A crise

O Brasil foi desorganizado e precisou de uma gota de Magnitsky pingada do Norte para acordar alguns que dormiam em berço esplêndido, como a OAB e os parlamentares –  e até alguns ministros do Supremo – para perceber que desandávamos por uma rampa escorregadia em direção a profundezas muito perigosas. Acabo de ouvir palestra de um brilhante constitucionalista a nos lembrar de Luís XVI, agindo como se fossem apenas revoltas. quando percebeu a realidade, era a Revolução, a cortar cabeças, inclusive a do rei. A gota do norte talvez nos tenha agitado a tempo, evitando algo bem pior que esses tempos de tirania ainda nas preliminares.

Fácil perceber que na base de tudo está o desrespeito à Constituição, dentro da qual há ordem, devido processo legal, democracia, respeito mútuo, separação de poderes, vedação à censura, livre expressão, juiz natural, ampla defesa, inviolabilidade de mandatos e, sobretudo, limites para o Estado, para que a nação possa ser livre e progredir. O desrespeito à Constituição só se sustentou pela omissão da mídia e a passividade da cidadania e do parlamento. E se aprofundou ante o perjúrio dos que se comprometeram, solene e publicamente, a guardar e defender a Lei Maior.

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O julgamento de Dilma Rousseff foi o significativo começo disso. Lá, o presidente do Supremo permitiu, ou sugeriu, rasgar o parágrafo único do artigo 52, e o Senado referendou. Juntos, traindo seus juramentos e a própria Constituição. Quem usou o verbo trair para eles foi o Doutor Ulysses, no dia da promulgação. Triste profecia. Passado aquele boi, passou a boiada. O Supremo criou o “inquérito do fim do mundo” sem Ministério Público, e com ele agiu como vítima, polícia, promotor, juiz e executor. Foi uma caixa de Pandora. Fez censura e censura prévia, legislou e, enfim, foi desviado da guarda da Constituição e declarado tribunal político – pelo seu próprio presidente, Luís Roberto Barroso. Com isso, invadiu os outros poderes. Bolsonaro foi impedido de escolher seu chefe da Polícia Federal; o Supremo chegou a determinar quantos gramas de droga a pessoa poderia carregar sem incorrer em crime; o IOF declarado ilegal pela maioria do Congresso foi ressuscitado como legal pelo ministro Alexandre de Moraes. Como poder político – e não como juízes –, ministros do STF passaram a dar entrevistas e expressar opiniões que antecipam sentenças.

O Congresso, casa política, encolheu-se, mal conduzido. Não cumpriu nem sequer a obrigação de zelar pela sua competência, prevista no artigo 49 da Constituição. Um fiasco. Quando tudo passou dos limites, o Grande Irmão do Norte percebeu que uma nova Venezuela estava se formando, e avisou: censores da expressão aqui não entram. E suspendeu vistos. E decidiu que quem fere direitos humanos básicos merece a Lei Magnitsky. Nem todos estão entendendo. O Davi do Senado não parece disposto a discutir o impedimento do Golias. O amanhã é imprevisível. O Brasil já cruzou o Rubicão do império da lei e afunda nas areias movediças da outra margem, a do império do arbítrio, onde estão se perdendo segurança política, econômica, jurídica e diretos individuais básicos.