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O Sinédrio de Caifás, o ativismo judicial e a condenação por “fake news”
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Após alguns anos de vida pública, um homem sozinho, sem poder político e sem recursos econômicos, começa a incomodar grupos poderosos. A sua arma é unicamente a força da palavra verdadeira e do exemplo autêntico: “E conhecereis a verdade, e ela vos libertará”, dizia.

Sua mensagem não se espalha por grandes órgãos de imprensa, mas boca a boca. Aqueles que a ouvem difundem-na aos mais próximos e os que testemunham suas obras correm para divulgá-las àqueles que estão sedentos de esperança.

Tomados de inveja e despeito, os detentores de autoridade armam contra Ele. Imputam-lhe caluniosamente a conduta de alastrar mentiras e minar a autoridade das instituições do Estado. Após, submetem-no a um tribunal de exceção, no qual um julgamento injusto, sem garantias e com juízes parciais – partidários de seus perseguidores –, condena-lhe, buscando encerrar sua vida pública.

O teor da acusação seria o que hoje certos grupos chamam de fake news, basicamente fazer alegações ou divulgar opiniões com as quais não concordam (e, por vezes, dizer verdades que eles não gostam de ouvir): “ele se declarou filho de Deus”.

Outra parcela da imputação contra ele apresentada seria atualmente descrita como “ataque às instituições”: “ele mandou não pagar tributo a César” e “Ele está causando desordem entre o povo em toda Judeia. Ele começou na Galileia e agora chegou aqui”. Quando alguém de bom senso procurou libertá-lo, arguiram os algozes: “Se o soltares, não és amigo do imperador, porque todo o que se faz rei se declara contra o imperador.”

Daí pra frente o simulacro de processo seguiu seu curso. Num procedimento judicial razoável, existem algumas garantias que devem ser observadas:

1) o réu tem de ter acesso à acusação contra ele apresentada, a qual deve individualizar o fato, enquadrá-lo em dispositivo prévio de lei taxativa, isto é, descrita com suficiente precisão a fim de impedir a manipulação do tipo penal;

2) o acusado tem de ter o direito de elaborar sua defesa com tempo suficiente, indicando provas que devem ser devidamente produzidas sempre que pertinentes;

3) quando da sentença, todos os elementos devem ser rigorosamente examinados segundo o direito, por um juiz imparcial e que, portanto, não pode ter participado da investigação e da acusação;

4) deve haver alguma possibilidade de recurso.

Contudo, naquele teatro persecutório tudo não passava de encenação. O futuro édito condenatório não decorria do enquadramento de fatos à lei, mas de um raciocínio consequencialista que manipula o direito para produzir efeitos desejados: “Não percebeis que é melhor um só morrer pelo povo do que perecer a nação inteira?”, falara um dos que funcionariam no conselho que declarou a sua culpa. “Se deixamos que ele continue assim, todos vão acreditar nele, e virão os romanos e destruirão o nosso Lugar Santo e a nossa nação”, completou outro.

Ou seja, desde o princípio, aquelas almas cegas pela inveja e pelo despeito já haviam racionalizado o seu ódio e desejo de vingança, fomentando a crença de que livrar-se de sua vítima não decorria de um ato de baixeza e injustiça, mas seria do "interesse da sociedade". A alegação de que aquilo seria bom para o “bem comum” e a preservação da comunidade, na verdade, não passava de imunização cognitiva e tentativa de arrefecer a grito incômodo de suas consciências agredida por tão abjeto comportamento.

A injustiça jamais pode contribuir para o bem comum, porque o respeito aos direitos de todas e de cada pessoa é parte constitutiva dele. Não importa o quão favorável sejam as consequências que a injustiça possa causar para os recursos extrínsecos e instrumentais da comunidade, como a riqueza ou o prestígio, a violação do tratamento isonômico segunda a legislação estabelecida pela autoridade constituída para concretizar os bens humanos básicos sempre será nociva seja do ponto de vista ético, político ou jurídico.

Mas para os juízes ativistas e parciais, de que importa tudo isso? A única coisa que os guia é o desejo insaciável de fazer valer suas preferências subjetivas e de impor suas razões idiossincráticas, quando não simplesmente perseguir quem lhes é inconveniente.

Nesse processo primeiro veio a decisão de condenar. Só então seguiu a busca pelo que era preciso recolher para criar um verniz de legalidade: pincelar falas soltas e enquadrá-las em disposições penais exóticas; violentar o devido processo e inviabilizar a tarefa da defesa, por meio do sigilo, da análise enviesada das evidências e da parcialidade dos julgadores; e, por fim, impedir que qualquer instrumento efetivo de irresignação fosse manejado. Abundaram ali as ilegalidades e os abusos, porque sem eles não era possível chegar à condenação que pretendiam com um mínimo de aparência de normalidade.

Inclusive, durante o simulacro de processo que ocorreu perante o sinédrio, o grupo responsável pela investigação e pelo julgamento era o mesmo. A razão era simples: submeter a causa a outro órgão acusador independente ameaçava que os fatos fossem analisados por instituição imparcial e desapaixonada. Por óbvio, era isso indesejado para os juízes ativistas, pois poderia assegurar a observância dos direitos, a justa absolvição da vítima, e até mesmo a descoberta da escandalosa armação daqueles embusteiros.

A Pôncio Pilatos restou a vergonhosa postura da omissão criminosa. Não por razões jurídicas, mas por conveniência política e pessoal, referendou a infame decisão. De nada lhe serviu lavar as mãos, quando já se encontrava manchada a alma pela conivência com a maldade, pelo abandono do direito e pela cooperação covarde com a injustiça.

Hoje, Sexta-Feira Santa, lembramos daquele trágico acontecimento. A Vítima na ocasião era inigualável, assim como a injustiça que sobre ela recaiu, uma vez que impossível que em outro caso tamanha inocência seja contraposta a tão vil condenação. A causa e a consequência daquele julgamento iníquo estão envoltas nas riquezas não só do direito, mas também e precipuamente da teologia e da espiritualidade.

Creio, todavia, que nem por isso deixe de ser possível que utilizemos aquele acontecimento como espécie de arquétipo da injustiça e com isso possamos, analogicamente, compará-lo com os riscos que constantemente ameaçam a administração a justiça. Com esse cotejo podemos lançar luzes nas possíveis ameaças que nos são contemporâneas. Ademais, a gravidade e repugnância daquele dia, podem servir para manter-nos mais diligentes e atentos ao tamanho do perigo que nos aflige.

Aliás, por derradeiro, saliento que aqueles não são comportamentos que podemos encontrar apenas nos outros. Mas dentro de nós mesmos. Cada um de nós, portanto, e particularmente aquelas pessoas investidas em autoridade, pode ser o perseguidor voraz, o juiz iníquo ou o revisor covarde.

É necessário, por conseguinte, que valendo-nos das lições da história atuemos motivados pelo compromisso com o direito e com o bem comum; que busquemos a preparação constante, a vigilância permanente sobre nossas ações, e a atuação destemida. Só assim poderemos contribuir para fazer reinar o direito e evitar os males da manipulação da jurisdição com propósitos perversos e arbitrários.

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