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Ricardo Lewandowski STF
Ministro Ricardo Lewandowski durante sessão da segunda turma do STF.| Foto: Nelson Jr./SCO/SSTF

Conforme noticiou a Gazeta do Povo, no último dia 24 de janeiro, o Min. Ricardo Lewandowski concedeu liminar suspendendo parte de decreto do Presidente Jair Bolsonaro sobre o regime de proteção de cavernas.

A decisão nos parece equivocada. Explicaremos à frente por que, mas podemos adiantar que seus fundamentos jurídicos são frágeis e vagos.

Para demonstrar isso, vamos primeiramente explicar do que tratava o decreto. Após, vamos apontar as razões utilizadas pelo ministro e nossa crítica a elas.

Do que tratava o decreto do Presidente Jair Bolsonaro

O decreto presidencial cuidava da tutela ambiental das cavernas.

Em suma, ele concretizava e regulamentava a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/81) no tocante especificamente às cavernas, chamadas no documento pelo jargão de “cavidade natural subterrânea”.

Em seu art. 1º, o decreto dispunha que “as cavidades naturais subterrâneas existentes no território nacional deverão ser protegidas”. O regime de proteção previa quatro níveis de intensidade de acordo com o grau de relevância das cavernas: máximo, alto, médio e baixo.

O documento, então, previa que empreendimentos que impactassem em quaisquer dos quatro tipos poderiam ser realizados, mas apenas mediante licenciamento prévio ambiental. Esse licenciamento é uma espécie de processo administrativo bastante exigente pelo qual um empreendimento tem de passar para poder ter sua localização, instalação, ampliação e operação autorizadas pelo órgão de proteção do meio ambiente.

Um dado que é importante salientar desde já: o fato de que, em abstrato, um tipo de empreendimento possa ser realizado não quer dizer que, em todo e qualquer caso concreto, ele o será. Ou seja, ainda que um tipo de iniciativa não seja proibida pelo decreto, quando empreendedores peçam licença para realizá-la, no caso concreto isso poderá ser-lhes negado. A razão é que a autoridade ambiental, diante da gravidade do impacto ambiental na situação particular e da espécie de empreendimento, pode impor condicionantes que acabem por torná-lo pouco atraente ou mesmo simplesmente não autorizá-lo.

Bom, voltando ao decreto, o caso mais restritivo previsto no documento seria o de cavernas de relevância máxima, na hipótese de haver impactos negativos irreversíveis. Nessa hipótese, o empreendedor teria de atender a três requisitos:

  • 1) demonstrar que o empreendimento era de “utilidade pública” (sendo o rol das iniciativas de utilidade pública definido em artigo da Lei 12.651/12);
  • 2) comprovar que inexistia alternativa técnica ou de localização viável; e,
  • 3) apontar que os impactos negativos não gerariam a extinção de espécie presente na cavidade impactada.

Ademais, o empreendedor teria de fazer uma compensação ambiental, investindo em unidade de conservação que também protegesse cavernas e preferencialmente na região do empreendimento.

O decreto não é totalmente inovador. Houve dois outros que cuidaram do assunto. Em 1990, o Presidente Itamar Franco havia editado o Decreto 99.556/90, e em 2008 o então Presidente expediu o Decreto 6.640/08.

A grande novidade, em suma, restringia-se ao fato de que os decretos anteriores vedavam de forma absoluta empreendimentos que pudessem ter impactos irreversíveis em cavernas de relevância máxima, enquanto o novo decreto permitia esse tipo de iniciativa, porém desde que atendidos os requisitos e limites expressos acima.

Quanto às cavernas enquadradas nos demais graus de relevância, todos os decretos admitiram empreendimentos com impactos negativos sobre elas (inclusive impactos irreversíveis), exigindo o atendimento a alguns requisitos e compensações.

Portanto, diante da leitura dos decretos, é possível concluir que:

  • 1) o ponto polêmico é bastante limitado, apenas ao que se refere a empreendimentos com impactos irreversíveis em cavernas de relevância máxima;
  • 2) o ato normativo não efetuou uma liberação total, mas permitiu aquele tipo de empreendimento apenas dentro de requisitos que podem ser considerados como razoavelmente rígidos e exigindo compensações ambientais.

O que disse a decisão liminar e monocrática do Min. Ricardo Lewandowski?

A decisão do Min. Lewandowski derrubou os dispositivos relativos à permissão para empreendimentos com impactos irreversíveis em cavernas de relevância máxima (art. 4º) e na área de influência de tais locais (art. 6º).

Em sua fundamentação jurídica, o Ministro afirmou que o texto mais recente seria inconstitucional, limitando-se a invocar como razão o direito de proteção ao meio ambiente e a vedação ao retrocesso ambiental.

Por que a decisão é equivocada

Em primeiro lugar, inexiste inconstitucionalidade uma vez que o decreto não contrariou qualquer norma da Constituição. Aliás, a Constituição sequer trata do tema das cavernas. De fato, simplesmente inexiste um estatuto constitucional acerca do assunto.

Quando a Constituição silencia sobre qualquer tópico, isso quer dizer que ela deixou o tema sob apreciação do legislador. E é natural que ela faça isso com muitas matérias. Com efeito, a função da Constituição – e do direito constitucional e, portanto, da jurisdição constitucional – não é esgotar todas as temáticas, mas fixar regras imprescindíveis e princípios básicos, permitindo que em tudo mais a democracia encontre respostas, sempre passíveis de correção e reforma por mecanismos ordinários, como expedição de leis ou atos infralegais.

A constitucionalização é uma forma do que alguns constitucionalistas chamam de entrincheiramento, ou seja, é um modo de retirar um tema do poder de decisão das instâncias democráticas ordinárias. Embora eu concorde que se trata de medida importante para alguns temas particularmente fundamentais, isso tem um óbvio efeito negativo, porquanto engessa e impede a adaptação e evolução do regramento de determinada matéria. A professora Melissa Schwartzberg, que já deu aula em Columbia e hoje leciona na New York University, escreveu obra fundamental sobre o fenômeno, Democracy and Legal Change, publicada pela Cambridge University Press. No livro, ela relata com base em evidências alguns dos riscos do engessamento do direito, o que é consequência inevitável dos excessos no exercício da jurisdição constitucional. Os constitucionalistas debatem quando, por que e como se deve entrincheirar algum assunto. E levando essas lições em conta, acredito que podemos concluir com razoável certeza que o regime para empreendimentos que impactam sobre cavernas não é algo que guarde relevância e fundamentalidade suficiente para ser entrincheirado pelo direito constitucional.

Saliente-se que com base apenas no princípio da proteção ao meio ambiente não é possível aos ministros extraírem um estatuto concreto de um tópico tão específico e definirem exatamente quais regras podem ou devem existir. O princípio que determina a proteção ao meio ambiente, por óbvio, não impede todo impacto ambiental, pois isso inviabilizaria o gozo de outros valores constitucionais. A proteção jurídica do meio ambiente convive com a proteção a outros princípios que exigem o exercício de atividades com impactos ambientais. O que esse princípio determina é que a variável ambiental seja levada em conta nas políticas públicas e que os impactos sobre os recursos naturais mantenham-se dentro de sua capacidade de renovação. Saliente-se que isso, por sua vez, também não é algo que possa ser fixado cartesianamente, mas comporta razoável espaço de conformação, o que desaconselha que seja fixado mediante decisão judicial. De fato, decisões que envolvem escolha - inclusive escolhas morais e técnicas entre alternativas legítimas e que são objeto de desacordo social - têm por fórum mais adequado os órgãos com composição eleita pelas vias democráticas.

Em casos assim, existem infindáveis cardápios de políticas públicas compatíveis com os princípios constitucionais, com maiores ou menores restrições ou flexibilizações em variados pontos. O modo de compatibilizar todos esses princípios que incidem na regulação do comportamento social é altamente complexo, envolvendo juízos de valor e trabalho com incerteza e risco, de modo que o Poder Judiciário não possui as capacidades institucionais tampouco a legitimidade decorrente do caráter representativo necessárias para estabelecer esse tipo de decisão de modo adequado e legítimo.

Vale reprisar que, no caso em debate, o decreto que era discutido inegavelmente levou em conta a variável ambiental, tanto assim que permitiu os empreendimentos apenas quando atendidos requisitos razoavelmente severos e exigiu compensações ambientais. Portanto, não vejo como barrar tal legislação apenas com base em princípios vagos e abstratos, como fez o STF. Aliás, vale registrar que, infelizmente, decisões dessa espécie são cada vez mais comuns.

Vale ainda discutir a alegação de vedação ao retrocesso, aparentemente interpretada pelo ministro como proibição de que se extinga qualquer limitação de caráter ambiental, o que é politicamente inconveniente (uma vez que fossilizaria toda e qualquer restrição) e constitucionalmente insustentável. Primeiramente, porque a própria Constituição prevê expressamente a possibilidade de supressão de espaços especialmente protegidos (vide art. 225, § 1º, III). Ou seja, a Constituição prevê ao menos uma hipótese de algo que poderia ser enquadrado como “retrocesso”, no sentido em que o ministro utilizou a expressão em sua decisão. Em segundo lugar, a vedação ao retrocesso não é o que no bordão jurídico chamamos de regra, mas um princípio (alguns defendem que seria uma metanorma). Simplificando para tornar a questão acessível ao leigo: a vedação ao retrocesso não implica numa proscrição absoluta à revogação de normas de proteção ambiental. Sendo um princípio, ele tem de ser compatibilizado com outros valores constitucionais. A leitura equilibrada dessa norma, portanto, é no seguinte sentido: sempre que uma norma que amplie a permissão de impactos ambientais estiver sendo objeto de deliberação, suas alternativas devem ser avaliadas com cautela, sempre levando a variável do meio ambiente em conta; além disso, exige-se que haja benefícios de estatura constitucional que fundamentem a inovação.

Como já defendemos acima, parece-nos que todas essas exigências foram observadas, visto que o regramento seguia suficientemente exigente e – como também já explicamos – a permissão em abstrato não impedia o órgão ambiental de indeferir empreendimentos específicos, caso os impactos fossem excessivamente severos quando comparados com seus benefícios sociais. Lembre-se que o decreto admitia apenas empreendimentos de utilidade pública em caso de impactos irreversíveis sobre cavernas de relevância máxima.

É inadequada e superada a ideia de que apenas a proibição absoluta seria uma forma adequada para proteger bens ambientais ou de qualquer outra espécie. A permissão com requisitos exigentes - salvo regra expressa da Constituição em contrário - não falece de vício de inconstitucionalidade, sob pena de engessamento indevido.

Portanto, inexiste qualquer inconstitucionalidade que macule o decreto. Poderia até ser o caso de ilegalidade, o que, todavia, não seria da alçada do STF julgar.

Frise-se, inclusive, que se trata de enorme disfunção da atual jurisdição constitucional brasileira a quantidade de matérias infralegais que o STF conhece diretamente. A postura da Corte é altamente centralizadora, o que somado ao açodamento dos ministros em derrubar decretos leva constantemente a que temas sejam julgados – muitas vezes de forma liminar e monocraticamente – sem um amadurecimento do debate jurídico.

No caso concreto, no entanto, sequer ilegalidade existia. Isso porque também não há lei definindo com precisão o tratamento jurídico das cavernas.

Assim, o que ocorre é que a Constituição e o legislador deixaram a questão, em larga medida, para tratamento infralegal. O Presidente então lançou mão de suas atribuições, criando um regime que, embora mais leve do que o anterior, tomou em conta a proteção ambiental ao exigir requisitos razoavelmente rígidos e compensações.

Logo, o regramento previsto no decreto era juridicamente válido. Isso não quer dizer que você precise concordar com ele. O papel do jurista não é dizer o que “de melhor” deve ser feito, porque existe desacordo legítimo dentro da sociedade sobre o que é o melhor. Por isso, o papel do jurista é bem mais limitado (embora não menos relevante): é verificar, segundo a técnica jurídica, se a medida é válida.

Tendo isso em vista, não vejo argumentos jurídicos que indiquem invalidade jurídica do decreto. O que alguns alegam é que ele seria inconveniente, análise essa que, no entanto, foge à alçada do sistema de justiça.

Mas, se o Poder Judiciário não tem legitimidade para agir, não haveria nada a fazer para aqueles contrários ao decreto? Vejamos.

Quais seriam os meios legítimos para reverter a decisão administrativa do Presidente?

Ao contrário do que se poderia imaginar num primeiro momento, a ausência de interferência do STF não implica em que o Presidente tenha total discricionariedade sobre o tema. De modo algum.

Em primeiro lugar, o Presidente atua dentro do quadro jurídico vigente. Logo, se governos anteriores entendiam que esse tratamento jurídico deveria ser protegido legal ou constitucionalmente, poderia ter buscado aprovar uma lei ou emenda constitucional nesse sentido. Quando uma disposição é regulamentada no âmbito infraconstitucional, isso faz com que ela possa ser alterada, em regra, pelo mesmo tipo de mecanismo. De fato, ao contrário do que alguns ministros do STF parecem acreditar, a autoridade de um presidente é igual à de seus sucessores.

Em segundo lugar, mesmo na atual legislatura, nada impede que, caso o Presidente atue de modo distanciado do que a coalizão política que lhe dá suporte no Congresso entende razoável, que o Parlamento altere a lei em sentido contrário ao do decreto, vinculando a partir daí o Presidente.

Seria, ainda, possível tentar influenciar os próprios órgãos do Poder Executivo, buscando demonstrar o suposto equívoco de sua atuação.

Por fim, pessoas ligadas à proteção ambiental poderiam atuar nos processos específicos de licenciamento, buscando apresentar dados que indicassem a inconveniência do empreendimento, por exemplo, mediante audiências públicas.

É claro que não há nada que garanta que eles terão sucesso. O que é muito bom. A democracia não pode ser um jogo de cartas marcadas, salvo em alguns temas muito essenciais. Quanto à imensa maioria dos assuntos – dentro do que deve estar o tratamento de cavernas – a pluralidade de perspectivas deve refletir-se em potencial pluralidade de tratamentos jurídicos e resultados. Um regime democrático e constitucional saudável deve deixar espaço suficiente para a política.

Para reforçar esse ponto, encerro valendo-me de texto brilhante do Grupo de Pesquisa "Constituição Democrática, Interpretação e Ideologia", vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Direito da USP, organizado pelo professor Roger Stiefelmann Leal:

O reconhecimento da Constituição como democrática reclama modelo jus-político que assegure espaço suficiente ao debate e à deliberação, tornando viável a concorrência e a convivência entre correntes políticas distintas, bem como a efetiva implementação da plataforma que obtiver democraticamente o apoio da maioria. Consoante destaca Zagrebelsky, os direitos políticos e, por conseguinte, a democracia pressupõem a existência de um “espaço vazio de direito constitucional” . Nesses termos, a interpretação levada a efeito por juízes constitucionais que empreste específico conteúdo ideológico às disposições da Constituição acaba por impor nocivo estreitamento dos espaços de debate político ordinário e, por conseguinte, da própria democracia. Quanto mais os órgãos de jurisdição constitucional atribuírem carga ideológica à Constituição, menos aberta ela será ao debate democrático, constituindo instrumento de exclusão de plataformas e soluções político-partidárias alternativas.

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