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Um grande mal dos dias atuais é formar opiniões antes de entender um problema. Nesse contexto, antes de avaliar se Donald Trump está certo ou errado com o plano de tarifas (isso eu deixo para um próximo artigo), é necessário entender o que ele pretende com a medida.
Muitas hipóteses são levantadas, mas a mais plausível, na minha visão, é a de reindustrialização dos EUA, principalmente pelo motivo geopolítico.
Desde o seu primeiro mandato, Trump tem demonstrado insatisfação com a migração de indústrias americanas para a China. Mas por que a saída de firmas manufatureiras para o gigante asiático seria um problema, se a renda per capita americana aumentou significativamente em uma década, passando de U$ 53.000 para U$ 76.000?
Além do aumento da renda per capita, a inflação está relativamente controlada e o desemprego está baixo. Então, por que motivo romper com este modelo que dá certo, pelo menos do ponto de vista econômico?
Para responder a essa pergunta, é necessário primeiro entender qual é o modelo que trouxe tanta prosperidade para os EUA, principalmente a partir da década de 1980.
No início dos anos 80, o presidente Ronald Reagan, juntamente com Margaret Thatcher, avança com a agenda liberal mundo afora, aumentando o comércio entre as nações. Os EUA incentivaram acordos comerciais, mesmo que outros países praticassem tarifas de importação superiores às americanas.
Você deve perguntar: que vantagem os EUA levam em estimular um comércio no qual os países pratiquem protecionismo contra os americanos?
A vantagem seria manter esses países como aliados (contexto era de guerra fria) e estimular o uso do dólar para consolidá-lo como a reserva de valor global.
Dessa forma, os países com superávit nas transações correntes emprestariam o excedente de dólares para os EUA, comprando títulos da dívida norte-americana. Com isso, o mundo financia os EUA, sem o sacrifício do trabalhador ou do governo americano ter que poupar.
Na prática, esse modelo permitiu que os EUA gastassem mais do que produzissem internamente, o que explica o elevado déficit em transações correntes, financiado pela poupança de outros países.
A poupança externa financia operações militares do governo americano, subsídios fiscais às empresas e irriga o mercado de crédito ao consumidor com taxas de juros muito baixas.
Como o dólar se tornou a moeda internacional e a reserva de valor global, o mundo ficou mais barato para os EUA
Com isso, as mercadorias importadas pelo país – roupas, eletrônicos, carros, vinhos, etc. – se tornavam acessíveis para a população americana, mesmo para os mais pobres.
Porém, esse modelo traz duas consequências. A primeira é que, com a valorização do dólar, produzir nos EUA ficou caro. A segunda é que o déficit em transações correntes aumentou significativamente, elevando a dívida norte-americana.
Com esses efeitos, muitos economistas levantam hipóteses de qual seria o objetivo final de Trump com a guerra tarifária: reduzir o déficit em transações correntes, e consequentemente diminuir a dívida, ou reindustrializar o país? A seguir, analiso cada uma dessas hipóteses.
Tarifas protecionistas para a redução do déficit
É um erro acreditar que a política mais protecionista de Trump tem a ver com a redução do déficit em transações correntes.
Déficit em transações correntes não são causados pelo protecionismo de outros países, mas sobretudo porque os EUA gastam muito mais do que geram de riqueza internamente (PIB).
Tecnicamente, a demanda agregada (consumo, investimento e gastos do governo) é superior ao PIB, ou, de outra forma, o investimento é maior do que a poupança nacional.
Nem a teoria e nem a evidência empírica econômica estabelecem relação entre protecionismo e déficit em transações correntes, tampouco entre déficit na balança comercial e desenvolvimento econômico.
É perfeitamente possível não haver tarifas entre países, e umas nações serem superavitárias, e outras, deficitárias. Aliás, o Brasil da década de 80 é um exemplo de que o protecionismo não desenvolve a nação. Pelo contrário, nossa indústria era péssima, havia crises na balança de pagamentos e éramos bem mais subdesenvolvidos do que hoje.
Diga-se de passagem, o país só se modernizou a partir da abertura comercial iniciada na década de 90. Antes disso, nosso carro era sucata, conforme observou o ex-presidente Fernando Collor.
Tarifas protecionistas para reduzir o valor da dívida
Outro erro é acreditar que Trump gostaria de reduzir o valor da dívida, causando um crash no mercado de ações. A ideia seria que os investidores em pânico corressem para títulos públicos americanos de curto prazo, aumentando a demanda, o que elevaria o valor e reduziria a taxa dos papéis. No entanto, o menor juros não altera a dívida já contraída, e pode ser um incentivo para mais endividamento.
Além disso, o sell-off realizado pelo Japão na quarta-feira (9) mostrou exatamente o contrário. O derretimento do mercado de ações levou os japoneses a realizarem uma gigantesca venda generalizada de títulos da dívida norte-americana, elevando fortemente os juros dos papéis norte-americanos.
Tarifas protecionistas como forma de forçar um acordo cambial
Esta hipótese parece ser mais plausível, principalmente porque um dos economistas ligados a Trump já ventilou isso na imprensa e no artigo "A User's Guide to Restructuring the Global Trading System".
O objetivo seria gerar um caos tarifário para forçar um acordo cambial, com intuito de desvalorizar o dólar. A ideia seria manter o dólar como moeda global e, ao mesmo tempo, reindustrializar os EUA.
Muitos economistas acreditam que isso seja impossível, pois se o dólar continuar como reserva global, a moeda americana continuará valorizada, impedindo a reindustrialização dos EUA, uma vez que os custos de produção continuariam muito elevados.
Entretanto, para um dos economistas ligados a Trump, Stephen Miran, isso seria possível, se os EUA pagassem pelo uso do dólar. Uma das formas desse pagamento poderia ser disfarçada pelo uso da defesa nacional americana (pagar para os americanos protegerem outro país).
Tarifas protecionistas para unir países contra a China
Na mesma linha da hipótese anterior, a ideia aqui é que o tarifaço não seja um objetivo final, mas apenas uma forma de unir todos os países do ocidente contra a China.
O recado seria: se você cooperar com os EUA, não será fortemente taxado; caso contrário, terá que escolher entre pagar mais caro para acessar o mercado americano ou manter relações comerciais com a China.
Conclusão
Ninguém sabe ao certo onde exatamente Trump quer chegar com as tarifas protecionistas, se é o objetivo final é uma forma de negociação. Porém, me parece que a ideia de reindustrialização americana é a mais plausível, mesmo que forçada, utilizando as tarifas como instrumento de pressão a aliados, seja para limitar investimentos na China ou forçar acordos cambiais e comerciais com os EUA.
Mas ainda resta uma pergunta: por que reindustrializar se a renda per capita aumentou?
A primeira e principal razão é geopolítica. A dependência de mercadorias chinesas incomoda os EUA. Essa dependência significa a impossibilidade de consolidação da hegemonia americana global, principalmente em caso de uma guerra contra a China. Em caso de conflitos militares, ou de pandemias, ter indústria própria é fundamental.
Em outras palavras, Trump aceitaria a perda econômica (aumento de custos de produção para empresas e elevação de preços para os consumidores americanos) para ter mais controle da cadeia de suprimentos, e, portanto, mais poder geopolítico.
A segunda razão é agradar parte de sua base eleitoral, que perdeu empregos industriais nas últimas décadas. É verdade que a renda per capita aumentou, mas a desigualdade também.
Numa economia de serviços, a desigualdade entre trabalhos operacionais e intelectuais é maior do que numa economia com mais base industrial. Na presença de empresas manufatureiras, a desigualdade de renda é menor entre operários e profissionais com formação superior.
Entretanto, se a reindustrialização for efetivada via elevação de tarifas, o tiro pode sair pela culatra, com diminuição do salário real para o operário, seja pela elevação da inflação, seja pelo aumento da oferta de empregos para os trabalhadores de menor qualificação. Mas isso é tema para outro artigo.
Mesmo com resultados questionáveis, é certo que o objetivo final de Trump com as tarifas é de alguma forma reindustrializar o país
Inclusive, o secretário do Tesouro, Scott Bessent, deixou isso bem claro numa entrevista ao dizer que: “O sistema de comércio internacional teia de reações militares, econômicas e políticas. Não se pode pegar um aspecto isoladamente. É assim que o presidente Trump vê o mundo”.
O tarifaço vai muito além da questão econômica. É uma briga geopolítica por hegemonia contra a China.
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Conteúdo editado por: Aline Menezes