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A evolução do homem por Haeckel, em 1896.
A evolução do homem por Haeckel, em 1896.| Foto: Wikicommons

Por que a lei antritruste saiu de moda? O liberalismo de Hayek era favorável à lei antitruste. Foi só com a Nova Escola de Chicago, no final da década de 70, que o liberalismo passou a ser entendido como ausência de intervenção estatal. Ela foi tão especial assim porque conseguiu, em Continental TV v. GTE Sylvania (1977), convencer “cientificamente” o Supremo da ineficácia da lei antitruste. Quem manda nos EUA é o Supremo. Podemos especular sobre as razões que movem o Supremo, e com isso teríamos uma resposta à pergunta. Mas há vários tipos de respostas que se podem dar a uma pergunta. Ao perguntarmos sobre o porquê de os EUA terem derrubado Saddam Hussein, uma resposta válida é a do interesse pelo petróleo. É um objeto de muito interesse para analistas geopolíticos, mas eu não sou analista geopolítica.

Quando os EUA derrubaram Saddam, não disseram “vou derrubar aquele presidente e tomar conta do país porque ali há petróleo”. Isso seria inaceitável perante a comunidade internacional, e mesmo quem faz algo errado procura se sentir bem consigo mesmo. Então a desculpa dada importa. No caso, além da acusação falsa de posse de armas químicas, havia uma justificativa filosófica: implementar a democracia. O mundo dos homens é muito mais que matéria (petróleo), então é claro que as justificativas dizem muito sobre o que vai nas suas cabeças. Para dar uma resposta filosófica a essa pergunta, John Gray escreveu Missa Negra: Religião apocalíptica e o fim das utopias, no qual discorre sobre a transmutação do milenarismo cristão na ideia hegeliana, secular, de Fim da História. Com os marxistas, o Homem atravessaria um vale de lágrimas até fazer a Revolução e chegar ao comunismo, um milenarismo laico. Com os neoconservadores, o Homem atravessaria um vale de lágrimas até derrotar o comunismo e implementar democracias com livre mercado no mundo inteiro, e eis o seu milenarismo laico. Tanto Marx quanto Fukuyama (o guru do neoconservadorismo) eram hegelianos.

Petróleo era bom, claro. Mas o que estava em xeque era muito mais que petróleo: era uma nova visão milenarista do mundo.

Por que motivos filosóficos a lei antitruste saiu de moda?

Perfeição do mercado era perfeição da natureza

Por trás da demonização da intervenção estatal está a crença na perfeição do mercado. Nos últimos séculos houve uma série de movimentos que exaltavam o mercado em oposição ao Estado. Os primeiros de todos devem ter sido os fisiocratas franceses, que eram contemporâneos do Iluminismo e, portanto, anteriores à consolidação da Revolução Industrial. Eles exaltavam os fazendeiros como produtores de riqueza, defendiam o livre comércio e pregavam uma vida natural no campo como superior à das metrópoles. O maior nome do movimento é o de Quesnay.

O período do Iluminismo francês coincidiu com o triunfo da física newtoniana. Newton bebeu muito do estoicismo. Fez de Deus um grande relojoeiro; e do universo, um grande relógio, cuja perfeição se revela precisamente na ausência de intervenção para o seu funcionamento. A natureza tem suas molas e roldanas que funcionam mecanicamente graças ao seu engendramento perfeito e à sabedoria do seu Artífice. Nessa cosmovisão, faz sentido enxergar a riqueza como algo que o homem tira da terra, e a intervenção burocrática como algo corrupto e usurário. Os fisiocratas acreditavam, como diz o seu nome, no governo da natureza. O livre mercado seria algo natural e a riqueza vinha da terra.

Eles influenciaram Adam Smith, e o liberalismo econômico lhes deve muito.

De Malthus a Spencer

No final do século XVIII, quando a Inglaterra já vivia a Revolução Industrial, Thomas Malthus publicara a sua notória previsão de fome generalizada. A população cresceria mais que a produção de comida; assim, a fome seria inexorável, e por isso a Inglaterra deveria deter os alívios à pobreza existentes desde a Idade Média. O único efeito da ajuda seria a inflação. Vem dessa época a noção de que, quanto menos filhos tivermos, mais ricos seremos (é uma visão marcadamente urbana, já que na lavoura mais filhos são mais braços). O mundo é um depósito de recursos e, quanto menos gente houver para dividi-los, melhor.

O trabalho de Malthus teve profundo impacto sobre o anglicano Charles Darwin. Após os seus estudos, concluíra que o mundo é um depósito de recursos e os seres vivos evoluem enquanto lutam entre si para acessá-los e garantirem a própria sobrevivência. O mundo-relógio de Newton, tão inspirador para teólogos e cientistas britânicos, vem por água abaixo: o mundo na verdade é uma ordem aparente que brota do caos a cada momento. Parece-se mais com a fórmula “átomos e vazio” do epicurismo, teoria rival do estoicismo.

Da biologia, essa ideia voltou às ciências sociais por meio de Herbert Spencer, o pai do darwinismo social. Spencer também acrescentou algum conforto psicológico a essa cosmovisão ao introduzir a teleologia, isto é, a ideia de que há uma finalidade em todo esse processo aparentemente cego e caótico. O mundo não seria caótico e a natureza não seria cega; em vez disso, a natureza, sábia, vai purgando os piores e, nesse processo, cria os melhores.

O aspecto prático de Spencer coincide com o de Malthus: não devemos ajudar os pobres. Com Spencer, porém, não se trata mais de uma simples recomendação prática. Agora pode-se dizer que ajudar os pobres é algo contra natura.

A teoria caiu como uma luva no contexto cultural calvinista. Esta corrente teológica acredita que uma pequena parcela da humanidade está predestinada ao Reino dos Céus, enquanto que a maioria está predestinada a ficar de fora. A evolução pode ser interpretada como uma purga promovida pelo próprio Deus, de modo que agir contra a pobreza – e as leis de mercado por detrás dela – seria atentar contra uma ordem justa em si mesma. Dificilmente algum cristão teria coragem de defender isso nos dias de hoje, mas os cientistas ateus dos países de língua inglesa não são lá flor que se cheire (vejam este artigo de Flavio Gordon). Faz sentido chamar esse ateu de pós-calvinista. No entanto, cristãos, sobretudo se não forem católicos, são capazes de aceitar que o mercado é justo e o Estado é mau.

O darwinismo social atravessa o Atlântico

Malthus, Darwin e Spencer eram todos ingleses. No século XIX, os EUA eram uma potência econômica nascente e suas universidades – cujo modelo seria copiado pelo mundo – ainda engatinhavam. Nessa época, que coincidiu com institucionalização das ciências nos EUA, o darwinismo social estava a todo vapor naquele país.

Quanto a esse assunto, recomendo o livro Evolução, raça e ambiente: Darwinismo Social e sua formação na Geografia americana em Ellsworth Huntington e Ellen Semple (Sagga, 2022), de Fernando José Coscioni.

Nele aprendemos que a disciplina da geografia humana surgiu nos Estados Unidos como uma disciplina darwinista social cujos objetivos eram legitimar por meios científicos a doutrina do Destino Manifesto. A geografia humana surgiu junto com a antropologia cultural, a primeira dizendo que o homem era determinado por uma combinação entre ambiente, raça e cultura (focando na raça); e a segunda, liderada por Franz Boas, focava na cultura para mostrar que raça não significava lá grande coisa.

Ellsworth Huntington (1876 – 1947, não confundir com Samuel Huntington) hierarquizava as civilizações com um pé nas costas, como se os valores fossem inteiramente objetivos. Ele chegou a escrever para geógrafos do mundo inteiro solicitando mapas de avanço civilizacional. A ideia pareceu um disparate para muitos dos seus colegas, embora hoje seja banal fazer mapas de IDH (que eu acho um medidor meio burro).

Sei que todos estão de saco cheio de relativismo cultural, então devo dar um exemplo de questão cientifica a ser investigada por E. Huntington: Por que os australianos são superiores aos ingleses? Perguntei ao autor do livro se o distinto geógrafo embasa a afirmação de que os australianos são superiores aos ingleses. De fato, ele não embasa e parte do pressuposto de que seja verdade. Em seguida aponta como causa da superioridade dos australianos o fato de descenderem de imigrantes. A emigração selecionaria os mais aptos a suportar uma viagem e os mais arrojados, por isso o estoque de ingleses ancestrais dos australianos era superior ao estoque de ingleses ancestrais dos ingleses. Aí se aprende que para o geógrafo o amor à própria terra é ruim, coisa de gente pouco saudável e arrojada, de modo que um país de elite seria um país de imigrantes, de preferência daqueles que correram risco de vida para chegar ao local.

Não é nada ousado dizer que Huntington promoveu a Austrália porque daria muito na vista exaltar a terra pátria. Quanto a Ellen Semple (1863 – 1932), um de seus feitos na área da geografia foi importar para os EUA a teoria alemã do Espaço Vital (Lebensraum). Casando o Espaço Vital de Ratzel com o darwinismo social de Huntingon, pôde-se descrever a história dos EUA como a vitória da raça anglo-saxã sobre a hispânica, numa competição pelo Espaço Vital. Os EUA seriam fruto da sobrevivência do mais apto. Seu próprio sucesso é prova científica de que são predestinados, seja por Deus ou pela natureza.

De volta à vaca fria

Desde 1898, os Estados Unidos são a principal potência das Américas; e desde 1918 são a principal potência da cristandade (e ex-cristandade) ocidental. O que vem de lá, seja bom ou ruim, se impõe cada vez mais como normal Ocidente afora.

O darwinismo social é uma dessas coisas. É uma cosmovisão à qual as pessoas aderem sem pensar, então aos poucos as pessoas passaram a achar que o mercado é uma coisa justa em si mesma, que pune os inaptos e premia os aptos, de modo que cabe a cada um de nós jogar conforme as suas regras e não admitir intervenção estatal, nem mesmo se o Estado for democrático. Ao meu ver, é uma sacralização indevida.

Embora a lei antitruste tenha caído só nos anos 70, o darwinismo social tem origens filosóficas que se confundem com as origens do liberalismo econômico (a fisiocracia) e com a teoria da evolução, a qual teve um papel importante no divórcio entre religião e ciência.

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