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Eduardo Bolsonaro com Milei
Eduardo Bolsonaro postou foto no Twitter junto com Milei, feliz com sua eleição nas primárias.| Foto: Eduardo Bolsonaro/Reprodução do Twitter

Semana passada eu comentei que o anarcocapitalismo cresce, e informei que o seu ideólogo fundador defendia a liberdade de os pais venderem os filhos. Esta semana o noticiário foi gentil comigo: Javier Milei inesperadamente chegou à disputa presidencial argentina, deixando a esquerda e o bolsonarismo em polvorosa. De um lado, a grande mídia faz crer que Milei é mau como um pica-pau por ser de "extrema-direita"; de outro, os bolsonaristas têm certeza de que Milei é um herói por avançar contra a vontade da grande mídia. Mas eu digo que o noticiário foi gentil comigo porque agora eu posso dizer — ARRÁ! — que Milei é um anarcocapitalista e uma de suas opiniões "polêmicas" é que os pais, num mundo ideal, deveriam ter o direito de vender os seus filhos. Quem quiser conferir a declaração de 2022 pode clicar aqui. Conforme explicou, não é que ele vá se eleger presidente da Argentina e implementar o anarcocapitalismo — que exclui a própria instituição da presidência da Argentina. Em vez disso, ele pensa que "em duzentos anos", após mudanças sociais, dever-se-ia começar a discutir a liberdade de os pais venderem crianças. E ele mesmo, se tivesse um filho, não venderia. Vender ou não vender um filho deve ser coisa de foro íntimo, não parte de um código moral reforçado por lei.

A situação de Milei é análoga à dos políticos comunistas que disputam cargos eleitorais: em tese, tais cargos não deveriam existir; mas, dado que não vivemos em suas utopias, eles disputam os cargos mesmo assim, na esperança de promover mudanças socioculturais.

A pauta de costumes é outra coisa que une Milei à esquerda. Em matéria de 2018 sobre a sua vida privada, Milei resumiu sua vida política assim: "Você pode ir para a cama com quem você quiser." Basicamente, o ideário da Nova Esquerda surgida em 68, para a qual "é proibido proibir" sexo e drogas.

Os mesmos direitistas que veem Sound of Freedom só porque "irrita a esquerda" ficam eufóricos com Milei porque "irrita a esquerda"

Juntemos lé com cré. No mundo ideal do anarcocapitalismo, os pais teriam o direito de vender os filhos e os homens teriam o direito de ir para a cama com quem quisessem. Um economista (Milei é economista) sabe que a criação de mercado põe em marcha os mecanismos de oferta e procura. Se muita gente estiver disposta a pagar caro por criança, isso será um incentivo para produzir criança direto para a venda. Em entrevista a Jordan Peterson, Tim Ballard disse que criança é mais lucrativa que cocaína, porque dá para vender várias vezes. Tim Ballard foi agente especial de Segurança Doméstica dos EUA e é personagem do filme Sound of Freedom. Nesse filme que tanto atiçou a autodeclarada direita, revelam-se exatamente as consequências da mercantilização de seres humanos. Na entrevista a Jordan Peterson, Tim Ballard afirmou que existem na África fazendas de seres humanos, nas quais mulheres são sistematicamente estupradas para fabricar bebês destinados à exploração sexual e venda de órgãos. Diga-se de passagem, anarcocapitalistas também defendem a "liberdade" para vender órgãos, e Milei já se declarou favorável à criação desse mercado.

Ou seja: os mesmos direitistas que veem Sound of Freedom só porque "irrita a esquerda" ficam eufóricos com Milei porque "irrita a esquerda". São uns descerebrados destituídos de autonomia moral.

A maioria nem olha esses detalhes, mas vale registrar que, segundo os anarcocapitalistas, o cenário descrito por Tim Ballard não está conforme aos seus preceitos porque viola o lendário "PNA", isto é, o princípio de não-agressão. Primeiro cria-se uma sociedade armada para o abuso infantil e para a escravidão. Depois torce-se para que o PNA seja respeitado até pelos maiores poderes econômicos, armados de exércitos mercenários. Como garantir a validade do princípio? Aí eles não dizem, porque são irresponsáveis e levianos.

O que os macacos amestrados da torcida política não percebem é que "esquerda" e "direita" são termos que encobrem a unidade de uma ideologia que é vendida sob ambos os rótulos. Vejam a esquerda de 68, a Nova Esquerda. Ela foi uma ruptura com todas as esquerdas pré-existentes. Fosse marxista ou cristão, o esquerdismo estava sempre associado à reorganização do trabalho e da vida econômica. Com a Nova Esquerda, o assunto passou a ser sexo. E a pós-liberal Louise Perry mostra até que ponto os neoesquerdistas estavam dispostos a ir: "amiúde nos esquecemos de como eram diferentes as atitudes quanto ao abuso sexual infantil nos anos 70 e 80. Na Grã-Bretanha, os membros da Paedophile Information Exchange [Troca de Informação de Pedófilos] estavam em campanha aberta pela abolição da idade de consentimento e eram muito bem recebidos em alguns círculos do establishment, com o governo de Margaret Thatcher recusando os pedidos de banimento do grupo. Nos EUA, a NAMBLA (Associação Norte-Americana do Amor entre Homens e Meninos, em inglês) foi fundada no final dos anos 70 e atraiu o apoio de figuras como Allen Ginsberg e a feminista Camille Paglia. [...] Na Suécia [...], veio à tona em 2009 o fato de que a Biblioteca Real de Estocolmo tinha uma coleção de pornografia infantil adquirida (legalmente) entre 1971 e 1980 e que ainda era emprestada (ilegalmente) ao público no século XXI — uma desconfortável lembrança do passado hiper-liberal da Suécia. Em 1977, uma petição ao parlamento francês que solicitava a descriminalização do sexo entre adultos e crianças foi assinada por uma longa lista de intelectuais, incluindo Sartre, Derrida, Althusser, Beauvoir, Deleuze, Guattari e [...] Foucault." (The Case against Sexual Revolution, p. 56-57)

Essa petição de intelectuais franceses costuma ser lembrada pela direita para mostrar como a esquerda é má. No entanto, não só não há precedentes disso nas esquerdas pré-68, como direitistas liberais estavam se chafurdando na mesma lama na mesma época. Garante-se hoje que ser de direita é ser como esses caras aí que apoiam a liberdade de associação e expressão de pedófilos.

Se Miriam Leitão disser que é errado vender crianças, o homem livre e com caráter sólido não se sentirá compelido a dizer que vender criança é bom

É preciso prestar atenção ao seguinte: assim como no final da década de 60 a esquerda tradicional começou a ser substituída por uma ideologia estranha, obcecada por sexo, drogas e dinheiro, a direita tradicional começou a largar a bandeira de "Deus, pátria e família" para ser substituída pela mesmíssima ideologia obcecada por sexo, drogas e dinheiro. A diferença é só de ênfase. No que depender da propaganda, o eleitor irá escolher entre o "esquerdista" que diz que suruba com maconha é bom, e o "direitista" que diz que ele mesmo não faz suruba e não usa maconha, mas é inalienável o direito de defender e praticar tais coisas. Haja liberdade política!

Escolher entre Nova Esquerda e Nova Direita é escolher entre seis e meia dúzia. Não obstante, basta um infame qualquer se declarar "contra a esquerda" para granjear o apoio de figuras como Eduardo Bolsonaro, olavetes e não poucos liberais. Se Hitler vivesse hoje, uma porção de orangotango iria festejar a sua vitória na Alemanha só porque era um anticomunista. Até nos dias de hoje esses mesmos orangotangos são incapazes de dizer que Hitler era ruim sem dar tratos à bola para dizer que ele era "de esquerda". A depender da definição que se dê, Hitler era de esquerda, mas fato é que ele era a opção dos anticomunistas (conservadores inclusos) e era rechaçado pelos social-democratas. Usualmente diz-se que os conservadores são de direita e os social-democratas são de esquerda. Será possível admitir, então, que não necessariamente um campeão contra "a esquerda" não é necessariamente boa coisa?

Então, por gentileza, ponhamos a mão na consciência e evitemos agir como um bando de macacos diante de banana ao nos depararmos com o rótulo de "direita". Se um político defender que no melhor dos mundos os pais poderiam vender os filhos, esse político é horrível, e não interessa se a Folha, a Globo ou o PT acham-no bom ou ruim. Querer o contrário dos comentaristas da GloboNews é guiar-se pelos comentaristas da GloboNews. Quem tem autonomia moral não precisa ouvir William Bonner para saber se algo é bom ou ruim. Se Miriam Leitão disser que é errado vender crianças, o homem livre e com caráter sólido não se sentirá compelido a dizer que vender criança é bom.

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Post scriptum: Muito fofo o texto de Polzonoff contra "intelequituais" que desprezam o fanatismo dos bolsonaristas. Noto apenas que, se ele escolheu admirar o amor que os homens comuns sentem pelo Mito, poderá encontrar lazer diante de uma senhorinha apaixonada a tal ponto por Lula, que diz que, quando ele fala, o mundo se ilumina.

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