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escurecimento
O ex-presidente Lula (PT) e representantes do movimento negro.| Foto: Ricardo Stuckert/ PT

No dia do lançamento da chapa Lula/Alckmin, a apresentadora disse: “Quero fazer um escurecimento ou esclarecimento. Como nós respeitamos as leis, a legislação e as instituições, é importante avisar e deixar em claro, ou escuro, que hoje nós não estamos lançando candidaturas. Nós estamos lançando, sim, um movimento, o movimento ‘Vamos juntos pelo Brasil’! […] Eu tou aqui para dizer que vamos juntas, vamos juntos, vamos todas e todos em busca da felicidade. […] O que nos une é a empatia! O que nos une é o amor! O que nos une […] é garantir que todas, todos e todes brasileiros tenham direitos”. Vocês podem ver (ou não ver, se forem cegos, cegas e cegues) aqui.

Eu devo confessar que não fiquei muito surpresa, porque vi a expressão “nota de escurecimento” anos atrás, na boca (ou teclado) de gente de federal. No começo, dava para alegar licença poética, porque era coisa de gente de Literatura. Mas vocês sabem como é: no começo é uma licença poética, depois se torna etiqueta, depois aparece alguma norma, e no fim o cidadão é execrado em praça pública ou até preso se padecer de falta de licença poética. Botem no Google “nota de escurecimento” e vocês vão ver o que acabei de descrever: tem aqueles trocadalhos do carilho que acadêmico progressista acha super profundo e chama de poesia, mas o primeiro resultado que aparece é uma “nota de esclarecimento e/ou escurecimento” da UFRB de 2013, e não muito abaixo aparece a nota de escurecimento de um militante que acabara de sair da Secretaria de Igualdade Racial de Curitiba.

Ou seja, assim como tem que falar “todas e todos” para não ser machista, tem que escurecer ou esclarecer para não ser racista. É claro que em situações normais isso daria um esquete de humor. Se a distinta comunidade lusa e o IBAMA não objetassem, o esquete mostraria o Manoel, o Joaquim e um papagaio boca suja tentando aderir ao politicamente correto. Porque dizer que pretos não gostam de receber esclarecimentos por serem pretos parece coisa saída de piada de português. Dessa lógica, infere-se que negro apaga a luz quando quer encontrar alguma coisa. Bom, talvez os militantes do movimento negro acreditem mesmo nesse tipo de coisa. Não vou ofendê-los se disser que estão longe de serem brilhantes.

Não pensam, são paus mandados

Mas não é piada, e eu sei que, se eu fosse alguém respeitável nesse meio, poderia espalhar por aí que o uso da palavra “orientação” deve ser banida, pois é apologia do Império Japonês. Contaria então que este foi aliado da Alemanha Nazista e da Itália Fascista. Para se afastar do Eixo, é necessário falar “sulamericação” ou “africação” em vez de "orientação". “Ocidentação”, não, que é racista. A parte mais jovem da minha fina audiência ficaria embasbacada com minha cultura, pois ouviria pela primeira vez que o Japão era aliado de Hitler. Mas se eu, sendo eu, dissesse depois que “orientar” é palavra muito mais velha do que a II Guerra, isso só pode significar que sou uma pessoa perigosa, pois contesto os dogmas das pessoas boazinhas.

A experiência de começar a repetir por aí é tão boa quanto a de fazer papers à Sokal. Vejam o que dizia Chesterton em 1920. Ele comentava que é uma parte importante da educação mandar a criança para o cantinho, embora não existissem manuais explicando como se deve fazer isso. Na verdade, do jeito que a burocracia progressista se imiscuía na vida privada, em breve surgiria uma norma sobre o ângulo adequado do cantinho, ou talvez quisessem banir a prática alegando que ela pode causar estrabismo. Ele mesmo poderia contribuir para essa crença assim: “tenho certeza de que se eu repetisse ao acaso e em um número significativo de rodas de bate-papo, em pouquíssimo tempo isso se tornaria um dogma universalmente aceito da ciência popular. Pois o mundo moderno não aceita nenhum dogma que se apoie em algum tipo de autoridade, mas aceita qualquer dogma que não se funde em autoridade nenhuma” (A superstição do divórcio, p. 50). O exemplo mais gritante disso, ao meu ver, é a história fantasiosa de que “criado mudo” é uma expressão racista advinda do costume de deixar um escravo negro plantado à beira da cama de bico fechado. Não existe nenhum acadêmico que reivindique a descoberta dessa etimologia e tenha escrito um paper apontando suas fontes históricas. Ainda assim, a “primeira agência de fact-checking do Brasil” achou que devia alertar a plebe para o racismo contido nessa expressão. Ela fez uma semi-errata dizendo que a historinha era falsa, mas que não pode usar o termo mesmo assim.

Basta alguém "empático" repetir, repetir e repetir, e qualquer lorota vira communis opinio. A lorota do criado mudo foi parar até em livro didático. Em áreas menos dependentes de documentação que a etimologia, cientistas enviesados podem fazem experimentos e dar um jeito de confirmar a lorota da vez. Selecionando bem a amostragem, dá para concluir qualquer coisa. Como as pessoas que pensam diferente estão fora da academia, ninguém fará experimentos rivais.

Problema generalizado

A mania cientificista caminha de mãos dadas com o aumento do poder da burocracia, e à medida que esta vai ficando cada vez mais poderosa, as pessoas vão se importando cada vez menos com o raciocínio, já que a burocracia entrega a Verdade pronta. Por isso agem como cães amestrados, como bestas irracionais, julgando-se altamente científicas. Afinal, abanam o rabo e dão patinha para os prepostos da Ciência. No Ocidente, a praga só tem crescido e não tem coloração política definida. O nome que talvez melhor descreva este modelo de dominação talvez seja globalismo, no qual uma plutocracia anônima e apátrida aparelha os Estados nacionais do mundo e impõe sua ideologia progressista às populações governadas. Em vez de tanques e bombas, usam ONGs e judicialização. Seu alvo predileto dentro do Estado é o Judiciário, que pode fazer coisas tão extravagantes quanto inferir que o direito à privacidade implica o direito a abortar quando der na telha. Embora o globalismo não seja muito conhecido do cidadão comum, suas pautas são facilmente reconhecíveis como politicamente correto, ambientalismo à Greta Thumberg e epidemiologia à Átila Iamarino. A direita, sobretudo olavete, popularizou o alerta contra Agenda 2030 da ONU. Mas ainda se fala pouco de seu lado privado, que é o ESG: um mecanismo para tirar da bolsa e deixar sem crédito todas as empresas que não sigam a cartilha lacradora.

No Brasil, quem é um ativista do ESG é Sérgio Moro. Por ora, é difícil imaginá-lo dando um escurecimento a todes, embora já o tenhamos visto concordando com a criminalização tácita e antidemocrática do machismo.

Cá no Brasil, a esquerda pós-Lava Jato é pródiga em dar exemplos cômicos de politicamente correto. Mas este não é um problema específico do PT; é coisa de qualquer um que possa ser tratado como bom-moço pela imprensa comum.

Democracia como superstição

Os cães amestrados gostam de democracia; afinal, seus mestres os adestraram para isto. A um grito de “democracia”, os cães ficam pimpões sobre duas patas. Então consigo imaginar num futuro próximo um autodeclarado liberal brasileiro, muito amestrado, escrevendo algo assim para posar de virtuoso em rede social: “Estou chocade com as denúncias da Anistia Internacional sobre as violações de direitos humanes no Azerbaijão. O criminoso genocida, machista, Ilham Aliyev, negou às mulheres o direito de (re)existir. Todos os dias mais de mil mulheres se matam no Azerbaijão por falta de injeções de estrogênio e cirurgias afirmativas de gênero”. Na verdade, o presidente Aliyev apenas tinha se recusado a dar mudança de sexo grátis, e nisso ganhara simpatia de todos os radicais de extrema-direita no Ocidente. Assim, seria bonito condenar Aliyev e manifestar o apoio às tropas ocidentais levadas ao local para defender a democracia e os direitos humanos.

No que depender do cão amestrado, nossas leis serão alteradas na mão grande para botar na cadeia quem quer que viole o politicamente correto. Do jeito que as regras se multiplicam, vai ser crime o cidadão comum abrir o bico, já que não tem como se inteirar dos escurecimentos todos. Nossos partidos, que já não podem captar recursos de empresas, nem colocar candidatos do sexo e cor que quiserem, terão cada vez menos autonomia. Ao mesmo tempo, movimentos obscuros como o Acredito e o Renova BR podem fazer o que quiser na nossa política partidária, sem prestar contas a ninguém. Fala-se até em "Bancada Lemann", mas não tem problema porque é um bom-moço empresário.

Se o Brasil mantiver certas formalidades, como eleição e divisão dos poderes, e tiver apoio da mídia ocidental, está tudo bem! Mais importante que a correspondência entre a vontade do povo e o chefe da nação é o cumprimento de formalidades. Está tudo bem se o cidadão não tiver liberdade para dizer que mulheres têm vagina. O importante mesmo é que ele pode votar nos candidatos aprovados pelo TSE.

É hora de começarmos a falar em superstição democrática. Porque democracia não é uma série de formalidades, nem é um fim em si mesma. É um meio de preservar a liberdade. Pelo andar da carruagem, mais vale procurar liberdades numa monarquia absolutista do que nas ex-democracias do século XXI.

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