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O filósofo conservador Roger Scruton
O filósofo conservador Roger Scruton| Foto:

Na coluna de hoje não trago um texto próprio. Pelo contrário, brindo o leitor com artigo do professor e escritor Fausto Zamboni. De um berço de literatos, Zamboni alimentou o contato com a boa literatura desde cedo. Hoje é Doutor em Letras, professor de Língua e Literatura Italiana em uma das universidades estaduais da Paraná, e autor de livros sobre educação. Ele é um dos maiores especialistas do país na grande obra de Dante Alighieri (e provavelmente a maior obra de toda Idade Média): A Divina Comédia.

O texto a seguir não é bom. É ótimo. Dentro de uma perspectiva literária apresenta problemas atuais de nossa sociedade. E para não privar mais o leitor de seu conteúdo, cesso aqui a apresentação. Aproveite.

Roger Scruton no submundo comunista

Nos dez anos finais do regime soviético, enquanto os mais badalados professores e jornalistas da Europa apoiavam o comunismo e a esquerda parecia avançar em países como Portugal, Espanha, Itália e França, alguns poucos escritores – entre os quais o filósofo Roger Scruton – viajavam, por sua própria conta e risco, para o Leste Europeu e mantinham contato com os dissidentes do regime comunista.

Grande foi o choque de Scruton ao chegar, em 1979, no aeroporto sombrio e militarizado de Varsóvia. Sem hotéis disponíveis, teve que dormir na periferia da cidade, com uma família que se apertava num apartamento frio e mal iluminado para complementar sua renda, hospedando estrangeiros. Menu do café da manhã: uma cebola crua e um café ralo, com gosto de serragem. Em vão tentou encontrar um restaurante na cidade, enquanto se perguntava, perplexo, se realmente era este o regime que os intelectuais queriam implantar em toda a Europa.

Na Polônia, os dissidentes tinham acesso à universidade, mas eram vigiados o tempo todo e interrompidos nas suas preleções com manifestações agressivas (alguma semelhança entre a universidade polonesa, sob a cortina de ferro, e a universidade brasileira de hoje?). Na Tchecoslováquia a situação era pior. Estudantes eram expulsos simplesmente por organizar grupos de leitura de escritores como Kafka e Dostoievski, e obviamente não havia espaço para discussões de intelectuais dissidentes, que eram frequentemente vigiados, presos e reduzidos a condições penosas. O próprio Scruton foi preso e impedido de retornar, e seu amigo tcheco, na ocasião, teve que engolir papéis para evitar mais prisões (o mesmo amigo, aliás, tornou-se o chefe da polícia política depois da abertura, para desfazer a máquina totalitária. Scruton foi visitá-lo, mas teve que comunicar-se por bilhetes que eram em seguida destruídos, o que mostra que a abertura democrática manteve intacto o sistema de lealdades do regime anterior).

Ao voltar para a Inglaterra, Scruton ajudou a organizar pequenas entidades de apoio, facilitando o intercâmbio de pessoas, ideias e informações com seus contatos na Polônia, na Tchecoslováquia, na Hungria e na Romênia. Ele mesmo acolheu uma família romena, com suas três crianças, e quase se casou com uma estudante tcheca. Lenka, que ele, proibido de entrar na Tchecoslováquia, não pôde mais visitar, deixou-se convencer que abandonar o país, naquele momento, seria como uma traição à pátria, e acabou desposando o mesmo homem que a convenceu a ficar.

Essas e outras informações biográficas podemos encontrar em Conversations with Roger Scruton (2016), escrito em parceria com Mark Dooley. De um ponto de vista pessoal, contudo, o impacto dessa experiência pode ser melhor compreendida a partir de uma obra de ficção, o romance Notes from Underground (2014), traduzido no Brasil, pela É Realizações, como As memórias de Underground (2019). “Camarada Underground” é a tradução de Soudruh Andros, o pseudônimo do protagonista Jan Reichl na literatura clandestina, o Samizdat (sistema clandestino de circulação de escritos dissidentes em países comunistas). Jan vivia com a mãe, que vendia cópias de samizdat, depois de ter-lhe morrido o pai em uma mina, soterrado, enquanto cumpria pena por ter organizado um grupo de estudo de escritores tchecos. Jan trabalhava como gari e gostava de circular pelo metrô de Praga, observando os passageiros silenciosos, procurando imaginar o drama de suas existências. Ele, o pai e mãe foram esmagados pelo regime, relegados à clandestinidade e ao submundo por conta do que lhes era mais caro.

Num de seus passeios cotidianos, Jan começou a seguir uma mulher e esqueceu o manuscrito de seu romance Rumores, por descuido, em um ônibus. A polícia, por meio dele, chegou ao endereço de sua mãe, prendendo-a em virtude de sua atividade editorial clandestina. Betka, a mulher que ele havia seguido, foi em sua casa em busca de uma cópia de samizdat, e eles se tornaram próximos. Ela o fez perceber que, continuando no isolamento e na obscuridade, estaria fatalmente à mercê de um sistema feito para esmagá-lo. O melhor seria sair da obscuridade, fazer-se conhecido nos meios dissidentes e apresentar a sua causa para a imprensa internacional, para que a condenação de sua mãe fosse onerosa para o regime.

Jan saiu do isolamento e conheceu intelectuais, como ele, perseguidos e marginalizados, que o ajudaram a compreender a sua situação e a inseri-la no drama espiritual de sua nação. Mas as relações entre dissidentes e representantes do mundo oficial eram mais estreitas do que se poderia supor: um amigo poderia ser um rival, e um padre confessor poderia ser um instrumento do regime para obter informações privilegiadas.

Scruton teve o mérito de explorar essas ambiguidades na relação amorosa entre Jan e Betka, unindo o destino coletivo e o individual num drama vivo. Jan nutria suspeitas a respeito de sua namorada, que parecia ocultar-se mesmo quando se revelava. O totalitarismo penetrava em todos os setores da sociedade e em todos os recantos da alma, e todos recuavam, defensivamente, para um submundo pessoal e incomunicável.

A onipresença do regime assim foi resumida por um dos personagens, um padre dissidente: “onde dois ou mais estiverem reunidos em outro nome que não o meu, eu estarei no meio deles”. A ocultação tornou-se uma prática generalizada. Mas o totalitarismo, como uma contrafação do divino, queria ir além: queria criar a sua própria verdade. Como observou outro personagem, o comunismo não opera apenas por meio da falsificação, mas visa sobretudo a abolir a distinção entre a verdade e a mentira – e produz esse efeito em cada alma que vive sob o seu jugo.

Mas nem por isso os dissidentes e os representantes das democracias ocidentais pareciam superiores. Professores interessados no comércio sexual do Leste Europeu (o tour des blondes) vinham apresentar a “máquina dos direitos humanos”, promovendo o assassinato de bebês no ventre das mães como um direito essencial. Os próprios dissidentes costumavam ser (como muitos conservadores, hoje, no Brasil), humanamente pobres – incompetentes que se levavam demasiado a sério e se sentiam superiores por sua mera oposição ao regime.

Já o mundo democrático para onde Jan emigrou, depois da abertura, não oferecia senão uma riqueza material espiritualmente vazia. Tanto o mundo comunista quanto o ocidente democrático são apresentados como o resultado de um mesmo embotamento que anula os contornos individuais e reduz tudo a lugares comuns. Sob este aspecto, a única diferença é que o comunismo, mais agressivo, é um “kitsch com dentes”.

Memórias de Underground é espantosamente atual. É uma advertência sobre a proximidade do fantasma totalitário: estamos mais próximos do que pensamos da existência subterrânea, cinzenta e isolada de Jan Reichl (uma condição que permanece a mesma, na Praga comunista ou em Washington, na era do smartphone). Por outro lado, é uma inspiração: para buscar a verdade – que é sempre perseguida ou ameaçada – e trazê-la à luz do dia, é preciso recolher-se da agitação e da superficialidade, refugiar-se nas catacumbas e perscrutar o fundo misterioso da nossa alma. Que o dissidente dos nossos dias – às voltas com um totalitarismo cada vez mais invasivo – possa servir-se deste belo romance como de um espelho para reconhecer a si mesmo, escapar da superficialidade kitsch e, com a ajuda do patrimônio espiritual comum, sondar as potencialidades mais ricas da própria alma.

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