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Cientista nazista medindo o crânio de uma cigana, em 1938
Cientista nazista medindo o crânio de uma cigana, em 1938| Foto: Wikimedia/commons.wikimedia.org/wiki/File:Bundesarchiv_Bild_146-1986-044-08,_Stein-Pfalz,_Eva_Justin_bei_Sch%C3%A4delmessung.jpg

Hoje continuamos a correspondência com Drieu Godefridi, filósofo do direito formado em Sorbonne, cujo livro O Reich Verde foi recentemente traduzido no Brasil. Como vimos, ele manifestou ceticismo quanto a explicações gerais que presumam que "tudo está ligado". Segui então perguntando pelas causas do progressismo, já que de fato a uniformidade dessa manifestação político-cultural que cruza os continentes inalterada me espanta.

Pergunta sobre as causas do progressismo

É possível fazer um paralelo entre o comunismo e o progressismo (chamemos assim este conjunto ideológico anti-humano) enquanto fenômenos sociais: tipicamente, os grupos sociais que eram comunistas ontem são progressistas hoje. Mas à época do comunismo havia uma potência central que podia explicar a irradiação quase uniforme do comunismo. Se um comunista europeu soava igual a um comunista africano ou americano, podia-se explicar o fenômeno pela influência direta da URSS. No entanto, o mesmo se passa no caso do progressismo -- ou é ainda pior, já que o comunismo abarcava mais vertentes adversárias e expressivas (vide o estalinismo e o trotskismo, por exemplo). A uniformidade do progressismo é inacreditável. Assim, a explicação mais intuitiva é perguntar cui bono e atribuir-lhe a causa. Respondo que o progressismo é bom para quem quiser criar monopólios, pois as quotas para LGBTQIAP+, e outras similares, geram custos adicionais que não podem ser pagos pelos pequenos. Posso então fechar a sua padaria por transfobia.

No entanto, se considerarmos que o progressismo não é causado por uma grande planificação central, teremos de procurar pelas causas nas mentalidades. Poderemos atribuir a um mal social ou moral a condição de causa primeira e depois acrescentar os monopolistas como atores sagazes, porém secundários, que usam essa fragilidade social a seu favor. Ainda que contraintuitiva, não é má ideia, e pode ser usada para explicar também o comunismo, colocando a URSS como um ator sagaz que usava a confusão espiritual da juventude urbana e escolarizada. Era o tipo de abordagem usual na literatura russa.

Você pensa numa explicação desse tipo?

Resposta

Suas questões são bem interessantes e as respondo sem demora:

1. O que explica a relativa coerência dos comunismos é o papel da URSS, você tem razão; mas também, e de início, o papel da obra de Karl Marx (mais Friedrich Engels). Falando em termos doutrinais, o comunismo sempre foi um marxismo, e não se conhece experiência comunista que não tenha reivindicado a obra de Marx. Ora, não há nenhum equivalente doutrinal desse "farol" do comunismo naquilo que você chama de progressismo contemporâneo. A questão só fica mais interessante!

2. Antes de respondê-la, uma precisão terminológica: lastimo fortemente que tenhamos relegado à esquerda o belo nome do progressismo. Por conta própria, e ao exemplo de Friedrich Hayek, eu sou 'progressista' no sentido preciso de que eu aprovo e celebro os imensos progressos tecnológicos dessa civilização que o seu continente e o meu partilham. Parece-me um erro deixar nas mãos dessa esquerda extremista e regressiva o nome de progresso, bem como o de liberal. (Liberal, como você sabe, designava originalmente, tanto em inglês como em francês, os partidários do free-market [livre mercado]. Hoje, ‘liberal’, nos Estados Unidos, designa exclusivamente a esquerda, e até os marxistas!)

3. Me parece que a diferença maior entre a época da URSS e a nossa é a velocidade na circulação da informação. Uma campanha de desinformação made in URSS levava meses para ser fomentada; depois, meses, e às vezes anos, para ser posta em funcionamento. Nos nossos dias, bastam umas horas para que uma ideia, um meme, uma (des)informação dê várias voltas no planeta e se imponha em nossas telas, inclusive a sua e a minha. Mas o que explica a relativa uniformidade desse novo esquerdismo, na minha humilde opinião, é que à matriz soviética se sucedeu a matriz norte-americana. Dói-me escrever isto, mas os Estados Unidos são hoje o coração cultural — no sentido gramsciano — e a matriz palpitante e temivelmente fecunda das piores derivas desse novo esquerdismo. Isso em todos os níveis: ideologia de gênero, neorracismo, ambientalismo. Só um exemplo: faz meses que, nos Estados Unidos, a esquerda impõe a ideia de que um homem pode estar grávido do mesmo jeito que uma mulher. Nada na Europa. Seis meses depois, a mesma ideia se impõe por toda parte na Europa. E é só um exemplo em mil. Estão derrocando estátuas nos EUA? Apostemos que as estátuas também vão tremer sobre seus pedestais na Europa! O que é verdadeiro quanto à Europa provavelmente o é para os outros países do orbe "ocidental" no sentido civilizacional (Austrália, Nova Zelândia, América do Sul etc.) A matriz cultural desse novo esquerdismo é norte-americano, assim como a matriz cultural do século XX era soviética.

Pergunta sobre a especialização temática

É sem dúvida uma explicação simples e plausível. E é compatível com a teoria de John Gray das religiões apocalípticas: após a queda do Muro de Berlim, os EUA se tornaram o novo farol do Fim da História, e um outro hegeliano -- Francis Fukuyama -- se tornou o profeta oficial. O mundo inteiro caminhava "inexoravelmente" rumo a uma democracia americana e uma economia de mercado; a paz seria eterna.

Quanto ao nome, Thomas Sowell disse que os progressives são como as firmas falidas que mudam de nome para escapar das cobranças. A infâmia racista e eugenista da Progressive Era fez com que os progressives se chamassem de liberals. Assim, é por haver existido um movimento com esse nome que eu o uso. Quanto à história americana desse movimento, acho-a bem explicada em Liberal Fascism, de Jonah Goldberg. Mas ele tomou essa expressão de H. G. Wells, um inglês bem importante. Seria muito conveniente uma história completa dessa ideologia de origem anglófona que teve relações estreitas com o nazismo.

Hoje os EUA são mesmo o novo centro de um império cultural à Gramsci. E é interessante notar que diferentes aspetos de sua ideologia são enfatizados em diferentes países. Suponho que o mais importante no Canadá seja o gênero; na Europa, o ambientalismo. Aqui, é a raça. Desde a II Guerra o Ocidente sabia que o Brasil não tinha segregação. A FEB reuniu homens de todas as cores e eles trabalhavam como amigos. Depois a UNESCO convidou Gilberto Freyre, um antropólogo cultural contrário ao eugenismo e ao racismo, para coordenar um estudo que faria do Brasil um exemplo de "relações raciais" para o mundo. Desde a influência da Fundação Ford, porém, é preciso dizer que Gilberto Freyre é racista e que o Brasil tem um "racismo velado" pior do que o racismo dos EUA. Florestan Fernandes (um sociólogo comunista da USP) se tornou o pensador racial oficial. Mas havia um outro antropólogo de esquerda, Darcy Ribeiro, que endossava as teses de Freyre relativas à ausência do racismo propriamente dito no Brasil.

Na nova fase americana da esquerda global, é obrigatório introduzir affirmative action em tudo: no começo, na universidade; agora, no dinheiro que os partidos políticos gastam com os candidatos. Há um grande problema: não dá para dizer sempre, no Brasil, se alguém é branco ou negro. Como resolver? No começo, não tinham coragem de propor tribunais raciais, e as universidades criaram o sistema de autodeclaração. Sem surpresas, mesmo os brancos de olhos azuis se declararam negros. As universidades então criaram as "comissões de heteroidentificação de autodeclarações" -- i.e., tribunais raciais -- para decidir se o indivíduo é branco ou negro. No primeiro ano, dois gêmeos idênticos foram declarados branco e negro pelo tribunal racial da UnB.

O Brasil tem uma Constituição (de 1988) antirracista, então a questão foi levada ao Supremo Tribunal, que interpretou as quotas raciais como constitucionais. No entanto, essa sujeição do político ao judiciário parece já um sintoma da influência dos EUA. Essa sujeição foi notada por Tocqueville, bem como a isolação entre a administração e a política. Não creio que o povo que elegeu Trump seja progressive, mas creio que os administradores sejam. Com juristas e burocratas autoritários, é possível, nesse sistema, subjugar o povo.

Assim, é plausível dizer que a democracia dos EUA degenera por causa dessas duas particularidades, e que a força desse país exportou os vícios de seus sistema político?

Resposta

1. Isto que você escreve sobre a especialização dos nossos continentes nos diversos registros desse novo esquerdismo é bem exato: "é interessante notar que diferentes aspetos de sua ideologia são enfatizados em diferentes países. Suponho que o mais importante no Canadá seja o gênero; na Europa, o ambientalismo. Aqui, é a raça." É isso mesmo. O ecologismo é provavelmente a única variante desse novo esquerdismo na qual a Europa ocidental possui uma distância de vantagem sobre os Estados Unidos. A União Europeia, enquanto construção burocrática não democrática, se presta maravilhosamente à imposição de uma agenda ecologista extremista. Está muito claro que é o caso dos nossos dias, sob a influência do Comissário europeu Frans Timmermans, provavelmente o pior extremista que chegou ao poder na Europa Ocidental após 1945. Esse socialista holandês convertido ao ecologismo fanático é a encarnação perfeita da tese que defendo em O Reich Verde.

Continua sendo verdade que o sol último desse novo esquerdismo é norte-americano. Não nos esqueçamos do que distingue os EUA da Europa, bem como da América do Sul: a força. Setecentos bilhões de dólares de orçamento militar anual: a caldeira norte-americana desse novo esquerdismo se apoia sobre um poder sem igual na superfície do globo e sobre o impacto massivo de sua indústria cultural sobre nossas cosmovisões nacionais.

2. Sua descrição dos malfeitos do neorracismo da esquerda contemporânea também é perfeita. Como descrevi no meu ensaio Estampillés — essai sur le néo-racisme de la gauche [Carimbados: Ensaio sobre o neorracismo da esquerda], levar em conta o fator racial leva necessariamente às consequências que você descreve: tribunais raciais. Vão chegar a medir os crânios, como faziam os nacional-socialistas alemães, para certificar a raça dos candidatos à universidade? Costuma-se esquecer, mas o nazismo não era um "white supremacism" [supremacismo branco], senão um "aryano-supremacism" [supremacismo ariano], i. e., eles tinham "o Ariano" como uma raça superior a todas as demais. No começo e antes de todos, o Eslavo, que é tão branco quanto possível. Os cientistas nazistas consideravam o Eslavo como uma espécie de animal mal-evoluído. Mas como era tão branco quanto um alemão, amiúde louro e de olhos claros, os nazistas tomaram de empréstimo ao teórico francês Vacher de Lapouge sua teoria de raças baseadas na forma do crânio. Acrescento uma imagem de uma dessas cientistas nazistas trabalhando, i. e., medindo o crânio de uma cigana, em 1938:

Stein/Pfalz Fo Fa. IV 1938. Fonte: Wikimedia
Stein/Pfalz Fo Fa. IV 1938. Fonte: Wikimedia| o.Ang.

E os que têm ancestrais mestiços? Esse neorracismo é tão grotesco em sua teoria quanto monstruoso em seus efeitos práticos.

3. A judicialização do político é uma coisa boa e ruim. Que há uma parte da judicialização consubstancial à separação dos poderes, no sentido de Aristóteles, John Locke, Montesquieu e Friedrich Hayek, é incontestável. Desse ponto de vista, é desejável, por exemplo, que uma corte constitucional esteja em condições de deter uma lei que viole a constituição. Sem isso, o próprio conceito de constituição é esvaziado de sentido e voltamos à democracia radical e arbitrária no sentido da Atenas do século V a. C. Por outro lado, o que é detestável é a chegada ao poder de uma geração de juízes, na Europa como nos EUA, que "legislate from the bench", i. e., que substituem com a sua visão do justo a dos representantes democraticamente eleitos. Só um exemplo: na Europa, toda a política do asilo se deu sob o golpe da jurisprudência extremista e delirante da Corte Europeia dos Direitos Humanos, e notadamente a decisão Hirsi, que impõe uma política "open borders" de fato, não seria desejada por 10% dos cidadãos europeus, caso lhes houvessem dado voz nesse assunto. Essa deriva não é só deplorável; ela ameaça o fundamento —  a definição — de nossas democracias. É sintomática desse ponto de vista a reação da esquerda Democrata à decisão Dobbs (2022) da Corte Suprema, que se limita a constatar que não existe direito federal ao aborto na Constituição — um truísmo — sem impedir de modo algum os Estados de praticarem o aborto caso esse seja o desejo democrático da maioria dos seus cidadãos. Os Democratas não podem aceitar isso, pois exigem que suas preferências subjetivas, até as mais extremistas, sejam impostas por todos os meios, sem se importar com a fraude dos mecanismos democráticos.

Agradeço por essa troca agradável que, espero, será tão interessante para você e seus leitores quanto para mim.

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