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obesidade
| Foto: Bigstock

Não sei vocês, mas eu fico prestando atenção ao carrinho de compras alheio quando estou na fila. Quase sempre está à frente uma gorda com salgadinhos no carrinho. Ou a Providência tramou para colocar quase sempre uma gorda com salgadinhos na minha frente na fila do caixa, ou tais personagens têm grande frequência estatística, de modo que basta entrar na fila do caixa para ter uma à frente. Fico com esta última hipótese. Noto ainda que o fato de a pessoa à frente ser quase sempre uma mulher é um indício de que o papel tradicional de cuidar da casa ainda cabe ao sexo feminino, a despeito do ingresso maciço da mulher no mercado de trabalho e do aumento do número de solteiros.

O que me levou a bisbilhotar o carrinho alheio foi justamente a intrigante frequência das gordas que não pareciam velhas o suficiente para terem ganhado peso na menopausa. Como o peso tem uma inegável relação com a alimentação, nada como uma boa olhadela no carrinho para encontrar uma explicação. Já vi até uma com o carrinho bem cheio tirar itens por falta de dinheiro. Dos dois frangões congelados, um sai. A vistosa quantidade de pacotes de salgadinho, porém, é sagrada. Tão sagrada quanto um maço de cigarros, talvez.

Conjecturo que o preço do salgadinho talvez seja parte da explicação. É barato, mas uma pessoa desregrada come de uma vez. Então precisa de mais e mais pacotes, de modo que o efeito sobre o orçamento acaba parecendo o do crack, já que a pedra é baratinha, mas ninguém usa uma pedra só. Some-se isso à incapacidade de fazer cálculos, e imagine-se a dimensão que um pacote de salgadinho diário terá sobre o orçamento e a saúde de quem ganha um salário mínimo.

Números do IBGE

Mas vamos aos números oficiais. Segundo o IBGE (vejam na página 37 deste PDF aqui), em 2019 mais de um quinto (22,9%) das brasileiras de 15 a 17 anos estava acima do peso, contra 16% do sexo masculino da mesma faixa etária. À página 39, encontramos as estatísticas de sobrepeso das demais faixas etárias, que vão de 18 a “60 anos e mais”. Ao todo, 60% da população brasileira está acima do peso, sendo 57,5% dos homens e 62,6% das mulheres (pelo jeito, os de IMC normal podemos nos declarar minoria e pedir cota). No global, a discrepância entre os sexos não é tão grande. É possível apontar uma faixa etária mais gorda do que todas as outras: 40 a 59 anos (70%), contra 57,6% do grupo entre 25 e 39 anos, e 64,4% do grupo de 60 para cima. Como a alteração no metabolismo faz muita gente engordar com a idade, deve haver uma explicação sociocultural para haver uma faixa etária mais gorda do que as demais. Em 2019, esse grupo gordo compreendia gente nascida entre 1960 e 1979 – época coincidente com a revolução sexual e o ingresso maciço da mulher no mercado de trabalho.

Isso fez com que não houvesse mais horários fixos para a família comer junta. Nesse ritmo, comer não é uma decisão individual. Suponho que isso iniba o hábito de comer por compulsão. O fast food costuma ser culpado pela engorda da população, mas no Brasil dessa época fast food era luxo e as famílias de classe média contratavam empregadas domésticas. As mulheres de classe baixa sempre trabalharam fora, então suponho que o que conte mais seja desvalorização do ritual familiar de sentar à mesa e comer juntos. A empregada observa que na casa da patroa cada um come a hora que quer e logo se empenha em levar esse hábito tão moderno para a própria casa, onde a avó na certa cuida de uma porção de netos.

A outra coisa interessante de notar é que a discrepância entre os sexos é acachapante entre os adolescentes e jovens adultos. Como vimos acima, na faixa de 15 a 17 anos a diferença é de 6,9% entre os sexos. Na faixa de 18 a 24 anos, a diferença é de incríveis 16%: 41,1% do sexo feminino contra 25,7% do masculino. Na faixa etária seguinte, que é exceção, há 1,3% a mais de homens gordos que mulheres. Nas demais, as mulheres ganham por 6% (40 a 59 anos) e 2% (60 pra cima). Ao que parece, portanto, as brasileiras nascidas a partir de 1995 têm forte propensão a ficar acima do peso. Isso tem que ter uma explicação sociocultural.

Impacto da oferta?

Voltemos às minhas elucubrações no caixa. Vendo a gorda cheia de salgadinhos, me ocorreu observar o preço das guloseimas. Reconheci junto ao caixa, nesta cidade do interior do Nordeste, num mercado frequentado pelos habitantes dos morros, as minhoquinhas gelatinosas e coloridas que eram um baita luxo na minha infância. Ia-se uma vez na vida e outra na morte ao cinema Multiplex, no shopping Iguatemi, famoso entre adultos por ter uma qualidade sonora diferenciada, e entre as crianças por vender doces coloridos e azedinhos, em vez de só pipoca. Ao menos eu queria ir pelas minhocas, não pelo filme. E não achava as benditas minhocas em lugar nenhum; eram as guloseimas do Multiplex.

O pacote de lentilhas no meu cesto estava pela hora da morte, mas as minhocas coloridas estavam uma bagatela. É claro que isso só vale comparando números, pois um pacote de meio quilo de lentilhas dá para várias refeições, enquanto que as minhocas não dão para nenhuma. De todo modo, o pobre que não pensa bem e quer agradar os filhos vai levar as minhocas – que vão durar muito pouco.

Toda essa afluência de oferta tem que ter algum impacto sobre as decisões. No documentário inglês do ano passado Tricked into Eating More, os vilões são a indústria alimentícia e os supermercados. Eles usam aqueles estudos em que os ratinhos trocam o vício cocaína pelo vício em açúcar. Volta e meia algum pesquisador usa ratos para constatar que ambas as substâncias são viciantes. Segundo a explicação lá deles, a indústria alimentícia cria alimentos feitos para viciar: são pouco nutritivos e ricos em substâncias que viciam o paladar. Achei particularmente relevante eles mostrarem o dinheiro que é gasto em pesquisas da indústria alimentícia para cativar o cliente, com um monte de cientistas de jalecos brancos olhando o aspecto de iogurtes e decidindo quantos corantes e emulsificantes devem ser testados. Muito se fala em fomento privado à pesquisa sem se levar em conta que pesquisas podem ser feitas contra o interesse da população geral, por corporações predatórias. Por outro lado, aqui, onde a suposta pesquisa é quase toda pública, fica-se fazendo o enésimo artigo para provar que o capitalismo é mau ou que Paulo Freire tem razão. Precisamos de pesquisa pública comprometida com o público, como a feita pela Embrapa no período militar.

Quanto aos supermercados, eles dispõem os produtos de maneira a desestimular a compra de produtos frescos e estimular o de produtos pré-preparados cheios de sódio, mais práticos e viciantes. Enquanto isso, a indústria vai criando infinitos sabores do mesmo produto, para que não haja o risco de enjoar. Assim, o cidadão que vai a uma gôndola de iogurtes hoje vai encontrar uma variedade muito maior do que na década de 90. E vai poder passar um bom tempo mudando de iogurte para iogurte, ou tomando mais iogurtes de sabores diferentes.

Paraíso da regulação

Os europeus são bem mais preocupados com alimentação do que os norte-americanos, e falar mal da alimentação deles por lá é um esporte supranacional. Outro esporte supranacional europeu são as regulamentações. Lá, onde há disposições burocráticas sobre a curvatura de pepinos e bananas, uma eurodeputada propõe que os rótulos (banana tem rótulo?) indiquem de um jeito bem chamativo a quantidade de gorduras, açúcares etc. As corporações alimentares foram contra, e o projeto dela não passou. Tentaram tratar a comida não-saudável como cigarro, e sobretaxar, mas não passou. Além disso, eurodeputados preocupados tentam convencer a ONU a considerar a obesidade um problema sanitário mundial, mas não conseguem, outra vez, por causa do lobby. Sem surpresas: qualquer leitor de Hayek sabe que mania regulatória serve para favorecer monopólio. É mais fácil os reguladores supranacionais instituírem o salgadinho como um direito das mulheres obesas a ser garantido pelo Estado e botar tropas da OTAN contra o país que não quiser comprar salgadinho para distribuir às mulheres.

Outro fato curioso mostrado pelo documentário é o processo sofrido pela Nutella por vítimas da sua propaganda: a empresa fazia um anúncio alegando que Nutella faz parte de uma refeição balanceada. Tanto esse episódio quanto a proposta dos rótulos presume que o cidadão seja um idiota. Sejamos francos: ninguém acredita que Nutella faz parte de uma refeição balanceada, nem que os alimentos super processados sejam saudáveis. Se as empresas fazem rótulos e propagandas alegando o contrário, é porque contam com a má-fé cúmplice do espectador, que precisa se autoenganar para encher a cara de besteira. Posso pegar qualquer cereal cheio de açúcar e escrever “rico em fibras”; ninguém queira me dizer que o consumidor gordo acha que vai ficar saudável só por comer algo “rico em fibras”. A demanda por mais e mais rótulos supõe um cidadão incapaz de pensar, que precisa colher a assinatura de um matemático depois de fazer uma conta de padaria.

Intervenção nenhuma?

Por outro lado, fato é que intervenções públicas sobre hábitos privados são admitidas. Usar camisinha é por exemplo. Não deixar água parada, idem. A campanha antitabagista fez com que o PCC ganhasse um bocado importando cigarros paraguaios, livres de sobretaxa, mas parece salutar a proibição de propagandas voltadas para jovens. Além disso, os hábitos alimentares de uma mulher dificilmente são pessoais: a mãe é quem costuma educar o paladar dos filhos. Assim, uma geração de jovens gordas é indício de uma geração vindoura de brasileiros gordos. Depois a expectativa de vida cai e ninguém sabe por quê.

Deveria haver, neste momento, um intensa investigação das razões da engorda feminina. A geração nascida a partir de 1995 é chamada de millenial, e se diferencia das anteriores por ter crescido com internet. Não cometerei extravagância nenhuma se eu disser que as redes sociais afetam mais a saúde mental das meninas do que dos meninos (este é um tema bastante insistido por Jonathan Haidt). Tampouco cometerei alguma extravagância se disser que ansiedade é prevalente em mulheres e está associada à engorda.

A repercussão dos dados sobre a engorda no Brasil foi tímida. Em geral, tentam explicá-la através do baixo preço de alimentos engordativos. Essa explicação não é suficiente, porque a engorda a partir dos millenials é um fenômeno feminino. Além disso, esses alimentos baratos só são baratos no curto prazo, como pedras de crack.

Mas a verdade é que os políticos já fariam alguma coisa se parassem de atrapalhar. Não é uma pouca-vergonha importar ativismo gordo?

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