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A limpeza étnica da Palestina: uma história e um livro ignorados
| Foto: Wikimedia Commons

O caminho mais fácil para mim, agora, seria escrever em defesa de Israel. Afinal, eu trabalho num jornal de direita, e a defesa intransigente da causa palestina, hoje, se restringe apenas a um setor da esquerda brasileira que, até a declaração de Lula na Etiópia, parecia bem minoritário e restrito à esquerda mais vetusta. Se há alguém que representa a caricatura da Nova Esquerda no Brasil, esse alguém é Jean Wyllys – que vive repetindo que Israel é “a única democracia do Oriente Médio”, bem como denunciando a homofobia e a religiosidade dos muçulmanos. A esquerda woke, alinhada com os EUA, parecia ter deglutido os dinossauros do Foro de São Paulo, que jamais colocariam a democracia liberal e o combate à homofobia acima da luta de um povo oprimido.

Mas como eu não tenho a menor intenção de ser uma macaca de auditório e encontro realização no meu trabalho buscando a verdade, procuro, desde outubro passado, me inteirar do histórico do sionismo e do conflito entre os adeptos dessa ideologia e os árabes da palestina. Para o conflito propriamente dito, decidi-me por A limpeza étnica da Palestina, do historiador judeu israelense Ilan Pappé.

Quem é Ilan Pappé

Descobri-o no programa de entrevistas de Chris Hedges, um jornalista típico da velha esquerda americana que foi soterrada pelo wokismo, a saber: branco, presbiteriano, laicista, trabalhista, democrata e defensor da liberdade de expressão absoluta. Ao apresentar Ilan Pappé, Chris Hedges exibe dois livros seus e comenta que o segundo sofreu boicote por parte dos próprios editores na França. Fiquei inclinada a lê-lo, investiguei tanto Pappé quanto o livro, e decidi-me por ele. Segundo notei, não há acadêmicos dizendo que Pappé simplesmente mentiu; o que há são queixas quanto à sua maneira supostamente tendenciosa de apresentar os dados. A obra é de 2006. Encontrei uma edição brasileira de 2016, de uma pequena editora comunista chamada Sundermann. É uma edição bem cuidada (ao menos a versão de capa dura que achei na Estante Virtual).

Ilan Pappé é nascido e criado em Israel, filho de judeus alemães, e sua primeira língua é o hebraico moderno – um exemplo da força do sionismo, já que nem Herzl imaginava que o hebraico poderia voltar a ser falado como língua vernácula. Como o leitor talvez tenha se acostumado a ligar a figura do judeu ferrenhamente antissionista à figura do judeu comunista estridente, vale dizer que Ilan Pappé não demonstra apoiar nenhuma ideologia política hoje, ainda que tenha concorrido ao parlamento por um partido de esquerda na década de 90. No livro de 2006, ele denuncia bastante os partidos de esquerda. Quando escreveu A limpeza étnica da Palestina, Pappé morava em Israel e era professor da Universidade de Haifa, sua cidade natal. Depois, ele não conseguiu se manter mais na universidade, nem garantir a própria integridade física, e hoje é professor da Universidade de Exeter, na Inglaterra.

O começo da história, do ponto de vista palestino

Hoje é lugar comum afirmar que naquela terra nunca houve paz, pois todos viviam se matando. Essa é uma visão enganosa, pois a Palestina rural se parecia mais com um regime feudal: os camponeses tocavam a sua vida independentemente de quem fosse o dono da terra ou o chefe do governo. Um típico vilarejo palestino não tinha muros e as divisórias entre vilas e casas eram os bustans comunitários. Um bustan é uma palavra árabe que designa pomar ou jardim, porque os pomares de fato eram ornamentais como os jardins. Em particular, a Palestina era célebre por suas oliveiras e laranjais. As oliveiras são espécies nativas de lá; já a laranja, originária da China ou da Índia, foi propagada pelos mouros, tendo chegado até nós graças ao Califado Omíada que tomou conta do que hoje é Portugal. Aonde o árabe vai, leva laranja e azeitona, se o clima deixar. (Em tempos tão urbanizados, não é demais lembrar que azeite de oliva é óleo de azeitona; são sinônimos com etimologias diferentes, ambas misturando árabe, donde vêm azeite e azeitona, e latim, donde vêm óleo e oliva.)

Quando a Palestina estava sob o governo do Império Otomano, os aldeões produziam laranja e azeite. Quando a Palestina passou ao Mandato Britânico (1920), os aldeões produziam laranja e azeite. Quando um senhor de terras vendia um quinhão, o novo dono de terras, obviamente, precisaria de aldeões para produzir laranja e azeite. Assim, quando os sionistas apareceram, o que os camponeses pensaram era que seriam apenas outros donos de terra e, depois, outros chefes de governo. Por isso, mesmo quando a ONU resolveu partilhar a Palestina de modo igual, desconsiderando a absoluta maioria nativa, os aldeões palestinos não deram bola. O problema é que os sionistas tinham, desde Herzl, o projeto de um Estado étnico judeu, um Estado no qual os aldeões também teriam de ser judeus. Vale frisar que seria um Estado secular e os sionistas costumavam ser ateus, então o crivo era étnico e não confessional.

Outra coisa importante é que os judeus são culturalmente urbanos há muitas gerações. A URSS, tentando torná-los rurais, criou um oblast perto do Japão para eles, mas não deu certo. Os antissemitas do Itamaraty na II Guerra, de modo a empecer a imigração judaica, exigiam que o imigrante fosse formalmente solicitado para trabalho rural. Em Israel, os sionistas tiveram o mesmo problema: a imigração judaica se concentrava espontaneamente nos centros urbanos da Palestina. Para criar judeus rurais, só importando da Rússia socialistas utópicos que queriam viver em comunas. As comunas chamam kibbutz (no plural, kibbutzim) e os seus habitantes chamam-se kibbutznik (no plural, kibbutznikim ou kibbutzniks). Esse movimento foi iniciado por judeus russos ainda no Mandato Britânico.

Profissionalização das milícias sionistas

Além de arranjar judeus rurais, os sionistas precisariam de outra coisa para o seu Estado: judeus marciais, algo também estranho à cultura judaica durante séculos.

Com Ilan Pappé, aprendemos que a profissionalização dos paramilitares judeus tem início com o oficial Orde Wingate, um inglês nascido na Índia colonial que serviu no Sudão e, ao ser transferido para a Palestina em 1936, se entusiasmou com o movimento sionista. Assim, resolveu ajudá-los e treinou primeiro a Haganá (Defesa, em hebraico), a milícia dos colonos e embrião tanto das outras milícias (Irgun e Gangue Stern), quanto do atual exército (FDI). “Sob a influência de Wingate”, diz Pappé, “a Haganá rapidamente se converteu no braço militar da Agência Judaica, o órgão de governo da Palestina que afinal desenvolveu e implementou os planos para a tomada sionista da Palestina como um todo e a limpeza étnica de sua população nativa” (p. 36).

O treinamento oferecido por Wingate deu-se por meio da punição de aldeias árabes cujos membros participaram de revoltas. Em 1938, dez anos antes da fundação do Estado de Israel, os paramilitares sionistas experimentaram, sob Wingate, a tomada de um vilarejo numa "expedição punitiva". Conta Pappé: “Amatziya Cohen, que participou da operação, relembra o sargento britânico que lhes mostrou como usar a baioneta no ataque aos aldeões indefesos: ‘Creio que vocês […] são totalmente ignorantes, já que nem mesmo dominam o uso básico de baionetas no ataque aos árabes sujos: como podem pôr o pé esquerdo na frente?’, esbravejava ele contra Amatziya e seus colegas após retornarem à base” (p. 36). Os judeus de Israel se tornaram militares assim, treinando árabes com os ingleses, ou então na II Guerra Mundial, quando foram lutar também ao lado dos ingleses. A parte da Haganá que não foi para a guerra continuou “a monitorar e a se infiltrar nos quase 1.200 vilarejos palestinos que, por centenas de anos, salpicaram aquela terra” (p. 36).

Uma novidade muito importante trazida por Pappé foi o arquivo dos vilarejos mantido pelo Fundo Nacional Judaico (FNJ), o fundo sionista criado em 1901, generosamente abastecido pelos Rothschild, e responsável por comprar as terras da Palestina para criar o Estado Judeu. Segundo Pappé, durante o mandato, quem esteve à frente das atividades do FNJ foi Yossef Weitz. Não lhe bastava comprar terras: era necessário admoestar os judeus que não tinham coragem de expulsar aldeões das terras compradas. Ainda assim, ao fim do mandato britânico, o FNJ só conseguiu adquirir 5% das terras palestinas.

Espionagem, conspiração e massacre

Durante o mandato britânico (1920 – 1948), os paramilitares sionistas se dedicaram a fazer um inventário dos bens dos palestinos (móveis e imóveis), identificar os ricos, os que tomaram parte nas revolta de 36, mapear terras férteis e providenciar informantes. Pappé explica que “essa não era uma missão perigosa, pois os infiltrados sabiam que podiam explorar o tradicional código de hospitalidade árabe, até mesmo chegaram a ser hóspedes no lar do próprio mukhtar [uma espécie de prefeito]” (p. 41).

Em 1948, o protagonismo passa para o líder sionista e socialista Ben-Gurion. Imensa parte do trabalho de Ilan Pappé se baseia nos diários do líder socialista, que foi anotando as atrocidades que cometia sem demonstrar remorso algum. Os diários de Ben-Gurion estão publicados e não são nenhum segredo.

O mais importante é o Plano Dalet, D em hebraico. Ben-Gurion liderava um órgão secreto informal chamado “Consultoria”, que funcionava na “Casa Vermelha” em Tel-Aviv. A casa era de cor branca e seu nome devia-se à frequência de socialistas. O Plano Dalet consistia basicamente na limpeza étnica que foi perpetrada na fundação do Estado de Israel, que é descrita como “guerra de independência”.

Os maiores capítulos do livro consistem na descrição da limpeza étnica levada a cabo pelo Plano Dalet. Tem coisas horrendas como o envenenamento de fontes de água com tifo, bebês de crânios rachados, muitas escolas recém-abertas destruídas (os vilarejos prosperaram na II Guerra), adolescentes sequestradas e estupradas em bando por soldados etc. Pior: não raro, os fatos são conhecidos porque os culpados contaram e ficaram impunes, ou pegaram meses de cadeia.

O grosso da carnificina ocorreu na “guerra de independência” em 1948. O maior exército árabe da região, a vizinha Jordânia, foi neutralizado por meio de um acordo: os sionistas deram ao Rei Abdullah, da Jordânia, a esperança de anexar a Cisjordânia. Assim, durante o massacre, os exército jordaniano se circunscreveu à área que o rei tinha a pretensão de anexar. A Cisjordânia só não integra o Estado Judeu por causa dessa proteção. Já a Faixa de Gaza foi protegida por voluntários egípcios, especialmente os da Irmandade Muçulmana. Os aldeões eram, em sua esmagadora maioria, pacíficos. Segundo Pappé, há uma discrepância muito grande entre os discursos públicos de Ben-Gurion e as suas anotações privadas no diário. Em público, ele comparava os árabes aos nazistas e dizia temer um Segundo Holocausto. Em privado, ele estava tomando nota das conquistas, dos crimes de guerra, e indicando os próximos alvos, mirando os bens dos palestinos. E lastimava a índole pacífica dos aldeões, que dificilmente reagiam e não davam pretexto para uma ação enérgica que justificasse a limpeza étnica. Desde aquela época, o sionismo conta com a violência palestina como pretexto, e abusa do Holocausto para lavar os seus crimes.

Uma coisa que tornou a “guerra” ainda mais desigual foi a sanção imposta pelos países ocidentais à venda de armas para os árabes da região. Os árabes sofreram com elas; os sionistas, porém, recebiam da União Soviética o melhor armamento disponível e saíam fuzilando aldeões a esmo na calada da noite. No entendimento de Stálin, os árabes representavam o feudalismo atrasado, ao passo que os judeus sionistas representavam o progresso.

Blitzkrieg

No longo rosário de crimes revoltantes listados por Ilan Pappé (que fazem ferver o sangue do leitor), pode-se apontar um padrão geral de terrorismo cometido pelos paramilitares sionistas. A regra era chegar num vilarejo à noite e atirar a esmo, não interessando se iriam acertar mulheres e crianças. Os “homens” sobreviventes, de 10 a 50 anos, eram presos. Se os presos estivessem numa quantidade superior àquela de que os sionistas eram capazes de tomar conta, então eles matavam para reduzir o número de presos. E como eles tinham feito um trabalho de espionagem e plantado infiltrados, traziam um dedo duro de cabeça coberta para apontar, enfileirados, os homens que têm armas ou tomaram parte em revolta contra os britânicos. Pappé, sugestivo, chama essas triagens de “seleção” – que é o nome usado pelos nazistas para separar homens e mulheres, bem como os capazes de trabalhar dos incapazes de trabalhar (que eram mortos). Inclusive, os sionistas chegaram a usar os prisioneiros árabes em campos de trabalhos forçados.

Tanto para assustar quanto para evitar o retorno, os sionistas explodiam as casas dos palestinos – seja de surpresa, com gente dentro, ou depois de um Blitzkrieg que fez todo o mundo sair correndo, para que os palestinos não tenham mais para onde voltar. As famílias saíam deixando tudo para trás; ao entrar nas casas, uma paramilitar de origem russa olharia para os pratos de comida à mesa abandonados e se lembraria dos lares judaicos abandonados às pressas em pogrons.

Diferentemente dos nazistas, os sionistas não construíram sistemas ferroviários para despachar os indesejáveis. As expulsões obrigaram os palestinos sobreviventes a caminhar a pé em direção à Cisjordânia e à Faixa de Gaza. Nem todos tiveram condições de fazê-lo, e esses morreram.

O evento chamado pelos israelenses de Independência de Israel é conhecido pelos palestinos como Nakba, “catástrofe” em árabe – portanto sinônimo de Shoá, “catástrofe” em hebraico, que é como o Holocausto é conhecido nessa língua.

O ambientalismo a serviço do negacionismo

Obviamente, os palestinos querem o direito a voltar para casa. Gaza tem uma densidade populacional maior do que a de Tóquio, em parte, por ter recebido os refugiados da Nakba. Assim, além de explodir as casas, o FNJ transformou grandes conjuntos de vilarejos em reservas ambientais: plantaram bosques de pinheiros, para dar um ar europeu à região, e posam de grandes ambientalistas, mesmo que tenham destruído quase toda a vegetação nativa.

O esforço ambientalista foi acompanhado pelo esforço acadêmico de fabricar uma origem judaica para as localidades. As ruínas de um kibbutz que deu errado e as de um prédio antigo de origem desconhecida são apresentadas, nas plaquinhas do parque natural, como ruínas judaicas de tempos bíblicos e talmúdicos. Os hipsters vão lá para relaxar e plantar legumes bíblicos e talmúdicos nos “pulmões verdes” de Israel.

As frutíferas que restaram são testemunhos dos bustans dos palestinos, mas são apresentadas nas placas dos parques como selvagens. Segundo Ilan Pappé, além de ocular os vilarejos e impedir (com lei ambiental) que os palestinos sonhem em voltar para lá, os parques ambientais construídos pelo homem têm a função de corroborar o mito sionista segundo o qual a Palestina era um deserto que os judeus fizeram florescer.

Ilan Pappé explica que os sionistas têm uma verdadeira engenharia social, e a maioria dos judeus israelenses acredita piamente nessas coisas. Ele mesmo manifesta vergonha por não ter identificado ruínas de vilarejos antes, perto de sua casa. Às vezes os restos dos vilarejos estão bem na vista, como a casa de um mukhtar que foi transformada na casa dos professores da Universidade de Tel-Aviv.

Pappé diz que, se as universidades de Israel fossem sérias, estariam calculando quanto que têm que devolver aos refugiados palestinos. Como vimos com Norman Finkelstein, um problema legado pelo nazismo é o da restituição do dinheiro das vítimas do Holocausto que ficou nos bancos ou foi confiscado (e os ongueiros deitaram e rolaram). Os palestinos têm um problema similar: “o retorno ou o reassentamento [dos palestinos] não eram os únicos assuntos. Também havia a questão do dinheiro expropriado de 1,3 milhão de palestinos, ex-cidadãos da Palestina do Mandato, cujas finanças estavam investidas em bancos e instituições, que foram todas tomadas pelas autoridades israelenses depois de maio de 1948” (p. 247).

O FNJ e o problema demográfico

Quando a Palestina foi conquistada, a esmagadora maioria das terras foi para o FNJ. Este costumava fazer duas coisas com grandes lotes: destinar as terras para kibbutzim ou para parques ambientais. Além da função negacionista, essa segunda escolha tem uma outra função muito importante: Israel quer se legitimar alegando ser um regime democrático. O sionismo só se mantém numa sociedade democrática se os nativos compuserem uma minoria. Por isso, eles precisam induzir a migração e a natalidade – mas não dão conta, já que os poucos palestinos que conseguiram cidadania em Israel (os “árabes israelenses”) têm natalidade superior. A solução tem sido, ao menos em parte, o movimento de proselitismo judaico, inédito em tempos modernos, que faz com que gente como esses bôeres da África do Sul se convertam ao judaísmo e ganhem o direito de “voltar” para Israel.

Vou citar um trecho que dá uma ideia do clima da opinião de Israel na década de 70: “A desjudaização [de certos vilarejos] era parte de uma batalha em curso, feita por Israel contra a ‘arabização’ da Galileia – na visão de Israel. Em 1976, o funcionário mais alto do Ministério do Interior, Israel Koening, chamou os palestinos da Galileia de ‘câncer no corpo do Estado’, e o chefe do estado-maior israelense, Raphael Eitan, abertamente referiu-se a eles como ‘baratas’” (p. 223). Não acreditem em mim, perguntem a Flávio Gordon quem costumava se referir a uma etnia como câncer no corpo do Estado pouco mais que 30 anos antes disso. A suposta unicidade do Holocausto, um dogma sionista, transformou os judeus num povo com carta branca para ser racista e deu a Israel carta branca para ser genocida. Se Israel jogasse uma bomba atômica em Gaza (como um ministro recentemente aventou e pouco veículo ocidental noticiou), choveriam colunistas e jornalistas de direita justificando, dizendo que Israel tem o direito de se defender (que aliás era um mantra de Obama). Gaza é um dos lugares mais densamente povoados do mundo, com uma alta e atípica proporção de mulheres e crianças. Quanto ao hábito de apontarem o aumento populacional em Gaza como prova de que não há genocídio, sugiro que leiam esta coluna de Thiago Braga sobre a fome na Ucrânia para pararem de repetir falácia soviética.

Mas voltemos a Pappé. Será que a sociedade israelense melhorou no século XXI? Não. Enquanto Pappé escrevia, os israelenses debatiam abertamente o “risco demográfico”. Pappé: “A limpeza étnica da Palestina que Ben-Gurion instigou […] garantiu que a quantidade de palestinos fosse reduzida a menos de 20% da população total do novo Estado judeu. Em dezembro de 2003, Benjamin Netanyahu reciclou as estatísticas ‘alarmantes’ de Ben-Gurion: ‘Se os árabes de Israel conformarem 40% da população’ – Netanyahu dizia – será o fim do Estado judeu.’ ‘Mas 20% também é um problema’, acrescentou. ‘Se a relação com esses 20% torna-se um problema, o Estado tem o direito de empregar medidas extremas.’ E não continuou o raciocínio” (p. 285).

A população endossa essa visão, e em 2006 Pappé dizia que quase todos os parlamentares israelenses se elegeu prometendo resolver “o problema demográfico”, à exceção de 10 membros de partidos árabes e dois “excêntricos judeus ashkenazi ultraortodoxos” (p. 285). Outra vez, que sociedade fanatizada e racista nos lembra essa história?

Para atender a esse tipo de anseio, em 2003 o parlamento “passou uma lei que proibia os palestinos de conseguirem a cidadania, a residência permanente ou mesmo ou mesmo temporária quando fossem casados com cidadãos israelenses. Em hebraico, ‘palestino’ sempre significa palestinos morando na Cisjordânia, na Faixa de Gaza ou na diáspora, de forma a diferenciá-los dos ‘árabes israelenses’, como se não fossem todos parte de uma nação palestina” (p. 284). Por isso, a polícia invadiu as casas dos “árabes israelenses” para fazer uma batida, prendeu 36 mulheres e deportou 8 para a Cisjordânia: “Algumas delas estavam há anos casadas com homens palestinos de Jaljulya, algumas estavam grávidas, algumas tinham filhos. Foram abruptamente separadas dos seus maridos e crianças” (p. 283).

Esse é um jeito de diminuir a presença árabe em Israel. Outro é pelo controle de terras: mais de 90% da terra em Israel é do Estado e está sujeita à regulação do FNJ, que proíbe a “venda, arrendamento e subarrendamento da terra a não-judeus […]. O objetivo primordial dessa legislação foi impedir os palestinos de de Israel de conseguir – por compra – a propriedade de suas próprias terras ou do seu povo” (p. 257).

Agora o leitor sabe

Diante dessa situação, o povo palestino só não se tornaria violento se fosse integralmente composto por anjos em vez de seres humanos. A solução proposta por Pappé é discutir a paz reconhecendo a Nakba, o direito dos palestinos ao retorno e a criação de um único Estado democrático que não discrimine os cidadãos. Caso isso não fosse feito, o futuro seria nefasto: “Os ataques de Israel a Gaza e ao Líbano no verão de 2006 indicam que a tempestade já está acontecendo. Organizações como o Hizbullah e o Hamas, que ousam questionar o direito de Israel a impor sua vontade unilateralmente sobre a Palestina, enfrentaram o poderio militar israelense e, até o momento, enquanto escrevo, estão conseguindo resistir às investidas. Mas isso está longe de acabar. […] o risco de um conflito e de um derramamento de sangue ainda mais devastadores nunca foi tão alto” (p. 296).

Por último, conto que a última coisa que fiz antes de sentar para escrever este texto foi ler a polêmica da Folha de S. Paulo entre Arlene Clemesha, professora de História Árabe da USP, e Leonardo Avritzer, cientista político da UFMG. Até onde eu saiba, os dois de esquerda. O texto dela foi de especialista e tratou da limpeza étnica como limpeza étnica. O dele foi uma empulhação na qual eu dei ctrl F para ver se ele falava de Pappé ou não. Não falava. A tréplica de Arlene Clemesha comentava justamente isso: ele ignora a decisiva pesquisa de Pappé.

O leitor agora sabe dos fatos apresentados. Só continua dando apoio moral à escalada possivelmente genocida da limpeza étnica se quiser.

Conteúdo editado por:Jônatas Dias Lima
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