O funk contribui com o PIB; as orquestras, não

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O mundo do Spotify e similares me é desconhecido. Sei como é na teoria: você paga uma mensalidade e tem acesso a um amplo catálogo musical. Os artistas recebem por audiência. Além de você mesmo organizar a sua playlist, aparecem as sugestões do próprio Spotify baseadas no seu gosto. Como elas são feitas, só Deus sabe. Em princípio, o algoritmo “aprende” seu gosto e sugere coisas de que ele acha que você vai gostar – assim como o gratuito Youtube. Mas, se há dinheiro envolvido (inclusive em plataformas gratuitas), é pouco provável que seja tão simples assim.

Agora, se minha geração e as mais velhas já têm o gosto formado por meios pré-internet, a nossa interação com algoritmos não é muito informativa acerca de um mundo onde o gosto musical e formado por algoritmos. Li algo bem desanimador num texto do cineasta Josias Teófilo: “Boa parte das trilhas sonoras que se ouve hoje nos filmes são feitas a partir de pre-sets – o ‘compositor’ seleciona um modelo de composição e o programa compõe ele. Por isso as trilhas sonoras dos filmes contemporâneos se parecem tanto. Num mundo de padronização, a forma de chamar atenção acaba sendo por critérios extra-artísticos, em geral polêmicas, não raro relacionado à sexualidade. A cantora brasileira Anitta se especializou nisso.”

Por óbvio, o uso de programas para compor não se deve à qualidade; deve-se ao simples corte de despesas. E eu não ficaria nem um pouco surpresa se as “composições” cantadas pelas artistas pop das Américas fossem produtos de tais programas, já que nem a letra, nem a batida (chamar de música seria demais) variam significativamente de um número para o outro. A diferença entre Anitta e Nicki Minaj é o idioma e só.

A vulgata liberal repete que “não existe almoço grátis” e, ao mesmo tempo, espera que a cultura se submeta à lógica de mercado. Assim, a melhor música é a que tem a menor quantidade de instrumentos (não paga músicos) e não tem um compositor de verdade (outro gasto a menos). O investimento crucial é na área de marketing, que é “extra-artístico”, para usar a expressão de Josias. Eu e você podemos não gostar de Anitta e similares, mas nós fomos formados por outras épocas. Já as novas gerações estão se formando nessa cultura mercadológica que ensina a gostar de música de babuíno. O papai e a mamãe não precisam botar Anitta pra tocar em casa; basta entregarem um smartphone para o filho, que o algoritmo educa. Os adultos descobriram que os smartphones são eficacíssimos na tarefa de deixar criança quieta, e não se incomodam em jogar o filho na internet antes de amadurecer. (Aliás, vocês viram que o Instagram, tão usado por menores de idade com a suposta supervisão dos pais, promova redes de pedófilos, não viram? O certo é menor não ter smartphone.)

Esse adestramento algorítmico parte de um pressuposto que é o oposto da educação do gosto: pressupõe que devemos ouvir aquilo que já nos apetece, em vez de sermos apresentados a algo melhor, para formar ou aprimorar o nosso gosto. Por aí vemos como o relativismo pós-moderno é talhado sob medida para a economia de mercado desregulada: se algo pode ser produzido para as massas e gerar uma receita bilionária com custos mínimos, não deverá haver critérios objetivos para dizer que tal coisa é uma porcaria. Quem não gostar de Anitta é racista; quem preferir Pixinguinha é supremacista branco. O melhor é que se apague da memória coletiva a existência de um Pixinguinha para empurrar uma porcaria embalada em marketing e dizer: isto é arte.

Presume-se que, nesta era digital, o progresso é multiplicarmos o entretenimento com o mínimo de custo enquanto se gera lucro. É um mecanismo completamente cego para a qualidade: quanto mais tempo passarmos online entretidos, melhor. Ora, isso é uma coisa que a pornografia consegue com mais eficiência do que a música – portanto não é de admirar que a música vá sendo cada vez mais invadida pela pornografia. Uma batida, um refrão pornográfico, e tem-se o sucesso “musical” na atual era da internet.

Frente a isso – sobretudo em tempos de vulgata liberal --, não faltará quem diga que é progresso mesmo, porque Anitta faz o PIB crescer, que o mercado da música glútea movimenta bilhões de dólares no mundo; que se tivéssemos de gastar mais com músicos e direitos autorais para atender a um gosto mais refinado, os pobres ficariam privados de entretenimento, a economia iria acabar e milhões de ambulantes e catadores de latinha passariam fome. Além disso, se você gosta de algo melhor que sertanejo universitário, você é petista porque os cantores de MPB são petistas.

A internet está aí. Podemos usá-la para aprimorar a sociedade, valorizando a cultura, ou para transformar as próximas gerações em babuínos.

Essa mentalidade inclusive pautou a péssima pasta de Cultura do governo passado. O PM bolsonarista que ficava caçando atenção no Grupo UFBA do Facebook, por algum motivo, caiu de paraquedas num órgão responsável pelo orçamento da Cultura e represou tudo. O Brasil completou 200 anos de Independência no governo Bolsonaro em brancas nuvens, já que o mais importante era causar no Twitter. Reagindo às críticas que denunciavam a impossibilidade de contemplar as orquestras com o dinheiro disponibilizado, os demagogos do governo diziam se aproximar do homem comum, que supostamente gosta de sertanejo universitário. Acontece que se poderia dizer que o povo gosta de funk; se ficarmos com o lema demagógico de satisfazer ao gosto do povo sem a pretensão de melhorá-lo, não há como ficar só com o sertanejo, rechaçando os popularíssimos funkeiros e pagodeiros. No que depender das bandas podres da direita e da esquerda, o brasileiro terá de escolher entre o sertanejo-de-direita e o funk-de-esquerda. O que é só mais um jeito de decidir questões artísticas por critérios extra-artísticos; no caso, politiqueiros. Quem não tem bunda, caça com politicagem.

Mas o avanço da tecnologia não determina a cultura. É muito comum, na direita, se apontar para a arma de fogo como algo destituído de moralidade intrínseca: a pessoa por detrás da arma é que decide o seu uso. Do fato de mais pessoas terem armas não se segue que vá todo o mundo sair atirando em todo o mundo. A internet é a mesma coisa: o fato de algoritmos existirem não implica que as crianças vão todas crescer amestradas pra gostar de música glútea, nem que os adultos vamos parar de pegar dicas com amigos, ou de fontes outras que não o adestramento algorítmico.

Um exemplo um tanto quixotesco disso é a web-rádio de Perfilino Neto, que descobri este mês. Trata-se de um radialista octogenário que, após décadas na Rádio Educadora da Bahia, resolveu usar seu imenso acervo físico para transmitir com independência músicas e entrevistas históricas. Além das transmissões, o radialista continua fazendo programas temáticos, tais como: composições de Assis Valente, marchinhas carnavalescas com o tema “Índio quer apito” (como ele contou, o tema durou dos anos 50 a 80), estilos de tocar acordeão pelo Brasil (ênfase em São Paulo, Rio Grande do Sul e Nordeste). Sem dúvida, Perfilino é mais instrutivo do que qualquer algoritmo. Sua web-rádio, chamada Era do Rádio, fica no endereço eradoradio.com.br.

Em entrevista de 2019, Perfilino Neto disse que a internet é “a viagra do rádio”, pois aumenta a potência desse meio de comunicação idoso que hoje está em todo canto. A internet está aí. Podemos usá-la para aprimorar a sociedade, valorizando a cultura, ou para transformar as próximas gerações em babuínos.

Bruna Frascolla

Bruna Frascolla é doutora em filosofia pela UFBa e autora de "As ideias e o terror" (República AF, 2020). Colabora com a Gazeta do Povo desde 2020. **Os textos da colunista não expressam, necessariamente, a opinião da Gazeta do Povo.

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