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Partidos e ideologias não garantem o caráter de ninguém, e mais vale dar poder a um homem honrado do que a um picareta que sempre terá uma doutrina para justificar as próprias ações.
Partidos e ideologias não garantem o caráter de ninguém, e mais vale dar poder a um homem honrado do que a um picareta que sempre terá uma doutrina para justificar as próprias ações.| Foto: BigStock

Volta e meia o brasileiro começa a falar mal de si na terceira pessoa. O brasileiro faz isso, o brasileiro faz aquilo, e por isso é que o Brasil não vai pra frente. Eu acho que o Brasil não vai pra frente porque o brasileiro tende a rotular as coisas “de brasileiro” de uma maneira pejorativa e às vezes falsa, sem se dar ao trabalho de julgar se é boa ou ruim. Querem ver uma “coisa de brasileiro” que é esporte nacional no Ocidente? Falar mal de si enquanto romanceia o outro. O europeu de gola rulê fica falando mal da técnica enquanto exalta feitiçaria; mal da democracia enquanto exalta ditaduras terceiromundistas; mal do patriarcado eurocêntrico enquanto bate palma pro terrorista paquistanês espancador de mulheres. E por isso é que a parte rica do Ocidente está como está: cheio de lacrador.

Por estas plagas, ao menos miramos em países democráticos e, até antes da pandemia, respeitadores dos direitos humanos. Mas daí não se segue que tudo o que se venda como bom de lá, seja, de fato, bom.

Tendo a pensar que o brasileiro elogia os vícios modernos da Europa, aos quais nosso país não aderiu por ser dado a arcaísmos. E eu acho que o arcaísmo mais salutar de todos é a aversão à impessoalidade na política. “O brasileiro vota em pessoas”, diz-se, “quando deveria votar em ideias!”

Da vereação à presidência, “o brasileiro” vota considerando a pessoa, o que não exclui o exame das ideias dessa pessoa. Mas aí cabem todos os arcaísmos relativos à honradez.

Esse princípio brasileiro é respeitado?

O brasileiro fala mal d’ “os políticos” de modo geral, impessoal, ao mesmo tempo que tem apreço especial pelos políticos em quem porventura vote. Seria o caso, portanto, de pensar que somos um povo esquizoide, em que só o meu político é bom e o dos outros é ruim.

Mas a verdade é que “o brasileiro” tinha bastante razão em falar mal d’ “os políticos” que estão no Congresso e câmaras estaduais, pela simples razão de que os esquemas de coligação eram uma maluquice tão grande, que o voto no homem honrado, no político diferente, era computado como voto no partido Tal, que a seu turno ia engrossar a coligação Unidos Venceremos. O brasileiro votava em lebre e elegia gato. Por isso faz perfeito sentido votar com gosto num político particular e reclamar dos políticos em geral, já que o político votado não é o político eleito.

Pela minha percepção, o fim das coligações malucas diminuiu as queixas genéricas do brasileiro contra os políticos. Agora fala-se da atuação particular de Fulano ou Sicrano. No âmbito bolsonarista, os deputados que se mantiveram fiéis à agenda que os elegeu vão se fazendo conhecidos nacionalmente por seus projetos. As redes sociais e os veículos que migraram para a internet ajudaram nisso. O maior exemplo desses novos tempos talvez seja a retransmissão da live de Bolsonaro n’Os Pingos nos Is: a rádio que migrou para a internet mantém uma audiência bem grande enquanto reproduz uma transmissão de político feita diretamente na internet. É como se A Voz do Brasil passasse na TV e fizesse bem à audiência. E esse mesmo programa, que alcançou dimensões nacionais, volta e meia recebe deputados e senadores que tratam dos seus projetos ou de suas posições particulares numa comissão parlamentar. Em vez de xingar “os políticos” de modo geral, o bolsonarista xingará os que muraram de lado após as eleições, tais como Joice Hasselmann, Alexandre Frota e Kim Kataguiri. Em tempos normais, essa mudança seria vista como um avanço da democracia.

Do outro lado, a situação era a mesma: deputados progressistas do PSOL e similares eram conhecidos nacionalmente por suas pautas e o esquerdista votava neles com gosto, embora falasse mal d’ “os políticos” de modo geral. Em 2014, lembro-me de puxarem os cabelos por o Brasil ter eleito “o congresso mais conservador da história” segundo algum cálculo aí. E é bem possível que isso tenha motivado o fim das coligações malucas, com a esquerda pensando que o povo só não elegia um monte de ativista LGBT (na época não usavam nem o Q, quanto mais o QUIABO) por causa das coligações. Senso de realidade nunca foi o forte deles.

Agora vemos uma reação. Por um lado, o DEM resolveu deglutir os ex-bolsonaristas junto com seu fundo partidário, criando um novo partido pela fusão com o PSL. Por outro, uma série de cotas para candidaturas, inspiradas em Ruanda, se empenha em tornar as eleições menos livres, e em minar a segurança jurídica dos mandatos. Quanto à inclusão de cotas raciais para as candidaturas, lembremos que nesse tipo de medida, cedo ou tarde, aparecem os tribunais raciais. Na prática, dá-se o poder de cassar mandatos a essa infame instituição, tão estrambólica em nossa ordem jurídica.

Julgar a pessoa é bom-senso

Renan Calheiros é Renan Calheiros, e vice-versa. É possível que ele faça alguma coisa útil pela República, assim como Eduardo Cunha era Eduardo Cunha e fez. No entanto, a atenção às pessoas de Eduardo Cunha e de Renan Calheiros impede que os tratemos como heróis.

Por ora, temos assistido à coroação de Renan Calheiros como herói nacional, um São Jorge a lancetar o dragão Bolsonaro, representante de todo o Mal e que deve ter um laboratório em Wuhan, já que parece responsável por todas as mazelas causadas pelo vírus. A ideia de que Bolsonaro é genocida serviu para lavar a imagem de Renan Calheiros perante parte do público. O antibolsonarismo é um baita refúgio para indivíduos de reputação duvidosa.

Já dizia Millôr Fernandes que o patriotismo é o último refúgio do canalha. A afirmação dele é econômica demais: todo e qualquer "ismo" é primeiro, enésimo e último refúgio de canalhas. Se os defensores de tribunal racial se refugiam justamente no antirracismo, podemos dizer que há limite para o engodo? Comunismo, liberalismo, conservadorismo, humanismo, bolsonarismo, antibolsonarismo: basta um "ismo" ter uma quantidade relevante de adeptos, e logo se tornam um potencial asilo de canalhas. Por outro lado, um homem cujo caráter esteja em evidência não terá por que tatuar um rótulo ideológico na testa.

Nesse quesito, o arcaísmo brasileiro é mil vezes mais sensato do que a modernidade europeia. Partidos e ideologias não garantem o caráter de ninguém, e mais vale dar poder a um homem honrado do que a um picareta que sempre terá uma doutrina para justificar as próprias ações.

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