensões entre a maioria hindu e a minoria muçulmana dentro do contexto das eleições estaduais. “Está saindo do controle e o WhatsApp não sabe o que fazer. A dificuldade é que é impossível saber como essa informação está se disseminando. É muito fácil para um partido político disseminar desinformação e ninguém pode rastrear de volta até ele”, disse às jornalistas Nikhil Pahwa, um ativista indiano de direitos digitais.

O modus operandi é exatamente o mesmo dos boatos de WhatsApp que circulam aqui no Brasil: declaração de um político sobre um tema que vem com a legenda como se fosse sobre outro, cenas de uma parte do país descritas como se fossem de outro, todas com textos inflamatórios caindo como uma bomba na rivalidade entre hindus e muçulmanos, com efetivas consequências no comportamento do cidadão comum.

Em dezembro do ano passado, a escalada de violência devido às Fake News de WhatsApp chegou ao insustentável na Índia. Paresh Mesta, um rapaz de 18 anos, filho do casal de pescadores na foto, foi encontrado morto em um reservatório de água. Ele foi castrado, decapitado, mutilado e queimado com óleo fervente – a polícia acredita que a barbárie foi fruto de uma briga entre hindus e muçulmanos em um templo religioso. A Índia chegou a tirar o Whatsapp do ar algumas vezes para tentar conter o efeito sobre a população, já que as estratégias do Facebook, dono do aplicativo, não foram suficientes para conter os estragos.

O CASO DOS CAMINHONEIROS X AGÊNCIAS DE FACT-CHECKING

O WhatsApp pertence ao Facebook. Todos nós recebemos uma tonelada de Fake News alarmantes sobre a paralisação. O projeto de checagem anunciado recentemente pela empresa deu conta de desmentir todas elas e evitar que houvesse qualquer comoção social derivada das notícias falsas difundidas pelas redes sociais que ele controla, certo? Errado.

A Agência Lupa só falou em dois posts sobre a questão dos combustíveis. Dedicou-se a checar notícias que sequer causaram alarde ou teriam o condão de mudar o comportamento do cidadão comum em um momento conturbado. A metologia parece ser o escrutínio de declarações oficiais, esmiuçando dados que são ditos de memória em eventos públicos ou postagens em redes sociais por figuras públicas que têm a intenção de apenas explicitar seu posicionamento político ou atacar adversários.

A plataforma Aos Fatos não chegou a tocar especificamente no assunto Fake News sobre combustíveis. Falou sobre ele no fact-checking da sabatina de Marina Silva. Há uma postagem importante sobre o comportamento de quem espalha notícias falsas via WhatsApp, explicando o comportamento de desconfiar e repassar sem checar antes. Mas nenhuma das notícias alarmistas que circularam durante a paralisação dos caminhoneiros até agora foi sequer mencionada.

AS FAKE NEWS MAIS FAMOSAS SOBRE OS CAMINHONEIROS

Você deve ter WhatsApp, eu tenho também. É inegável que as Fake News desvendadas em pouco ou nada ajudam a desfazer o clima alarmista que foi formado em torno da paralisação dos caminhoneiros por meio das notícias falsas que começaram a chegar com mais força na última quarta-feira e se multiplicam pelos grupos. A grande questão é: qual a utilidade de investigar algo que não tem nenhuma relação com as meias-verdades que induzem a população a agir de forma incorreta?

Cadê o Fact-Checking sobre o corte do sinal de internet no Brasil para prejudicar os caminhoneiros, sobre o Marcelo Rezende prevendo a paralisação em 2014, sobre o Temer sendo recebido com vaias pelos caminhoneiros, sobre o helicóptero pousando na rodovia? Ele existe, mas é feito por bons samaritanos grupo a grupo e por iniciativas genuinamente brasileiras, não pelas modernosas agências de checagem contratadas pelo dono do WhatsApp nos moldes de um mercado que mal usa o aplicativo.

– O governo vai cortar a internet

Esta teve vários formatos, que ora nos incitavam a avisar a família e amigos, ora a defender o direito de comunicação dos caminhoneiros. Seguem dois exemplos:

Solenemente ignorada pelos auto-intitulados Fact-Checkers, foi desmentida pelo site Boatos.org, que faz este trabalho à brasileira na internet desde 2002.

– Marcelo Rezende previu a paralisação em 2014, antes de morrer

Embora pareça algo bastante inocente, ao introduzir o elemento previsão de Nostradamus a um caldeirão já apimentado pela escassez e notícias desencontradas, esta notícia falsa tem um potencial enorme para gerar alarme e medo nas pessoas. Exatamente por isso foi fartamente compartilhada – e estranhamente ignorada pelos checadores oficiais do dono do WhatsApp.

Embora não tenha parecido algo importante para quem divulgou aos 4 ventos ter assumido a tarefa de desvendar notícias falsas divulgadas pelo Facebook, que é dono do WhatsApp, ganhou dimensões tão grandes que outros veículos procuraram até a família do jornalista para assegurar a população de que não estamos vivendo a realização de uma profecia, mas uma paralisação mesmo.

RESUMO DA ÓPERA

Outros países já encontraram a principal falha na aplicação real do processo de fact-checking proposto pelo prestigioso Poynter Institute em determinadas localidades do mundo: eles tentam transportar junto com a metodologia a realidade dos Estados Unidos. Não precisa ser um gênio da comunicação para prever o resultado.

A Colômbia, que tem índices de utilização de WhatsApp semelhantes aos do Brasil, Índia e México, já encontrou uma saída bastante interessante para fazer com que as agências checadoras de fato associadas à metodologia do Poynter Institute saiam do plano do marketing e da bolha da repercussão restrita de notícias de baixo impacto para se empenhar no que realmente interessa à população: lançou um detector de mentiras de WhatsApp com treinamento profissional.

Desde o ano passado, o site La Silla Vacía, que já tem um detector de Fake News nos moldes tradicionais, lançou um detector de WhatsApp. Recebe notificações da população e trata essas demandas, desde que se verifique impacto e relevância, como as declarações tradicionais que vinham sendo checadas. A vantagem é que são utilizadas ferramentas de checagem e metodologias de avaliação profissionais, não dependendo de avaliações subjetivas de cada website.

O grande problema ideológico da proposta de Fact-Checking feita pelo Facebook no Brasil não é o cerceamento de discursos entre direita e esquerda, é a perpetuação da ideia de que são assuntos importantes apenas aqueles pautados e compartilhados pela intelligentsia brasileira. Precisamos superar a prática da Casa Grande e Senzala na vida diária, não somente em discursos inflamados nas redes sociais. Tratar com respeito assuntos que mobilizam os brasileiros seria um grande passo.

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