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A ex-presidente Dilma Rousseff, em 2018.
A ex-presidente Dilma Rousseff, em 2018.| Foto: Marcelo Andrade/ Arquivo/ Gazeta do Povo

É uma banalidade entre cientistas sociais apontar problemas em países de cultura católica e atribuí-los ao catolicismo. Os católicos, sempre dispostos a reconhecer a falibilidade humana, tomam para si sem chilique todas as críticas, sejam merecidas ou imerecidas. Por outro lado, quem fizer o mesmo com o protestantismo há de se deparar com uma torrente de reações emocionais. Como críticas não saem de máquinas, mas de cérebros humanos, o natural é que esculhambar católico seja rotina, e que se critiquem pouco os protestantes para evitar dor de cabeça (é mais fácil criticar protestante dizendo que está criticando os brancos, que aí a crítica passa por antirracismo). No fim, com todo o mundo falando mal dos católicos e bem dos protestantes, fomenta-se na América Latina o complexo de vira-latas. Os países de formação protestante seriam ricos e maravilhosos; nós, uns pobretões sem valor. É preciso corrigirmos isso para avaliar bem o que queremos para o país.

Os Estados Unidos foram formados por seitas protestantes, e são capazes de parar a República para averiguar o uso que Bill Clinton faz do próprio pênis. O Brasil é de formação católica da Contrarreforma, e o pênis do presidente só é assunto público se houver algum outro componente envolvido. Entre nós, foi o caso do embarque clandestino de uma dama no avião presidencial.

O protestantismo surgiu justamente com o combate à corrupção da Igreja. Não conheço um católico que aprove a venda de indulgências. Assim, é um traço cultural católico aceitar que até as coisas mais importantes são falíveis. A índole de certas culturas protestantes, por outro lado, é a de desprezar as coisas que se revelaram falhas, dar as costas ao passado e se proclamar no mínimo moralmente superior àquilo que foi descartado. Na cultura católica, a falibilidade é uma regra da qual só o papa escapa. Nas culturas protestantes, a infalibilidade deve ser uma meta do pastor, do presidente e até do verdureiro. Falho mesmo, com certeza, só o papa.

Corrupção é normal; roubalheira bilionária, não

Penso que a análise da complacência do Brasil com a roubalheira tenha de passar por essa cosmovisão católica. Por paradoxal que seja, penso que voltar a retórica contra a corrupção – e não contra a roubalheira – torne o brasileiro ainda mais propenso a aceitá-la. Pois, como diz o teólogo por Roma e eterno crítico-defensor do PT Wilson Gomes, a palavra corrupção “indica a mudança de um estado de coisas e pessoas, do positivo para o negativo: corrompe-se o que era puro, íntegro, perfeito. No cristianismo, é uma palavra religiosa: queremos a pureza, a corrupção nos tenta o tempo inteiro”. Até aí, partilho do sentimento e do raciocínio dele, pois discurso anticorrupção não me parece honesto. Quando vinha do PSDB, então… Mas ele continua: “Para funcionar politicamente, bastava decidir que o PT inventou a corrupção no Brasil e se tornou um mestre nessa arte” (Crônica de uma tragédia anunciada, p. 26). Discordo. Enquanto se bateu na tecla da corrupção, o PT ganhou eleição. O pensamento expresso por Wilson Gomes foi a desculpa ideal do PT para se apresentar como candidato viável desde o Mensalão: a corrupção não foi inventada pelo partido, é intrínseca à realidade brasileira etc. Batendo nessa tecla, o PT ganhou mais três eleições presidenciais. A mídia falava sozinha contra a corrupção e vendia o PSDB como solução para o problema. Certo esteve o povo em não acreditar na mídia. Na verdade, é bem provável que as acusações de corrupção tenham sido especialmente graves para o PT em 2005 não por termos um horror à corrupção, mas sim pelo fato de o PT ter se vendido como Partido da Ética até 2003. Essa memória estava fresca demais para que o PT pudesse se assumir como um adepto de Realpolitik. Restou-lhe dizer, bem ao estilo católico, que errou, sim, e que neste país se tem errado desde quando Cabral desembarcou. O PSDB, a seu turno, nos pedia que acreditássemos que São Paulo era um estado sem corrupção. Pedia demais.

As coisas só mudaram com uma brutal crise econômica induzida por Dilma Rousseff, bem como com o dimensionamento da roubalheira e o conhecimento dos destinatários. Com a Lava Jato, o brasileiro viu cifras bilionárias saírem do país rumo não só aos bolsos dos políticos, mas também de ditadores terceiro-mundistas. “Virar a Venezuela” tornou-se uma assombração para nós. Por “Virar a Venezuela” entende-se chegar à bancarrota, perder a soberania e deixar-se escravizar por Havana. Junto da turma do Foro de São Paulo, Geddel é um anjo.

O outro vício

O vício católico na política é perder o controle da situação, sendo cozido a fogo lento na esculhambação e no oba-oba. Por outro lado lado, se nos pusemos no lugar do protestante dos EUA, bem pensaremos que a simplicidade desse povo é de cair o queixo. Eles só se escandalizaram com Bill Clinton porque supõem que todos os presidentes casados – isto é, homens cheios de poder que vivem cercados por secretárias e puxa-sacos – se mantinham fiéis às suas esposas, sem nem uma puladinha de cerca. De nada adianta olhar para a história dos reis da Inglaterra. Na Europa há uma outra humanidade, corrupta e decaída, ao passo que na América todos são anjos até prova em contrário. E assim cada governador, cada autoridade, cada burocrata, não só é marido exemplar, como não desvia um centavo do dinheiro dos pagadores de impostos. Sabem a USAID, uma agência estatal dos EUA que se porta como uma ONG globalista no resto do mundo, promovendo “empoderamento feminino” e tudo? São uns anjos essas criaturas que pegam dinheiro dos EUA para gastar em locais remotos, de difícil fiscalização pela oposição.

Um bom “católico cultural” (digamos assim) deveria desconfiar desses santarrões e julgar que os EUA são falíveis. Se eles não têm escândalos de corrupção, isso é um péssimo sinal, pois quer dizer que está tudo muito bem escondido. Um mau “católico cultural” padece de complexo de vira-latas e se deslumbra com conversa mole. Infelizmente o PT não ensinou nada à maioria dos letrados, que continuam procurando algum grupo político que acabe com a corrupção, como se a corrupção pudesse ter fim um dia.

Não é razoável deixar a roubalheira se generalizar, nem é razoável esperar que um dia nem um único guarda de trânsito deste país continental peça propina para deixar de aplicar uma multa. Só se implementarmos uma ditadura totalitária com vigilância massiva; neste caso, a corrupção sai das pontas e vai para o topo do sistema.

O razoável é considerar que a corrupção sempre vai estar presente, e por isso mesmo deve ser combatida o tempo inteiro, como as sementes de baobá do Pequeno Príncipe. Ao contrário do que diziam os procuradores da Lava Jato, o fim da corrupção não é uma opção, e o Brasil não é um país fadado à desgraça por ter em sua formação os degredados, em vez dos puritanos virtuosos que foram para os EUA.

Deslumbramento com a Lava Jato

Em 1992, o Partido da Ética, que nunca fora vidraça, usava de todo moralismo para pedir o impeachment do presidente Fernando Collor. Em 2016, o Partido da Ética eram os operadores do Direito, e o PT ocupava o local de vidraça havia mais de 10 anos.

Como vimos, os petistas que roubaram do Brasil para entregar às ditaduras terceiro-mundistas foram em cana, ao passo que Dilma Rousseff, que deu 530 milhões de dólares da Petrobrás para uma empresa belga comprando uma refinaria nos EUA, passou pela Lava Jato com a pose de mulher honesta e os direitos políticos intactos. O PT deixou de ser o partido dos “machos tóxicos” que emulavam Fidel Castro e ficou com cara de PSOL. Hoje, até o MDB tem cara de PSOL, com Simone Tebet bajulando Djamila Ribeiro e dizendo que mulher vota em mulher. E mais: Lula entrou na cadeia como “macho tóxico” comedor de picanha e saiu amigo dos veganos, preocupado com a pegada de carbono.

Se os operadores do direito se portam como partido e impõem agendas sem voto, apegar-se ao combate à corrupção como fim em si mesmo torna-se uma via para o totalitarismo. Porque as leis definem o que é corrupção e o que não é; se as leis forem manipuladas para tornar crime entrar num curso com a cor de pele errada, “combater a corrupção” significa implementar tribunais raciais. Só podemos ter o combate à corrupção como uma coisa boa em si mesma se pensarmos segundo uma ideia de bem que independe de leis. Essa ideia não pode ser negativa; já o combate à corrupção é negativo em si mesmo. Se o combate à corrupção tiver sucesso, ele impossibilita que tal e tal coisa sejam feitas - mas não diz nada quanto às coisas que devam devem ser feitas. Isto, só a política resolve.

Mas, para continuarmos em Dilma e no reino das finanças que tanto encanta o lavajatismo, dou o exemplo de uma coisa que não é ilegal, mas causou mais prejuízos ao país do que a Odebrecht. É o Ciências sem Fronteiras (CsF), da Mulher Honesta.

Transferência de dinheiro brasileiro para Harvard

A Odebrecht desviou R$ 6 bilhões da Petrobras. O CsF, feito dentro da lei, custou ao país R$ 13 bilhões. O projeto criado por Dilma e encerrado por Temer consistia em mandar brasileiros para fazer graduação nos Estados Unidos e na Europa, pagando as mensalidades deles. As universidades não eram necessariamente baratas – estavam incluídas as da Ivy League –, nem necessariamente boas – estavam incluídos os community colleges estatais voltados para negros. Não conheço nenhum membro da comunidade acadêmica que tenha se responsabilizado pela ideia. Findo o programa, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, basicamente um sindicato de acadêmicos, não esboçou nenhuma defesa. Reproduziu em sua página a matéria da Fapesp, que, empenhando-se em encontrar alguém que defendesse o CsF, achou só uma associação de egressos do programa.

Ora, nunca na história da universidade brasileira existiu o plano de enviar graduandos para o exterior. Nunca, nunca mesmo. A universidade brasileira está fundada na tríade ensino, pesquisa e extensão. O pai da institucionalização da pesquisa brasileira é Anísio Teixeira, que criou a Capes para fazer programas de pós-graduação. O legado de Anísio se expandiu com os militares, que foram também os primeiros a fazer o Estado financiar mensalidades privadas. Mas fizeram isso mantendo o desenho de Anísio Teixeira, que deixava a pesquisa na pós-graduação pública. O financiamento era entendido como um meio de ajudar os pobres na ascensão social e dar ao mercado mão de obra qualificada.

FHC, o “neoliberal”, manteve esse financiamento. Por muito tempo o Estado financiar universidade privada era coisa “de direita”, enquanto que dar dinheiro à universidade pública era coisa "de esquerda". Com Lula, porém, o Estado brasileiro passou a financiá-las mais ainda, criando um programa que pagava bolsas integrais ou parciais (o Prouni). Com isto, não existe risco de as instituições de ensino levarem calote, porque quem paga é o governo. Foi nessa época que conglomerados estrangeiros passaram a comprar as faculdades locais e as unidunitês se multiplicaram.

Anotemos bem: Geisel criou um programa de financiamento estudantil chamado Creduc, que FHC reformulou e botou o nome de Fies. São programas de crédito para estudantes cursarem ensino privado. Quem paga é o estudante. O Prouni é um programa de bolsas; quem paga é o governo. Foi o primeiro programa de bolsas desvinculado de pesquisa.

O CsF não só foi um programa de bolsas desvinculado de pesquisa, como transferiu dinheiro brasileiro para o sistema de ensino da Europa e da América do Norte, sendo este último um continente com um país com sérios problemas relativos a endividamento estudantil. Segundo matéria do UOL de educação da época, a maioria das bolsas era para os EUA e Inglaterra. Mas Portugal era um país cobiçado por um motivo muito lembrado pelos críticos do programa: os graduandos brasileiros sequer falavam a língua dos países aos quais iam!

O resultado do CsF mais famoso foi o grupo de pagode Samba Rousseff. Diferentemente das cotas raciais, o CsF não tem nenhum acadêmico que faça campanha por ele. É um filho feio sem pai, em meio a um monte de filhos feios com pais orgulhosos (ao menos eu não achei; o máximo de apologia que vi do programa foi dizer que é pra agradar a classe média, que sonha em mandar os filhos para fora do país).

Tem que haver alguma explicação pouco republicana para o CsF. No frigir dos ovos, até esses bonitões de Harvard que ficam falando mal do Brasil embolsaram o nosso dinheiro. Se Dilma conseguiu fazer isso dentro da lei, isso só a torna mais perigosa do que os corruptos pegos pela Lava Jato.

De minha parte, eu chamo o CsF de corrupção sem pestanejar. Chamo-o de um escândalo de corrupção da educação. Cotas raciais são um escândalo de corrupção moral. Mas só posso fazer isso por ter muito claro que a corrupção não é a mesma coisa que afanar dinheiro público. Ao contrário do que ensina a Lava Jato, um país é muito mais que um cofre cheio de dinheiro público, e governar bem não é a mesma coisa que impedir o uso ilegal de dinheiro público.

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