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TJ-PR
Tribunal de Justiça do Paraná.| Foto: Albari Rosa/Arquivo Gazeta do Povo

Conforme noticiado pela Gazeta do Povo, na coluna do jornalista Roger Pereira:

  • Liminar concedida pelo desembargador Ramon de Medeiros Nogueira, do Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR), suspendeu a tramitação do projeto de lei que proíbe a adoção do passaporte sanitário (a exigência de comprovação de vacinação) para adentrar a locais públicos e privados do estado. O desembargador atendeu reclamação dos deputados estaduais “Tadeu Veneri (PT), Arilson Chiorato (PT), Goura (PDT), Professor Lemos (PT), Luciana Rafagnin (PT) e Requião Filho (MDB), que alegaram haver infração ao Regimento Interno da Assembleia na passagem do projeto, que tramita em regime de urgência, pelas comissões temáticas da Casa.”

A decisão é juridicamente equivocada. Como demonstraremos a seguir, ela sobrepõe interpretação judicial sobre a leitura concedida pela própria Casa Legislativa acerca de seu respectivo Regimento Interno (questão interna corporis), o que a teor de remansosa e pacífica jurisprudência e tradição constitucional brasileira viola o princípio da Separação de Poderes e a autonomia do Poder Legislativo.

Vejamos por quê.

O que diz a jurisprudência do STF acerca do tema

Segundo tradição constitucional assentada no Brasil, existe uma questão interna corporis quando matéria de organização interna do Poder Legislativo não foi tratada expressamente pela Constituição ou pela lei, sendo objeto apenas de normativas de uma das Casas Legislativas. Nesses casos, há liberdade para que tais órgãos interpretem o tema, sem que o Judiciário possa impor entendimento diverso. Do contrário, havendo regra constitucional ou legal expressa, as Casas não têm liberdade para contrariar a Constituição e as leis; e, se o fizerem, cabe intervenção judicial.

As questões interna corporis foram reconhecidas pelos tribunais como forma de delimitar um espaço de insindicabilidade judicial, expressão usada no jargão jurídico para indicar temas em que o Judiciário não pode interferir, sob pena de violar o princípio constitucional da Separação de Poderes e a autonomia dos órgãos legislativos.

As questões interna corporis são, assim, um exemplo de tema judicialmente insindicável. Como visto, para que elas se configurem, há basicamente dois requisitos cumulativos: 1) tema interno do Poder Legislativo, por exemplo, processo legislativo ou organização interna dos órgãos; e, 2) ausência de regulação expressa na Constituição e nas leis.

Em suma, no espaço que a Constituição e as leis deixaram para que o Legislativo cuidasse de seus assuntos internos, cabe a ele definir e interpretar as respectivas normas, sendo inviável a intervenção judicial.

Se algum daqueles dois requisitos não estiver presente,, não se trata de questão interna corporis. Por exemplo, quando a Constituição define o quórum de uma votação ou fixa que é inviável a reeleição de presidentes das Casas do Congresso, ainda que esses sejam temas internos do Poder Legislativo, eles não configuram questão interna corporis, pois há tratamento constitucional expresso o qual vincula o órgão legislativo, de modo que se ele infringir o dispositivo constitucional, cabe intervenção judicial.

A primeira vez em que isso foi decidido pelo plenário do STF, após o advento da Constituição de 1988, foi na Suspensão de Segurança nº 327. Lá, essas lições já ficaram fixadas. Basicamente, no caso concreto, o STF afirmou que as regras de tramitação de emendas constitucionais que não estejam fixadas na Constituição e nas leis configuram questão interna corporis e, por isso, seriam insindicáveis judicialmente.

Confira a ementa:

  • Questão "interna corporis" do Poder Legislativo. Princípio da independência e harmonia dos Poderes. 1. A sustentação oral é ato facultativo no processo, não absolutamente necessário à defesa. O art. 131, par-2., do R.I.S.T.F. não permite sustentação oral em agravo regimental e não foi revogado pelo art. 5., inciso LV, da Constituição Federal. 2. A tramitação de Emenda Constitucional, no âmbito do Poder Legislativo, é matéria "interna corporis", insuscetível de controle judicial, salvo em caso de ofensa à Constituição ou à lei. Exceto nessas hipóteses, a interferência não é tolerada pelo princípio da independência e da harmonia entre os Poderes. (...) (SS 327 AgR, Relator(a): SYDNEY SANCHES, Tribunal Pleno, julgado em 01/07/1991)

Isso foi repetido em dezenas de julgamentos posteriores. Vejamos alguns dos mais recentes:

  • AGRAVO INTERNO EM MANDADO DE SEGURANÇA. ATO DO PRESIDENTE DA CÂMARA DOS DEPUTADOS. INSTALAÇÃO E COMPOSIÇÃO DE COMISSÃO ESPECIAL. SUPOSTA NECESSIDADE DE PLENO FUNCIONAMENTO DAS COMISSÕES PERMANENTES. INTERPRETAÇÃO DE DISPOSITIVOS REGIMENTAIS DA CASA LEGISLATIVA. ATO INTERNA CORPORIS, NÃO SUJEITO AO CONTROLE JUDICIAL. SEPARAÇÃO DE PODERES. ORDEM DENEGADA. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO. 1. O Poder Judiciário não possui competência para sindicar atos das Casas Legislativas que se sustentam, unicamente, na interpretação conferida às normas regimentais internas. Precedentes: MS 25.144 AgR, Relator Min. Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, DJe 28.02.2018; MS 31.951 AgR, Relator Min. Luiz Fux, Primeira Turma, DJe 31.08.2016, MS 24.356, Relator Min. Carlos Velloso, Tribunal Pleno, DJ 12.09.2003. 2. A inexistência de fundamento constitucional no ato emanado do Poder Legislativo, cujo alicerce decorre unicamente da exegese do Regimento Interno das Casas Legislativas, revela hipótese de ato interna corporis insindicável pelo Poder Judiciário. 3. In casu, a despeito de o impetrante invocar o art. 58, caput, da CRFB/1988, para amparar seu direito líquido e certo, o ato coator está baseado na interpretação dos arts. 33, §§ 1º e 2º, e 34, § 1º do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, que só deve encontrar solução no âmbito do Poder Legislativo, não ficando sujeito à apreciação do Poder Judiciário. 4. Agravo interno a que se NEGA PROVIMENTO. (MS 35581 AgR, Relator(a): LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 15/06/2018)
  • CONSTITUCIONAL. AGRAVO INTERNO NO MANDADO DE SEGURANÇA. ALEGAÇÃO DE ILEGALIDADE ATRIBUÍDA AO PRESIDENTE DA CÂMARA DOS DEPUTADOS. INOCORRÊNCIA. INTERPRETAÇÃO DE NORMAS DO REGIMENTO INTERNO DA CÂMARA DOS DEPUTADOS. IMPOSSIBILIDADE. ASSUNTO INTERNA CORPORIS. SEPARAÇÃO DOS PODERES. INEXISTÊNCIA DE DIREITO LÍQUIDO E CERTO. RECURSO DE AGRAVO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. 1. Não é possível o controle jurisdicional em relação à interpretação de normas regimentais das Casas Legislativas, sendo vedado ao Poder Judiciário, substituindo-se ao próprio Legislativo, dizer qual o verdadeiro significado da previsão regimental, por tratar-se de assunto interna corporis, sob pena de ostensivo desrespeito à Separação de Poderes, por intromissão política do Judiciário no Legislativo. 2. É pacífica a orientação jurisprudencial desta SUPREMA CORTE no sentido de que, a proteção ao princípio fundamental inserido no art. 2º da CF/1988, segundo o qual, são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, afasta a possibilidade de ingerência do Poder Judiciário nas questões de conflitos de interpretação, aplicação e alcance de normas meramente regimentais. 3. Recurso de agravo a que se nega provimento. (MS 36662 AgR, Relator(a): ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 25/10/2019)

A partir desses precedentes, percebe-se que, quando uma questão deliberada pelo Poder Legislativo se refere exclusivamente a normas regimentais, é absolutamente descabida a intervenção judicial, sob pena de violação do princípio constitucional da Separação de Poderes e da autonomia do Poder Legilativo.

Qual o fundamento da decisão proferida pelo Desembargador Ramon de Nogueira Medeiros?

O caso objeto da decisão envolveu a tramitação de projeto de lei que visa impedir a segregação social baseada no status de vacinação em relação à COVID. O projeto de lei apresentado por alguns deputados estaduais , enquanto tramitava na Comissão de Constituição e Justiça da Assembleia Legislativa do Paraná, foi objeto de “substitutivo” do Deputado Márcio Pacheco, o qual não figurou, no entanto, como autor inicial do projeto.

Após aquele substitutivo ser aprovado na CCJ, o projeto seguiu sua tramitação e, na Comissão de Saúde, o próprio Deputado Márcio Pacheco figurou como relator da proposta, onde o projeto sagrou-se novamente vencedor.

O desembargador, com fundamento única e exclusivamente em interpretação que concedeu ao Regimento Interno da Assembleia Legislativa – isto é, sem qualquer base na Constituição Federal ou Estadual ou em lei -, entendeu que o Deputado Márcio Pacheco após ter apresentado o substitutivo que fora aprovado na CCJ não poderia figurar como relator do projeto na Comissão de Saúde. Isso porque, conforme leitura que fez de artigos exclusivamente extraídos do Regimento Interno da Casa Legislativa, o autor de proposição legislativa não pode atuar como seu relator. A decisão baseou-se especificamente nos seguintes dispositivos do mencionado regimento interno: § 4º do art. 79:“§ 4º Não poderá o autor de proposição ser dela o relator, ainda que substituto.”; § 1º do art. 154: “§ 1º As proposições poderão ser de projetos de lei, projetos de resolução, projetos de decreto legislativo, propostas de emenda à constituição, emendas, requerimentos e vetos.”; e, art. 175, caput, e inciso IV: "Art. 175. Emenda é a proposição apresentada como acessória de outra proposição e se classifica em: (…) IV – substitutivo geral: a apresentada como sucedânea integral de proposição;”).

Para justificar a invasão do campo de deliberação exclusivo do órgão legislativo, o magistrado citou julgado da 2ª Turma do STF no Mandado de Segurança 34.635. O precedente, no entanto, não guarda conexão com a causa. Pelo contrário, ele basicamente reafirma o que mencionamos acima.

O que ocorre é que em seu voto o desembargador mencionou apenas trecho do julgado que parece lhe dar razão. Confira a parte que constou do voto:

  • “O processo de formação das leis ou de elaboração de emendas à Constituição revela-se suscetível de controle incidental ou difuso pelo Poder Judiciário, sempre que, havendo possibilidade de lesão à ordem jurídico- -constitucional, a impugnação vier a ser suscitada por membro do próprio Congresso Nacional, pois, nesse domínio, somente ao parlamentar – que dispõe do direito público subjetivo à correta observância das cláusulas que compõem o devido processo legislativo.” (STF, Segunda Turma, MS 34.635/DF, Rel. Min. Celso de Mello, J. 10.10.2020, DJE 15.10.2020)

Contudo, o trecho é parte de arrazoado maior, em que o Ministro diz expressamente que o controle jurisdicional só é cabível quando há violação a dispositivo da própria Constituição que tratam do processo legislativo, e não quando isso se baseia única e exclusivamente em dispositivo regimental.

Confira:

  • PROPOSTA DE EMENDA À CONSTITUIÇÃO – CONTROLE JURISDICIONAL DE SEU “ITER” PROCEDIMENTAL – LEGITIMIDADE ATIVA, PARA ESSE EFEITO, RECONHECIDA A QUALQUER MEMBRO DAS CASAS DO CONGRESSO NACIONAL – PRECEDENTES – POSSIBILIDADE DESSA FISCALIZAÇÃO JUDICIAL, DESDE QUE EVIDENCIADA A EXISTÊNCIA DE ALGUMA DAS SITUAÇÕES PREVISTAS NO ART. 60 DA LEI FUNDAMENTAL, QUE CONFIGURAM LIMITAÇÕES AO EXERCÍCIO DO PODER DE REFORMA DA CONSTITUIÇÃO – INADMISSIBILIDADE DE INVOCAÇÃO DA LEGISLAÇÃO MERAMENTE ORDINÁRIA, COM O OBJETIVO DE ERIGI-LA À CONDIÇÃO DE PRESSUPOSTO DE OBSERVÂNCIA NECESSÁRIA PARA EFEITO DE VÁLIDA INSTAURAÇÃO DO PROCEDIMENTO DE MODIFICAÇÃO DO TEXTO CONSTITUCIONAL – ALEGADA TRANSGRESSÃO A NORMAS DE ÍNDOLE REGIMENTAL – A QUESTÃO DO “JUDICIAL REVIEW” E O PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES – DIVERGÊNCIAS “INTERNA CORPORIS” E DISCUSSÕES DE NATUREZA REGIMENTAL: APRECIAÇÃO VEDADA AO PODER JUDICIÁRIO, POR TRATAR-SE DE TEMAS QUE DEVEM SER RESOLVIDOS NA ESFERA DE ATUAÇÃO DO PRÓPRIO CONGRESSO NACIONALENSAIO DE INDEVIDA JUDICIALIZAÇÃO DE QUESTÕES ESTRITAMENTE POLÍTICAS – INADMISSIBILIDADE – DOUTRINA – PRECEDENTES – MANDADO DE SEGURANÇA NÃO CONHECIDO – INTERPOSIÇÃO DE RECURSO DE AGRAVO – PARECER DA DOUTA PROCURADORIA-GERAL DA REPÚBLICA PELO NÃO PROVIMENTO DESSA ESPÉCIE RECURSAL – RECURSO DE AGRAVO NÃO PROVIDO. – O processo de formação das leis ou de elaboração de emendas à Constituição revela-se suscetível de controle incidental ou difuso pelo Poder Judiciário, sempre que, havendo possibilidade de lesão à ordem jurídico- -constitucional, a impugnação vier a ser suscitada por membro do próprio Congresso Nacional, pois, nesse domínio, somente ao parlamentar – que dispõe do direito público subjetivo à correta observância das cláusulas que compõem o devido processo legislativo – assiste legitimidade ativa ”ad causam” para provocar a fiscalização jurisdicional. – O exercício do poder reformador, embora passível de controle jurisdicional, há de considerar, unicamente, as normas de parâmetro que definem, em caráter subordinante, as limitações formais (CF, art. 60, “caput” e § 2º), as limitações circunstanciais (CF, art. 60, § 1º) e, em especial, as limitações materiais (CF, art. 60, § 4º), cuja eficácia restritiva condiciona o processo de reforma da Constituição. – O Plenário do Supremo Tribunal Federal tem reiteradamente advertido que atos emanados dos órgãos de direção das Casas do Congresso Nacional ou de sua Comissões, quando praticados, por eles, nos estritos limites de sua competência e desde que apoiados em fundamentos exclusivamente regimentais, sem qualquer conotação de índole jurídico-constitucional, revelam-se imunes ao “judicial review”, pois a interpretação de normas de índole meramente regimental, cujo teor veicula matéria de caráter tipicamente “interna corporis”, suscita questão que se deve resolver, “exclusivamente, no âmbito do Poder Legislativo, sendo vedada sua apreciação pelo Judiciário” (RTJ 168/444), sob pena de ofensa ao princípio fundamental da separação de poderes. Precedentes. (MS 34635 AgR, Relator(a): CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 10/10/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-249 DIVULG 14-10-2020 PUBLIC 15-10-2020)

A decisão, portanto, parece-nos flagrantemente equivocada, sendo devida sua reversão pelo órgão colegiado do Tribunal do Paraná, sob pena de ofensa à Separação dos Poderes e à autonomia legislativa da Assembleia para interpretar seu próprio regimento, segundo - como vimos - tradição constitucional assente no direito brasileiro.

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