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Quando amor e violência andam juntos
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Brasília

Heloísa Passos
Mariana Lima interpreta um depoimento real em “Amor?”.

Comparados aos anteriores, os dois últimos longas-metragens exibidos na mostra competitiva do 43º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro podem ser considerados os mais “palatáveis”. Ao menos, no que se refere às escolhas de linguagem. Amor?, quarto longa de João Jardim (de Janela da Alma e Pro Dia Nascer Feliz), visto no domingo (28), tem temática indigesta: a possibilidade de coexistência entre amor e violência.

O público silenciou diante dos impactantes depoimentos de pessoas reais encenados em primeira pessoa diante das câmeras por atores bem conhecidos. Mas mesmo diante de uma temática original, que se propõe a discutir o entrelaçamento entre amor e violência de uma forma subjetiva, não houve como não pensar nas semelhanças com Jogo de Cena, do documentarista Eduardo Coutinho, em que depoimentos reais e inventados se embaralham ao serem ditos por atrizes e não-atrizes. “Uso os atores, não para propor uma discussão sobre a representação e realidade, como fez Coutinho, mas como instrumento para debater as relações amorosas. O que me interessa é a reflexão sobre este tema, o filme em si é menos importante”, diz Jardim, que esclarece se tratar de encenações de depoimentos reais logo no início do filme.

Trocar as pessoas que viveram as histórias contadas por atores permitiu ao filme discorrer sobre as imbricações de amor e violência de maneira mais abstrata, mas sem desumanização. Para isso, a equipe decidiu se ater principalmente à classe média. “No início da pesquisa fomos apresentados a pessoas muito pobres, em abrigos, tão desprotegidas que os depoimentos corriam o risco de virar um mero relato de horrores”, conta a pesquisadora Renée Castelo Branco. Mas, para chegar a pessoas de nível social mais elevado, foi preciso abandonar as listas das instituições e partir para o boca-a-boca. “E aí, vai se descobrindo que um monte de amigos seus ou meus poderiam ser personagens deste filme”, conta o diretor.

Nem sempre é preciso bater para agredir. É o que revela, logo no início, a personagem de Lilia Cabral, ao narrar a troca de ofensas e humilhações em que se transformou seu casamento após a morte de uma filha. Foi preciso que ela aprendesse a identificar as causas para, assim, refrear seus próprios impulsos violentos e os do marido. Dois personagens, vividos por Mariana Lima e Eduardo Moscovis, lidam com o fantasma da violência doméstica na infância. Ela, que apanhava do pai, teve que entender que a violência não era parte integrante do amor para não aceitá-la novamente em suas relações. Ele, sadicamente, põe a namorada ao celular para ouvi-lo narrar aos entrevistadores que agride as mulheres, talvez como um modo de punir a mãe que, com suas atitudes, fazia o pai se descontrolar.

As atrizes Fabíula Nascimento e Silvia Lourenço, em um dos discursos de maior carga dramática, dividem-se na interpretação de uma lésbica que manteve, na juventude, uma história tumultuada, em que cenas de descontrole eram usadas como forma de recuperar instantes de paixão. Outros depoimentos são revividos por Júlia Lemmertz, Eduardo Moscovis, Cláudio Jaborandi, Letícia Collin e Ângelo Antônio – mas os homens, talvez pela dificuldade de se posicionar como agressores, demonstram mais dificuldade em se entregar aos papéis.

Aos depoimentos se alternam belas imagens que têm a água como elemento central – “um alívio à tensão dos depoimentos”, explica a fotógrafa curitibana Heloísa Passos –, seja no mar, na piscina ou no chuveiro, tendo como trilha sonora músicas de amor como “Carinhoso” e “Beatriz”. João Jardim, no início, planejava fazer um filme duro, no qual não caberiam licenças poéticas. “Mas os depoimentos tocaram, inúmeras vezes, no lado bom das relações de amor vividas”, justifica.

Trincheiras Filmes/Divulgação
Cena de “Vigias”, documentário do pernambucano Marcelo Lordello.

Eles vigiam nosso sono
Ao contrário da maior parte dos longas-metragens do festival, que exploram as fronteiras entre documentário e ficção, Vigias, do pernambucano Marcelo Lordello, é simplesmente um documentário sem maiores pretensões que não sejam a de provocar a reflexão sobre a realidade social deturpada dos grandes centros urbanos.

O filme acompanha a rotina extenuante de sete homens que, noite adentro, atuam como vigias de edifícios de Recife. Incomoda a pouca luminosidade das cenas, os silêncios e os planos demorados. “Quis fazer com que o público pudesse sentir o peso da noite, a aridez do trabalho daquelas pessoas”, diz o diretor. Logo na primeira cena, um dos entrevistados é mostrado sentado por três minutos, de costas para a câmera, nos fazendo sentir a solidão daquele trabalho que prolifera à medida que as cidades vão se verticalizando e a violência se alastra.

“Sempre morei em apartamento, mas sou contra este modo de vida restritivo”, diz Lordello. Ele reconhece como uma característica do atual cinema pernambucano o desejo de refletir sobre as questões da cidade – neste sentido, seu filme dialoga com o longa-metragem Um Lugar ao Sol, de Gabriel Mascaro, exibido na Mostra de Cinema de Tiradentes, em janeiro deste ano, que tem como personagens moradores de coberturas de luxo.

Quando Lordello dá voz aos vigias, nos admiramos com seus discursos bem articulados sobre segurança, baixos salários, desrespeito dos moradores. Seja por esta capacidade de ouvir, seja pela carga dos silêncios e penumbras, Vigias permite ao público se colocar na pele destes personagens invisíveis e refletir sobre o desequilíbrio de uma sociedade em que o sono de uma classe mais privilegiada precisa ser velado por trabalhadores insones – mera ilusão de segurança.

A repórter viajou a convite da organização do festival.

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