• Carregando...
O guia recomendado por Olavo de Carvalho para derrubar ditaduras é charlatanismo puro
| Foto: Midjourney

Da democracia à ditadura, de Gene Sharp, é cantado em verso e prosa pelos seguidores de Olavo de Carvalho como um manual a ser seguido para cumprir o itinerário prometido no título. Sua presença constante na nova direita vem de o próprio escritor-youtuber ter recomendado muito o livro, coisa que o leitor pode constatar apenas digitando “Olavo de Carvalho Gene Sharp” no Google. No primeiro resultado que aparece, vemo-lo junto à futura deputada Bia Kicis empilhando livros que tratam de “resistência não-violenta”. Os livros estão todos em inglês, e Olavo comenta que “no Brasil isso é novidade, nunca ninguém se interessou por esse assunto, mas agora é o momento.”

Como de costume, Olavo afirma uma falsidade. O tema da “resistência não-violenta” foi uma coqueluche desde a época do maio de 68 até os anos 80. Basicamente, quem não era da dita “esquerda armada” (isto é, terrorista), nem era comunista de verdade, era um adepto dessas coisas de flower power, de imitar Gandhi etc. Por isso, é óbvio que Gene Sharp tem tradução para o português – desde pelo menos 1983, quando as Edições Paulinas publicaram Poder, Luta e Defesa: Teoria e prática da ação não-violenta. O prefácio é de Dom Paulo Evaristo Arns, um expoente da Teologia da Libertação. As Paulinas são uma tradicional editora católica. A Teologia da Libertação não era comunista (comunistas são ateus cientificistas), e era pacífica (o grupo terrorista católico armado, a AP, não era da Teologia da Libertação e seu mentor, o Pe. Vaz, era seu crítico, bem como do marxismo).

Os olavetes mais informados costumam saber que Gene Sharp era “de esquerda”. No entanto, quando alguém aponta isso para eles, em geral respondem que a esquerda domina o Brasil hoje e assim tem-se a prova de que o método é eficientíssimo. No entanto, do fato de parte da esquerda ter adotado o método de Gene Sharp não se segue que o fim do regime militar se deva ao fato de os esquerdistas terem lido Gene Sharp. Parece papo do pessoal da Comissão da Verdade, que, diante de tantas vidas destroçadas por nada, quer crer que a luta armada no Araguaia valeu a pena, pois os guerrilheiros de alguma maneira contribuíram com o fim do regime militar.

A abertura democrática, anunciada pelo próprio Geisel, se deve a uma concertação das elites políticas brasileiras inseridas no contexto da Guerra Fria, não ao fato de o pessoal da Teologia da Libertação ter editado Gene Sharp, nem ao fato de guerrilheiros comunistas terem pegado em armas.

Quem era Gene Sharp?

Gene Sharp (1928 – 2018) era um cientista político cuja formação e docência não têm nada de excepcional. Formou-se numa universidade estatal de Ohio e dava aulas numa tal University of Massachussetts Dartmouth. Ele é conhecido por ter escrito uma penca de livros de resistência não violenta e por ter fundando uma ONG, o Albert Einstein Institution, onde não promovia nada relacionado a física, mas sim à – adivinhem – resistência não violenta, o seu eterno tema. Para um charlatão, deve parecer uma boa ideia usar o nome de Einstein para soar inteligente.

ONG, nos Estados Unidos, é algo ainda mais nebuloso do que no Brasil. Lá elas não são obrigadas a explicar de onde vêm as suas receitas, e são instituições para as quais o cidadão pode doar o imposto federal. Assim, Bill Gates cria a Fundação Bill Gates para doar a si próprio o que seria imposto. Por isso nos EUA há tanta “filantropia”.

Não à toa, Gene Sharp e sua ONG deram origem a muitas especulações, sendo a mais comum a de que ele seria bancado pela inteligência dos EUA com o objetivo de propagandear Revoluções Coloridas pelo mundo, desestabilizando regimes não alinhados com Washington. A leitura de Da ditadura à democracia convenceu-me de que as acusações são tão verossímeis que eu precisaria de evidências contrárias para não acreditar nelas. A obra é um receituário simplista para pessoas burras (os ativistas) apanharem “para o mundo inteiro ver”, até os EUA ou a ONU decidirem fazer alguma coisa.

New Thought aplicado à política

Na obra, que é de 1994, Gene Sharp se apresenta simplesmente como alguém que leu muitos livros, conversou com judeus sobreviventes do Holocausto e visitou locais de resistência anticomunista na extinta Cortina de Ferro. Essa “vivência”, em vez de estudos sólidos que poderiam ser lidos por qualquer um, o torna especialmente apto para guiar os povos do mundo da ditadura para a democracia. Você não pode repetir a vivência dele, então resta confiar.

O tal método misterioso remete a uma coisa entranhada na cultura dos EUA desde o século XIX: o New Thought Movement. É corrente pseudocientífica criada por Phineas Quimby que se metamorfoseou, ganhando as formas de esoterismo, autoajuda e seitas protestantes pouco letradas. A ideia constante é que a força do seu pensamento influencia a realidade. Assim, se no século XIX Quimby prometia curar doenças mandando o paciente ter pensamento positivo, neste século Rhonda Byrne, com O Segredo, ganhou rios de dinheiro dizendo às pessoas que elas precisavam de pensamento positivo para atrair riqueza. No meio neopentecostal, os pastores ficam mandando as pessoas “profetizarem” para as coisas acontecerem.

Se a sua doença não sarou, se o BMW não apareceu na sua garagem e se a “profecia” não se realizou, a culpa é sua, que não mentalizou direito, não pensou positivo o suficiente. A culpa nunca é do charlatão (senão ele não seria um charlatão). Esse pensamento se difundiu no Brasil pela cultura pop, pelo esoterismo e pelo neopentecostalismo. Na cultura pop está a Xuxa, que creio ter sido o seu maior veículo aqui. Ela ensinou às crianças que “tudo o que eu quiser, o cara lá de cima vai me dar”, pois “sonhos sempre vêm pra quem sonhar”.

Gene Sharp é a transposição disso para a política. O capítulo 1 começa assim: “Nos últimos anos, várias ditaduras […] entraram em colapso ou cambalearam quando confrontadas por pessoas desafiadoras e mobilizadas.” Se você enfrentar uma ditadura e ela não cair, você não foi desafiador o suficiente.

Na década de 90, o mundo havia assistido ao colapso da União Soviética. Isso deu fim tanto à maioria dos regimes associados a ela (pensem na “democratização” dos países africanos e do Leste europeu), como aos regimes anticomunistas alinhados com os EUA (pensem na “redemocratização” da América do Sul). No entanto, a explicação de Gene Sharp é que um punhado de militantes derrubou essas ditaduras ao mesmo tempo. Se você sonhar com a Lua de Cristal, vai conseguir brilhar e derrubar a ditadura com sua força de vontade.

Revolução só para baixinhos

A teoria dele é bem simples, e é ilustrada por uma suposta fábula chinesa medieval traduzida pela própria Albert Einstein Institution, intitulada “Mestre dos Macacos”. Na historinha, um homem mau organiza a colheita de alimentos dando ordens aos macacos, cobrando-lhes a décima parte, até eles descobrirem que o homem é desnecessário e pararem de obedecer às suas ordens. Os macacos passam a fazer as coisas sozinhos – adotam uma autogestão anarquista, portanto –, o homem mau morre de fome sem a décima parte e eles ficam com os alimentos todos para si. As “ditaduras”, então, funcionam assim: um malvadão desnecessário manda, e basta as pessoas pararem de obedecer a ele para a sociedade viver livre. Gene Sharp, portanto, prega anarquismo.

Curiosamente, porém, o seu anarquismo deixa a questão do trabalho intocada. Ora, se a sociedade pode se gerir sem precisar de um Chefe de Estado com poderes, por que as empresas e as propriedades rurais, que são muito menos complexas, precisam de chefes? Se você acredita na fábula do Mestre dos Macacos (o que não é o meu caso), faz mais sentido pregar o fim da propriedade privada do que o fim da autoridade estatal.

Não fica claro o que Gene Sharp entende por ditadura e democracia, mas fica claro que essa é uma classificação binária e maniqueísta ao mesmo tempo. Ou estamos numa ditadura, onde um malvadão nos priva de liberdade, ou estamos numa democracia, onde há “direitos humanos”. Sua tentativa de usar Aristóteles é uma fraude, já que o filósofo não tem o conceito de “ditadura” (que é romano), e a coisa mais parecida com o que Gene Sharp entende por ditadura, no esquema de Aristóteles, é a tirania. No entanto, Aristóteles também arrola a democracia entre as más formas de governo (junto com a tirania e a oligarquia). Aristóteles decididamente não era um anarquista.

A outra coisa que faz de Gene Sharp um anarquista atípico é o fato de ele ser adepto do New Thought. Ele não dá nenhuma explicação muito elaborada de como a ditadura vai cair. Sua “resistência não-violenta” servirá para desmoralizar o ditador e fazer com que as demais pessoas (os macacos da fábula) se recusem a cooperar com o regime. Quais são esses meios? Uma porção de maluquice, como mostrar os peitos na rua (feito o ucraniano Femen). Olavo de Carvalho divulgou a lista no seu perfil (cf. o item 22).

O mundo vai ver você apanhando!

Caso você esteja achando essa conversa toda muito estranha, devo frisar que “várias ditaduras […] entraram em colapso ou cambalearam quando confrontadas por pessoas desafiadoras”. Gene Sharp escreve para essas almas que ouviram a Xuxa e se acreditam capazes de mudar o mundo por meio dos seu individualíssimo ímpeto desafiador. O problema são as pessoas normais: na ditadura, “a população torna-se fraca, carece de autoconfiança e é incapaz de resistir. As pessoas estão quase sempre assustadas demais para expressar seu ódio à ditadura e sua fome de liberdade, mesmo para familiares e amigos. Às vezes, estão mesmo apavoradas demais para chegar a cogitar de verdade a possibilidade de resistir publicamente ” (p. 16; cito a edição da Vide). Por isso, o leitor do Gene Sharp acha que ficar lotando o WhatsApp dos outros com vídeos e textos furiosos é um ato de bravura que os tornam superiores a você, que não está vendo vídeos furiosos nem mostrando os peitos na rua.

Mas será que isso funciona mesmo? Gene Sharp usa a falácia discutida acima, qual seja: a de que uma coisa seguir-se à outra prova a relação causal, ignorando o contexto da época. Vejamos este trecho: “A história recente mostra a vulnerabilidade das ditaduras e revela que elas podem desmoronar em relativamente pouco tempo: enquanto foram necessários dez anos – de 1980 a 1990 – para derrubar a ditadura comunista na Polônia, na Alemanha Oriental e na Tchecoslováquia, em 1989, ela caiu em semanas” (p. 30). O fato de a queda da Cortina de Ferro ter acontecido de maneira mais ou menos uniforme não é mencionado; parece que a queda do comunismo na Polônia em 1990 não tem nada a ver com a queda do Muro de Berlim em 1989. É como se a Polônia não participasse de uma mesma entidade política que enfrentava uma crise e, em vez disso, “indivíduos desafiadores” tivessem precisado de dez anos para desmoralizar a ditadura, derrubando-a.

Mas nem sempre funciona. No começo do livro, Gene Sharp já menciona a China: “houve insubordinação política em massa na China, na Birmânia e no Tibete nos últimos anos. Embora essas lutas não tenham acabado com as ditaduras ou ocupações, expuseram a natureza brutal desses regimes repressivos à comunidade internacional e proporcionaram à população uma experiência valiosa com essa forma de luta” (p. 14). Ou seja, se você enfrentar na doida uma ditadura sem chances concretas de derrubá-la e for esmagado por um tanque, a experiência valeu, porque o mundo inteiro vai ver você esmagado pelo tanque e achar a ditadura muito má.

Aí, quem sabe, uns dez anos depois os “indivíduos desafiadores” não terão conseguido, mostrando muito peito, derrubar a ditadura, e tudo terá valido a pena.

Socorro, Tio Sam!

Qual é, afinal, a vantagem de “todo o mundo ver”? De um jeito tortuoso, Gene Sharp recomenda algumas coisas e veta outras. Veta uma revolução militar porque poderá dar origem a outra ditadura (a ideia dele é estabelecer uma sociedade cheia de ONGs e associações civis politizadas, na qual ninguém manda). Veta também acordos e negociações, que serviriam apenas para prolongar a ditadura. Se tem uma coisa que, no frigir dos ovos, ele recomenda, é apelar para forças externas. Uma das metas colocadas por ele é “determinar o tipo de ajuda externa desejável para […] a luta de libertação […]. Será necessário prestar atenção a quais grupos externos têm mais probabilidade de ajudar da maneira adequada, como organizações não-governamentais […], governos e/ou Nações Unidas e seus diferentes órgãos” (p. 78).

Olavo de Carvalho fez sua audiência crer, ao mesmo tempo, que a ONU quer implementar uma ditadura global, e que devemos buscar a ONU para instaurar a democracia no Brasil. Sua audiência não é muito sagaz. De fato, a oposição por ele formada tem ido à ONU e aos EUA “mostrar ao mundo” o que acontece no Brasil. O que fariam esses agentes externos? Mandariam Sara Winter com suas colegas ucranianas sem camisa para salvar o Brasil? Não? Então parece que alguém, que não os nativos, tem autorização para usar da violência.

No entanto, o que esses desorientados não notam é que a cartilha da não-violência é seguida há bastante tempo pela oposição venezuelana. Eles quase nunca pegam em armas (Óscar Pérez foi exceção), ficam indo para a cadeia (não raro morrendo por lá) e não parecem capazes de negociar nada internamente: só mostram ao mundo como Maduro é mau, “o mundo” concorda e os EUA não só não intervêm, como ainda compram petróleo de lá.

Francamente, o que a oposição brasileira espera? Que os EUA promovam sanções contra o agronegócio brasileiro? Que façam uma guerra com o Brasil, já tendo que lidar com a Ucrânia, Israel, mais o Haiti à sua porta agora? Aliás, falando em Israel, duvido que esses bolsonaristas que leem as táticas de Gene Sharp sequer saibam o que são os colonos judaicos e o que eles fazem com os palestinos na Cisjordânia. A mídia internacional os ignora, e se eles fossem fazer protestos performáticos lá para apanhar em seguida, ninguém ia ver. Com uma pandemia nas costas, a direita acredita que a mídia internacional não mostra só o que convém?

Mas tudo isso é pensamento negativo de minha parte. Estou atrapalhando a revolução, que virá mais cedo ou mais tarde. Como disse a rainha dos baixinhos, “Tudo que eu quiser, o cara lá de cima vai me dar/ Me dar toda coragem que puder/ Que não me falte [sic] forças pra lutar/ Vamos com você/ Nós somos invencíveis, pode crer”. Enquanto o Tio Sam não vem, todo o mundo vê você apanhando.

Conteúdo editado por:Jônatas Dias Lima
0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]