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Barriga de aluguel: as consequências extremas da sociedade baseada em contrato
| Foto: Freestocks/Unsplash

Neste jornal, Adolfo Sachsida manifestou a sua ideia de que a liberdade de contratos não deve estar acima da moralidade e das tradições. Os exemplos trazidos por ele foram bem corriqueiros: antes tínhamos direito a viajar de avião sem pagar para escolher assento e levar bagagem, agora pagamos e a passagem não parece ter barateado; antes comprávamos um pacote do Office, da Microsoft, e éramos donos da versão que compramos, mas agora o Seu Bill Gates nos manda comprar anualmente a licença para usar um produto que já se pagou há muito tempo. São exemplos que têm o mérito de serem corriqueiros. Hoje quero mostrar que o problema da sociedade baseada em contrato é muito mais profundo.

Os EUA são pioneiros na possibilidade de gerar a vida humana por meio de contrato. Na Califórnia é possível, independentemente do seu sexo e do estado civil, encomendar um filho por meio de contrato, sem fazer sexo nem engravidar. A pessoa vai a um banco de óvulo ou esperma, escolhe o doador com base nos critérios que der na telha (há muitas informações sobre a pessoa, de modo que o banco é uma espécie de cardápio humano) e em seguida contrata, por meio de uma empresa, uma mulher para engravidar e entregar o bebê. A mulher está obrigada, por contrato, a entregá-lo, ou a abortá-lo – caso o comprador não queira um bebê com defeito, por exemplo, já que coisas como Síndrome de Down são descobertas ainda durante a gravidez.

O histórico

Hoje a Califórnia costuma ser lembrada como um estado gay friendly, mas é, muito antes disso, um estado pioneiro na eugenia, uma inspiração para os nazistas. E a Califórnia é, também, pioneira no reconhecimento de paternidade e maternidade dos contratantes em vez da contratada (isto é, da grávida). Há quem vincule isso às demandas do movimento LGBT, porque casais de homens se tornaram usuários desse tipo de serviço. Contudo, é possível atrelar também ao histórico eugenista, já que o bebê é uma mercadoria a ser entregue sem defeitos. Quanto ao uso de bancos de esperma, a Califórnia criou já na década de 80 um exclusivo para alto QI, o Repository for Germinal Choice, cuja prata da casa era o eugenista e supremacista branco William Shockley, pai do Vale do Silício.

De todo modo, a obscura história da geração de humanos por meio de contrato parece começar em 1976, quando um certo advogado Noel Keane, do Michigan, redigiu nos Estados Unidos o primeiro contrato de barriga de aluguel. Isso aconteceu dois anos antes do nascimento do primeiro bebê in vitro, uma inglesa chamada Louise Brown, filha de um casal que desejava muito um bebê, mas tinha problemas tubários.

Em 1986, a People noticiou, com nomes fictícios, o nascimento do primeiro bebê de barriga de aluguel no qual a grávida carregava um bebê feito com o óvulo de outra mulher. Portanto, quando o negócio de barriga de aluguel começou, havia uma inequívoca venda de criança por parte de suas mães biológicas.

A história dessa pioneira foi a seguinte: ela era casada (hoje precisamos especificar), sempre quis ter filhos com o marido, mas tinha problemas tubários e uterinos que não lhe permitiam engravidar, nem manter a gravidez. Após várias tentativas de fertilização in vitro, ela e o marido contrataram uma mulher pobre que já tinha filho e pagaram 10 mil dólares para que gestasse o bebê. Esta o entregou sem causar problemas jurídicos.

No mesmo ano, porém, nasceu a chamada Baby M., com uma história bem mais complicada. O Sr. Stern, por ser o último descendente de uma família exterminada no Holocausto, fazia questão de dar continuidade ao seu sangue. A sua esposa, porém, tinha esclerose múltipla, e isso trazia dois receios ao casal: temiam que a gravidez agravasse a doença e que o óvulo a transmitisse ao descendente. Este segundo motivo é eugenia pura e simples; no fim, o marido não queria “contaminar” a descendência com o sangue da própria esposa – e hoje se sabe que esclerose múltipla não é genética.

Por isso, o casal Stern pôs um anúncio oferecendo dinheiro a uma mulher que aceitasse gestar um filho para si, o que, como vimos, não era uma prática incomum. Quem atendeu ao anúncio foi a Sr.ª Whitehead, uma mulher pobre, casada com um caminhoneiro e mãe de dois. O seu óvulo foi inseminado com o esperma do Sr. Stern e ela gestou um filho que, portanto, era geneticamente dela mesma. Ela, com o apoio do marido, não quis entregar o bebê de jeito nenhum, e a família (agora com três filhos, dois do casal e um do cliente) fugiu do estado de Nova Iorque. Os clientes, que se sentiam no direito, chamaram a polícia – que os amparou. Houve uma batalha judicial no estado de Nova Jérsei que chegou à Suprema Corte estadual. No frigir dos ovos, o Estado de Nova Jérsei decidiu que nenhuma mãe, biológica ou não, está obrigada a entregar o próprio filho mediante contrato. Mas, porém, contudo, todavia, era do “melhor interesse” do Baby M. ficar com o casal Stern, que, àquela altura, já tinha formalizado o pedido de adoção pela esposa.

Em 1990, é a Califórnia quem dá a jurisprudência contrária em sua Suprema Corte. Uma mãe solteira aceitou gestar filho de casal, foi paga, mas não quis entregar o bebê. Nesse caso, tanto o óvulo como o esperma eram dos clientes. Em Calvert vs. Johnson, a Califórnia decidiu que contratos valem inclusive em casos de barriga de aluguel, indo na contramão de Nova Jérsei.

O debate entre “conservadores”

A reprodução assistida começou então como uma coisa de casais que não conseguiam conceber, ganhou destaque com celebridades (Michael Jackson nos EUA e Xuxa no Brasil), virou coisa de mulheres empoderadas (por quererem ser “mãe solo” ou por serem lésbicas), em seguida passou a ser direito de homens gays a constituir família (jogando para escanteio a pauta da adoção), e por fim voltou a aparecer na mídia como coisa de eugenistas ricos – vide Elon Musk e Paris Hilton. De todo modo, pela lei da Califórnia ninguém precisa ter nada além de dinheiro para encomendar um bebê, e por aí é de se perguntar se, barateando-se a prática, não será possível encomendar escravos pura e simplesmente. Em vez de comprar uma pessoa, o que a lei faculta é comprar os ingredientes para fazer uma pessoa e pagar a uma prestadora de serviços para gestá-la.

Neste mês, ocorreu um racha na direita dos EUA por causa de um tuíte no qual um jornalista gay de direita da Fox News chamado Guy Benson tuitou a foto do bebê que ele tivera por meio de barriga de aluguel e uma porção de nomes importantes do conservadorismo deu-lhe os parabéns publicamente. A direita nos EUA costuma dizer-se conservadora; assim, houve, ao menos em parte da direita dos EUA, uma verdadeira crise de identidade, já que não parecia ser possível definir o que eles entendem por conservadorismo.

Se a firme observância de contratos é o fundamento último da vida em sociedade, então não há nada de errado com o ato de comprar um ser humano por etapas alugando o útero de uma mulher. Não há nada de errado em inventar o jeito de fabricar uma criança sem mãe, numa espécie de fordismo aplicado a bebês. E uso “fordismo” com uma estreita analogia com a revolução industrial, mesmo: se no mundo pré-industrial o artesão se sabia criador de sua obra, na revolução industrial o operário era responsável apenas por uma etapa. Com o fordismo aplicado a bebês, uma mulher dá o material genético, outra gesta, e ainda outras criam (babás, enfermeiras, professoras…), de modo que nenhuma mulher possa apontar para aquele bebê e dizer que é inequivocamente seu.

Se a firme observância de contratos é o fundamento último da vida em sociedade, não temos por que impedir a escravidão nem a venda de órgãos. No entanto, o entendimento da vida em sociedade como um contrato é tão antigo quanto a modernidade, e tem em Rousseau o seu expoente mais notório.

Agora, se os conservadores ocidentais desistirem de lastrear a vida em sociedade num contrato, precisarão dar tratos à bola para manter a neutralidade moral que caracteriza o Estado liberal.

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