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Tucanaram a maldade
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No final dos anos 1990 e início dos 2000, a mania que os políticos do PSDB tinham de dar nomes suaves a coisas muito feias ganhou apelido entre os humoristas: tucanar.

Caiu na boca do povo, virou piada corrente. O jornalista José Simão chegou a lançar inúmeras versões de um dicionário de tucanês, em que falta d'água era chamada de "estresse hídrico", fuga da prisão virava "ausência temporária do estabelecimento prisional" e até homem virava "ser humano desvaginado".

Se, num primeiro momento, parecia ridículo, acabou caindo no gosto do meio político. O primeiro motivo é porque cola: de tanto repetir a palavra, se suaviza o comportamento diante dos olhos da sociedade.

O tucanês se tornou suprapartidário em um evento da época de outro das Comissões Parlamentares de Inquérito, o primeiro depoimento do tesoureiro do PT, Delúbio Soares. Na primeira vez em que foi perguntado sobre Caixa 2, imediatamente sapecou: "recursos não contabilizados".

Pronto, tucanado estava. Repetia incansavelmente "recursos não contabilizados" a cada vez que ouvia de um parlamentar a expressão Caixa 2. O exercício não foi em vão, normalizou diante de parte da sociedade doações ilegais que viessem de fontes legais, colocando o peso do ilícito apenas sobre as doações de origem completamente ilegal.

A safadeza é um daqueles valores ultrademocráticos, suprapartidária por excelência. Não demorou para que políticos de outros partidos, inclusive adversários do PT, incorporassem a seus discursos a diferenciação entre Caixa 2 e recursos não contabilizados. Pilhados no crime, valiam-se do recurso.

O ápice do absurdo é quando parte da sociedade, em veemente militância contra a corrupção, chegou a acreditar que existia um projeto de criminalização do Caixa 2. Como assim? Antes podia fazer Caixa 2, não era crime? A linguagem moldou a realidade.

Esse exercício também toma o debate político na mão oposta, em que o uso exaustivo de uma palavra muito forte para descrever condutas corriqueiras acaba esvaziando de gravidade a barbárie.

O melhor exemplo é o uso da palavra "fascista" pela esquerda brasileira. Ao enxergar fascismo até em barraquinha de cachorro-quente e chamar de fascista todos que discordem de seus ídolos políticos, a esquerda promoveu o fenômeno perverso de naturalizar condutas gravíssimas aos olhos de muita gente. Se tudo é fascismo, nada é.

Na direita, os seguidores do guru dos filhos do presidente Bolsonaro fizeram o mesmo, por exemplo, com a palavra "comunismo" e a expressão "socialismo fabiano". São usadas geralmente para descrever qualquer pessoa que discorde de membros da seita on-line do astrólogo, não para se referir a seus significados reais.

Se o fenômeno do eufemismo, num primeiro momento, atendeu à canalhice dos políticos brasileiros, depois passou a confortar o medo que temos das coisas da política. Durante muito tempo, o cidadão brasileiro quis apenas uma coisa da política: distância. Quando percebemos o erro, nos deparamos com um monstro a domar.

Suavizamos as palavras tentando suavizar seus efeitos, como fazemos as mães ao confortar crianças pequenas diante de crises familiares, financeiras ou de saúde. Não estamos falidos, precisamos só economizar um pouquinho. O pai não foi embora, precisa só de um tempo para pensar. Vovô não morreu, virou estrelinha.

É nessa alienação aconchegante que temos chamado canalhice de zueira, racismo de polêmica, machismo de papo reto, roubo de luta política, capacho de apoiador, bajulador de militante. Há exemplos infinitos dos nossos recursos mentais para não ter de tomar atitudes diante daquilo que tememos.

Se um fulano é doidinho, pode ser até divertido assistir suas bobagens. Mas, se o mesmo fulano é um antissocial sádico, temos obrigação de agir para não sermos cúmplices. Melhor chamar de doidinho, afagar nossas ilusões, esconder nossa covardia, tocar nossa vidinha cotidiana com assuntos mais leves.

Não dar às coisas o nome que elas têm nada tem a ver com educação, é apenas covardia. Fingindo não ver o óbvio, justificamos moralmente para nós mesmos o nosso comportamento de apatia quando precisamos agir ou de apoio a maldades que decidimos suportar.

Precisamos parar de ter medo da política e dos políticos. Ela nos pertence como povo e eles trabalham para nós, não estão acima dos cidadãos comuns. É dever ser rigoroso com quem nos representa e implacável com bajuladores que vivem de suavizar condutas malignas dos poderosos.

A linguagem molda o pensamento. Toda vez em que falhamos em dar o nome certo às ações que presenciamos estamos sabotando nossas reações como indivíduos e como sociedade. Abrimos espaço para falastrões incapazes de realizar uma vírgula pelo bem comum.

O mal existe, não precisamos ter medo de admitir. O mal é mal mesmo, ponto. Simples assim. Enfrentemos na medida das nossas forças e nos ajudemos em nossas fraquezas. O que não podemos mais sustentar é a troca de palavras, essa caminhada cega para a alienação.

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