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Nos últimos dias, o futebol brasileiro voltou a prestar atenção nos atos violentos das torcidas organizadas. Um movimento cíclico, sempre desencadeado por alguma tragédia e encerrado em poucas semanas, sem que nada de concreto seja feito a respeito. O estopim da vez foi a briga a tiros e barras de ferro entre corintianos e palmeirenses, domingo retrasado, que terminou com dois integrantes da Mancha Alviverde mortos. Sábado à noite, em Goiânia, a guerra entre as organizadas de Goiás e Vila Nova fez a nona vítima em um ano. E no futebol paranaense, mais uma partida do Atlético serviu de pretexto para brigas entre integrantes de organizadas do próprio clube.

A reação imediata a cada morte ou briga de grande repercussão é pedir a extinção das torcidas. Considero a medida interessante, embora não possa ser encarada como a única solução. A violência das organizadas está inserida no contexto de violência urbana. Se não fosse o futebol, os grupos brigariam por qualquer outro motivo – nem que o motivo fosse o simples prazer de brigar. O combate à violência só será eficaz se as autoridades entenderem como funciona uma organizada por dentro, da atração que ela desperta entre os jovens à hierarquia vigente dentro dos grupos, passando pelo poder e a influência desses grupos.

Uma boa introdução a esse mundo, tanto para as autoridades como para o torcedor comum, é ler La Doce – A Explosiva História da Torcida Organizada Mais Temida do Mundo, lançado no Brasil pela Panda Books. Gustavo Grabia, jornalista e principal especialista argentino em violência no futebol, destrincha a história de La 12, a mãe de todas as torcidas organizadas. A barra brava do Boca Juniors definiu o conceito moderno de torcida organizada – para o bem e para o mal. Se um grupo de torcedores passa o jogo inteiro do seu time pulando, batucando e cantando sem parar, a inspiração foi La 12. Se o mesmo grupo pressiona jogadores e dirigentes, arruma briga com torcedores rivais e lucra às custas do clube, a inspiração também vem de La 12.

A facção criou um poder paralelo dentro da Bombonera, forte a ponto de nomes como José “Abuelo” Barrita, Rafa Di Zeo e Mauro Martín se tornarem tão importantes para entender a história do Boca como Antonio Jacinto Armando, Diego Maradona, Carlos Bianchi e Martín Palermo. Grabia dimensiona estes personagens das arquibancadas e conta como eles construíam e mantiveram esse poder – às vezes mesmo atrás das grades – à base de alianças e violência. A semelhança com a máfia é evidente, seja pela estrutura interna, seja pela capacidade de se aliar ao poder, seja pela capacidade de se reorganizar em períodos de crise – “É herança, herança e herança”, define, ao livro, Di Zeo, chefe da La 12 entre 1996 e 2006.

Herança que também se traduz em proteção política e da Justiça para os atos violentos da organizada. Até ser preso em 2006, por comandar o espancamento de torcedores do Chacarita em um jogo transmitido ao vivo pela TV argentina, Di Zeo conseguiu manter sua barra imune à ação policial graças aos contatos com os três poderes na Argentina. Abuelo, o mais célebre chefe da 12, foi para cadeia em 96 por causa da fundação criada para lavar dinheiro de doações feitas para a barra. Entre os doadores, inúmeros políticos, empresários e jogadores.

Sim, jogadores do Boca estão entre os principais financiadores de La 12, bem como dirigentes e treinadores. Ano de Copa do Mundo é ano de a cúpula da barra visitar o elenco xeneize e pedir dinheiro para mandar seus integrantes ao Mundial, seja qual for o país-sede. Houve mundiais em que até planos de parcelamento foram apresentados ao atleta.

Quem colabora, tem o nome gritado na Bombonera. Quem não dá dinheiro, acaba perseguido até deixar o time. Entre os técnicos a lógica é a mesma, embora um deles tenha conseguido manter a carteira fechada para a organizada e ainda assim ter vida longa no clube. Carlos Bianchi, o mister Libertadores, foi visitado pelos chefes da 12 no seu primeiro dia de Boca. Disse não faria doação alguma. Dirigentes se cotizaram para fazer um repasse em nome do treinador, que conseguiu trabalhar em paz para fazer do Boca o time mais temido da América do Sul no início do século, mas nunca teve seu nome gritado pelos torcedores.

Chantagear jogadores, técnicos e dirigentes não é o único negócio da 12. A facção vende seu apoio a candidatos em ano de eleição, tanto no clube como na política real. Também organiza tours pela Bombonera, permitindo a turistas ter o seu dia de barra brava, cobra pedágio de ambulantes e donos de bar da Bombonera e gerencia os estacionamentos em torno do estádio.

Esse último ponto, aliás, foi o motivo da mais recente confusão envolvendo La 12. No mesmo dia em que os dois palmeirenses foram assassinados em São Paulo, integrantes da La 12 trocaram tiros com guardadores de carro que ousaram se infiltrar nas ruas gerenciadas pela barra. Separados por 1.679 quilômetros, os dois fatos são muito mais próximos do que aparentam. E deixam a lição de que sem uma ação enérgica das autoridades, as organizadas são capazes de atingir um poder quase indestrutível. Na Argentina, o caminho já parece sem volta. No Brasil, ainda há (pouco) tempo para evitar o pior.

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