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Buckley defendendo liberação de drogas em 1996.
Buckley defendendo liberação de drogas em 1996.| Foto: Reprudução/Internet Archive

Venho batendo numa tecla ultimamente: aquilo que hoje é vendido no Brasil como conservadorismo é, na verdade, fusionismo, uma ideologia patrocinada por ONGs que consiste em juntar o liberalismo econômico mais extremado à valorização de costumes tradicionais. No frigir dos ovos, é ser anarcocapitalista da porta de casa para fora e conservador da porta de casa para dentro, como se saíssemos de um planeta e entrássemos noutro ao ultrapassarmos a nossa soleira.

Pois bem, a face midiática dessa corrente é William F. Buckley Jr. (1925 – 2008), criador da National Review (1955), além de apresentador do programa de debates e entrevistas Firing Line (1966 – 1999). A trajetória de Buckley inclui ter sido agente da CIA (1947 – 1951); ter escrito, na própria National Review, defesas do direito dos brancos a se segregarem dos negros; ter, ao menos nominalmente, se empenhado sempre em limpar o “conservadorismo” do antissemitismo; e ter, mais tarde, apoiado “ações afirmativas” como um privilégio feito para reparar as injustiças cometidas contra negros no passado.

No entanto, a coisa mais curiosa para alguém que se apresente como um totem do conservadorismo contemporâneo é que ele tenha sido um constante defensor da legalização das drogas. Já candidato a prefeito de Nova Iorque pelo nanico Partido Conservador em 1965, opôs às leis antidrogas em vigência. Quem entender inglês e quiser ver com os próprios olhos Buckley defendendo a legalização das drogas pode clicar aqui e assistir a um programa de 1996, no qual o apresentador, um homem alinhado de meia idade, explica que Buckley é um conservador com opiniões muito diferentes no que concerne às drogas. De fato, Buckley dá uma explicação fatalista que hoje vemos na boca de psolista em época de campanha eleitoral: o uso de drogas é um dado, de modo que devemos adotar uma política de redução de danos e acomodar a sociedade ao fato. Todos seriam livres para provar drogas e os empregadores seriam livres para exigir testes de sobriedade dos seus funcionários (imaginem que maravilha os empregadores inspecionarem a vida médica dos seus empregados de modo recorrente, como na pandemia).

Mas esse ano, 1996, foi importante para Buckley nessa seara. Foi o ano em que defendeu abertamente a legalização das drogas – desde a mais leve, como a maconha, até as mais pesadas, como heroína. O marco de sua campanha pela legalização das drogas, porém, na certa foi a publicação editorial da National Review em 1996, intitulada “The war on drugs is lost”, ou seja, “A guerra às drogas está perdida”. Essa publicação editorial arrola uma série de textos em favor da legalização de drogas leves e pesadas. Você pode ver a versão arquivada aqui, ou uma versão incompleta na National Review.

Em seu próprio texto, Buckley chega mesmo a sugerir, do alto do seu conservadorismo esclarecido, a venda de drogas patrocinada pelo Estado: “Poupei-vos, bem como a mim mesmo, de uma finalização aritmética da minha investigação, mas os dados citados aqui nos ensinam que o custo da guerra às drogas é muitas vezes mais doloroso, em todas as suas manifestações, do que seria a liberação das drogas, combinada com uma intensiva educação dos não-usuários, e a intensiva educação feita para alertar aqueles que experimentam drogas. Vimos uma substancial redução no uso de tabaco nos últimos trinta anos, e isso não porque o tabaco se tornou ilegal, senão porque uma comunidade sensível começou, em números substantivos, a apreender os altos custos do tabaco à saúde humana, assim como, podemos presumir, um número crescente de americanos desiste de praticar sexo desprotegido e de usar agulhas contaminadas nesta época de AIDS. Se 80 milhões de americanos puderem experimentar drogas e resistir ao vício usando a informação publicamente disponível, podemos, com razoabilidade, esperar que mais ou menos a mesma quantidade resista à tentação de comprar tais drogas mesmo que elas estejam disponíveis numa farmácia federal a preço de custo.”

Creio que essa foi a primeira vez que um projeto parecido com o do Uruguai tenha sido proposto – com a importante diferença de que no Uruguai só se fez isso com a maconha. Pepe Mujica está à direita do ícone conservador norte-americano?

De todo modo, Buckley encerra o seu texto assim: “É ultrajante viver numa sociedade cujas leis toleram que os jovens sejam enviados a prisões perpétuas porque cultivaram ou distribuíram uma dúzia de onças de maconha. Gostaria que os bons policiais, em sua profissão vital, se mobilizassem ao menos para protestar contra tais excessos de tempos de guerra, o equivalente legal do massacre My Lai. E talvez dê seguimento, recomendando a legalização da venda da maioria das drogas, exceto para menores.”

Pois então, senhoras e senhores. Vocês podem ver que a ideologia patrocinada pelas ONGs norte-americanas bem conectadas com a inteligência dos EUA é, no frigir dos ovos, uma coisa só: a anulação da vida pública. A Nova Esquerda prometeu a libertação por meio da introspecção alcançada com sexo e drogas. Deu um fim à luta de classes e substituiu-a pela demanda por cabide de emprego em grandes empresas. Não se tratava mais de melhorar o salário do trabalhador, mas sim de anestesiá-lo com drogas e pornografia. Do lado racial (que é importante nos EUA), acabava-se com o combate ao racismo colocando um negro oficial, amestrado, para provar que a empresa não é racista, pois contratou um aspone negro que só fala bobagem e ninguém respeita.

Quem obstaria a esse mundo desordenado e de inversão de valores é a direita conservadora. Aí entra essa confusão, facilitada desde o Pós-Guerra até a Guerra Fria, entre anticomunismo e conservadorismo. Se um sujeito acha que pode vender a mãe, isso faz dele um anticomunista, não um conservador. O conservadorismo foi reduzido a uma estética afetada e pedante, de modo que é possível um “conservador” ter a agenda pública igual à do PSOL, desde que use gravata borboleta e aceite que os seus valores só são importantes em espaços privados. Voltaire teria dito: “Posso não concordar com uma palavra do que dizes, mas defenderei até a morte o direito de dizê-las.” O fusionista diz: “Posso não morrer de overdose em via pública eu mesmo, mas defendo o seu direito de morrer assim, porque não sou um comunista totalitário!”

Por último, apontemos algo que só sabemos graças ao Twitter, porque os jornais não dão: em 19 de março o diretor da CIA foi recebido no Brasil para tratar do “combate à desinformação e [do] fortalecimento das instituições democráticas.” A direita liberal se esgoela chamando só os BRICS de ditadura (embora Zelensky tenha suspendido as eleições indefinidamente e Trudeau seja o despotismo em pessoa), compara as prisões do 8 de janeiro ao Holocausto (sendo que o evento em Brasília causou muito menos mortes de civis que os ataques de Israel a Gaza), mas segue tratando a Inteligência dos EUA (que não muda com as eleições) como uma aliada. O mesmo diretor da CIA esteve no Brasil meses antes das eleições, em maio de 2022, para mandar o presidente não questionar o resultado das urnas.

De fato, a Inteligência dos EUA é muito boa em operações psicológicas, porque essa postura adotada por tantos brasileiros de direita não é do seu interesse, nem do interesse dos brasileiros em geral.

Conteúdo editado por:Jônatas Dias Lima
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